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ARTIGO 200/LIVRO 2 – TEMA: MINISTÉRIO PÚBLICO

Comentário de Hugo Nigro Mazzilli
Advogado e Professor de Direito/São Paulo

Ministério Público – o que é, o que faz e qual o fundamento da Sua atuação não só sob o ponto de vista legal, mas também sob o ponto de vista social; a seguir, devemos buscar sua destinação, seu embasamento e suas atribuições constitucionais. Esse exame fornecerá o como e o porquê se chegou à razão das normas vigentes, que conferem à Instituição as atuais funções que por ela são exercidas. Devemos, assim, buscar o conteúdo e a fundamentação constitucional e institucional do Ministério Público enquanto ofício, enquanto conjunto de atribuições, poderes e deveres. Ainda é fundamental discutir, a cada passo, os fundamentos e o sentido da intervenção ministerial, para que suas funções sejam compreendidas como um conjunto harmônico de atribuições, de uma Instituição que tem um fim a realizar no meio social, atribuições estas que justificam as garantias constitucionais conferidas a seus membros, como a independência funcional (seja em face dos demais órgãos, seja em face da própria Instituição); a vitaliciedade (que visa a as- . segurar o vínculo jurídico que liga o agente a seu cargo, predicamento este que hoje só é compartilhado com os magistrados); a inamovibilidade (que, aderindo ao cargo, agora visa a assegurar o exercício das funções a ele inerentes).

Trata-se de garantias conferidas justamente diante das peculiaridades do oficio do Ministério Público: é difícil ter, muitas vezes, de tomar partido a favor do governado contra o governante; a favor do obreiro e do acidentado do trabalho contra o patrão ou a empresa; a favor do pobre contra o rico; a favor do cidadão contra o político; a favor da vítima contra o não raro bem-sucedido criminoso. Tudo isto está a significar que o Ministério Público assume, não raro, a defesa da parte mais fraca na relação processual ou a parte mais fraca no seio social.

1.2 Campo de atuação

Não vamos aqui divagar sobre as instituições ou órgãos que podem ser considerados precursores da função do Ministério Público. Vamos, mais objetivamente, buscar a causa histórica do Ministério Público.

O Ministério Público, tal como o conhecemos hoje, não surgiu de repente, num só momento, num só lugar, seja por ordenanças francesas ou lusitanas. Na verdade, formou-se lenta e progressivamente, em resposta a exigências históricas.

Sua origem se liga à questão da soberania. Quando o desenvolvimento do Estado paulatinamente começou a impedir que os soberanos pudessem pessoalmente exercitar todas as funções de soberania (fazer e aplicar a lei), passaram esses a instituir tribunais; depois, passaram eles a colocar, junto a esses tribunais, agentes seus, representante deles,monarcas, para defender os interesses dos governantes e da Coroa.

Depois, foi conferida a esses agentes do rei a responsabilidade pela promoção da ação penal, que é decorrência do jus puniendi estatal, expressão da soberania.

Enquanto o Ministério Público cada vez mais foi alargando sua atuação na área criminal, a ponto de hoje conquistar a exclusividade da promoção da ação penal pública, ao mesmo tempo foi-se afastando da defesa dos interesses dos governantes, da Coroa ou da atual Fazenda Pública.

Aliás, é bom que tenhamos sempre presente que ainda persiste esse Mesmo processo de formação, pois o Ministério Público está em contínuo Processo de crescimento.

Ainda que deixemos de lado as atribuições ditas transitórias ou delegadas ao Ministério Público local (como a defesa da Fazenda Nacional, a defesa do reclamante trabalhista e a atuação junto à Justiça Eleitoral), podemos dizer que, hoje, o oficio do Ministério Público é muito diversificado.

Na esfera criminal, investiga ou determina a investigação de crimes; Oficia nos inquéritos policiais; propõe a ação penal pública; oficia na execução das penas; atua perante o Tribunal do Júri, a Justiça Militar e a Corregedoria dos Presídios e da Polícia Judiciária.
Não atua como um acusador cego ou implacável, mas é o Promotor de Justiça, antes mesmo do que o órgão do Poder Judiciário, a primeira real garantia de proteção das liberdades do cidadão, por ser ele quem assegura o pressuposto de uma imputação feita por órgão independente, que tem plena liberdade de convicção e de atuação. É o Promotor que detém nas mãos o poder de acusar – expressão do direito de punir, do qual é titular o Estado soberano. Nessa relevante função, pode e deve o Promotor, conforme o caso, inclinar-se pelo arquivamento de uma investigação criminal, ou pela absolvição, caso se convença da inocência do acusado. Até mesmo pode e deve impetrar habeas-corpus, quando é o caso.

Está aí o Promotor a viabilizar, somente a partir dessa acusação independente, a atuação de um juiz efetivamente imparcial, porque agora desvinculado do ônus de investigar, de provar ou de acusar.

Mas, afora a atuação na área criminal, a única sobre a qual conserva a Instituição exclusividade quanto à legitimação para agir em juízo, outras relevantes atribuições tem o Ministério Público, seja na área institucional em geral, seja especificamente na área cível, sobre as quais não tem nem convém que tenha exclusividade de agir, porque aqui o titular do interesse material não é o Estado, mas a coletividade como um todo.

Nessa área cível, o Promotor de Justiça atua na esfera judicial ou ex­trajudicial; instaura inquéritos civis e propõe a ação civil pública; oficia em inúmeros feitos, bem como exerce suas funções em diversas Promotorias(de falências, de família, de registros públicos; da infância e da ju­ventude; do meio ambiente; do consumidor; das pessoas portadoras de defi­ciência; dos direitos constitucionais do cidadão etc.).

Na esfera da administração pública de interesses privados, exercita a fiscalização de casamentos e aprova acordos extrajudiciais.

Atua ora como órgão agente (propondo inúmeras ações civis públicas – não só nas hipóteses mais tradicionais, como a ação de nulidade de casa­mento ou o pedido de interdição; nas ações para defesa do meio ambiente ou do consumidor etc.), ora como órgão interveniente (oficiando nos pro­cessos que o legislador considerou mais relevantes, como naqueles em que há interesse público evidenciado por uma questão ligada a alguma das par­tes – como os incapazes -, ou ligada ao próprio interesse material em litígio – como as matérias de família, as ações populares e tantos outros casos).

Existem ainda relevantes encargos extra judiciais do Ministério Públi­co, como no atendimento anônimo de milhares de pessoas, todos os dias, em todas as comarcas, em todos os Fóruns do País. Nessa tarefa, os Promo­tores. de Justiça conciliam, orientam, intercedem, resolvem questões que, mui­tas vezes, antes de serem jurídicas, são mais problemas humanos e sociais.

Suas atribuições extrajudiciais vêm crescendo significativamente, como nas investigações que faz por meio do inquérito civil, na atuação em defesa do regime democrático e em favor do efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos constitucionais.

1.3 Posicionamentos constitucional

Na Constituição de 1988, o Ministério Público conquistou posição em Capítulo próprio – Das funções essenciais à Justiça; viu-lhe ligada à es­sência de suas finalidades a defesa da ordem jurídica, do regime democrá­tico e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput).

A defesa do regime democrático pelo Ministério Público, novidade em nosso Direito, de inspiração na Constituição portuguesa de 1976, ex­plica-se porque, na verdade, a manutenção da ordem democrática pressu­põe o cumprimento das leis e o respeito dos direitos constitucionais do cidadão tarefas pelas quais deve o Ministério Público empenhar-se
Sobreleva, assim, considerar a destinação do Ministério Público na defesa do interesse público? Primário, visto sob o ponto de vista da indisponibilidade do bem coletivo. Indisponibilidade do bem coletivo.

Ficaram mencionados na nova ordem constitucional os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e independência funcional (CF, art.127, § P). Na verdade, os dois primeiros provêm especialmente de inspiração da doutrina francesa. Nesta, concebe-se a unidade do Ministério Público visto como uma só instituição, com uma só chefia; a indivisibilidade é vista como um só oficio. E mais: na França, em vez da independência funcional, acolhida expressamente entre nós como princípio institucional do Ministério Público, admite-se o princípio hierárquico (como na avocatória).

No Brasil, porém, pelas peculiaridades de um Estado Federado (não unitário,como a França), não se pode falar pura e simplesmente em unidade do Ministério Público.2 Há várias instituições de Ministério Público, só se podendo conceder unidade em cada uma delas, e, mesmo assim, dentro de limites, pois, quanto ao oficio, a rigor também não é uno, haja vista que num mesmo processo vários órgãos da Instituição podem estar a exercer funções inacumuláveis nas mãos. de um só deles.3 Por fim, entre nós, a chefia institucional é antes administrativa que funcional:4 ao contrário de se supor uma Instituição hierarquizada, assegurou-se aqui antes um Ministério Público no qual seus agentes gozam de independência funcional, predicamento expressamente garantido na nova Constituição (art. 127, § 111).

1.4Funções constitucionais

É possível examinar as funções ministeriais sob dois aspectos: quanto à sua natureza e quanto à sua titularidade.

2. Mesmo na França – Estado unitário, onde o princípio hierárquico no Ministério Público alcança extensão sem paralelo no Brasil, Estado federado -, a complexa Organização hierárquica do Parquet não permite aplicação simplista do princípio da Unidade e da indivisibilidade, regra esta que merece ser “sainement entendue”, bem o demonstra Michele-Laure Rassat, em Le Ministere Public entre son passé et son avenir, pp. 81-4, Paris, 1967. A mesma observação também é válida para o Ministério Lubhcoda Itália- que,como a França,é Estado unitário-, como se vê de Giovanni
em, em Trattato di diritto processuale penale, vol. 1, p. 435, Nápoles, 1961.

.3. A propósito, v. nosso A defesa dos interesses difusos em juizo, Capo 4, I I’ ed., Saraiva, 1999.

4. Não tem o Procurador-Geral poder de impor procedimentos funcionais nem Poder de retirar as atribuições do promotor natural, exceto em casos excepcionais, como na hipótese do art. 28 do Código de Processo Penal.

Quanto à natureza, podemos distinguir as funções em típicas e atípicas. Dentro da destinação institucional que lhe reservam as leis, o Ministério Público atua mais freqüentemente em funções típicas, ou seja, em funções intrinsecamente próprias ou peculiares à instituição, à sua natureza: é o caso da ação penal pública (CF, 129, I), da promoção da ação civil pública (CF, 129, III), do zelo de interesses sociais ou individuais indisponíveis (CF, 127) etc.

Contudo, já houve, e em certos casos ainda há, funções outras cometidas ao Ministério Público de caráter atípico, como a advocacia da Fazenda, hoje vedada à Instituição (CF, art. 129, IX); como a supletiva prestação de assistência judiciária aos necessitados (LC 40/81, art. 22, XIII) e aos reclamantes trabalhistas (CLT, art. 477, § 3°; Lei 5.584/70); como a substituição processual da vítima pobre nas ações cíveis ex delicto (CPP, art. 68), hoje atribuição prioritária das defensorias públicas.

A tendência atual certamente consiste, a nosso ver, no esvaziamento das funções atípicas: a Fazenda tem seus advogados, que devem defender seus interesses patrimoniais (CF, 129, IX, 131, e art. 29, § 5° do ADCT); ainda está sendo implantada a Defensoria Pública, cujo dever constitucional consiste em prestar assistência judiciária aos necessitados (CF, art. 134).

Em sua atuação, busca sempre o Ministério Público o zelo de um interesse público primário, ou seja, um interesse ligado à defesa da comunidade como um todo, a defesa do bem geral. Com efeito, e é de sabença de todos, há diversas categorias de interesses, que, sumariamente podem ser sintetizadas em dois grandes grupos: o interesse privado (como o direito de propriedade) e o interesse público em sentido estrito (como o direito de punir do Estado soberano). Entretanto, entre ambos os grupos, reconhece se a presença de categorias intermediárias: os chamados interesses individuais homogêneos (são, na verdade, interesses trans individuais, caracterizados pela extensão divisível ou individualmente variável do dano ou da responsabilidade, gerados pela mesma circunstância de fato), os interesses coletivos (em sentido estrito, também são interesses trans individuais, agora indivisíveis, abrangendo uma categoria determinada ou determinável de pessoas, ligadas por uma relação jurídica básica), os interesses difusos (interessesindivisíveis, que atingem uma coletividade indeterminada, reunida pelas mesmas circunstâncias de fato) e, finalmente, o interesse público em sentido lato (que diz respeito à comunidade como um todo).

O interesse público, no sentido lato, pelo qual deve zelar o órgão do ministério Público, geralmente está ligado à defesa de: a) pessoas determinadas (a criança e o adolescente, o incapaz, a pessoa portadora de deficiência, o acidentado do trabalho); b) grupos de pessoas determinadas ou determináveis (populações indígenas, consumidores); c). toda a. coletividade (nas ações penais; na ação popular; na defesa do meio ambiente).

Observe-se que a proteção à criança e ao adolescente, por exemplo, interessa à atividade ministerial, seja enquanto isoladamente considerados (p. ex., a situação de uma única criança abandonada), seja sob o aspecto coletivo ou difuso (p. ex., os adolescentes de uma escola secundária, todas as crianças do País destinatárias de uma propaganda prejudicial à saúde etc.).

Na defesa de pessoas ou de grupos determinados, fala-se em intervenção pela qualidade da parte; na defesa da coletividade como um todo, fala-se em intervenção motivada pela natureza da lide. É claro, entretanto, que mesmo neste último caso, o Ministério Público sempre intervém em defesa de um interesse ligado a pessoas, ou seja, aqui se trata de um grupo mais amplo de pessoas, isto é, o interesse da convivência social como um todo.

O que deve o Ministério Público buscar quando atua num processo?

A Constituição, em seu art. 127, caput, dá o denominador comum: ou é o zelo de interesses sociais (sempre) ou individuais (se indisponíveis).

Há interesses que são objetivamente indisponíveis (por exemplo, na ação penal, temos o conflito entre o direito de punir estatal e a liberdade individual); outros interesses, porém, são relativamente indisponíveis à vista de quem seja seu titular (ex.: um imóvel pertencente a uma pessoa incapaz).

Na atuação em favor de uma indisponibilidade absoluta, ligada a um interesse público impessoal, a legitimidade de agir do Ministério Público faz pressupor atuação desvinculada, a priori, da defesa de pessoas determinadas; contudo, nas hipóteses de atuação em favor de uma indisponibilidade absoluta ou relativa ligada à qualidade de uma das partes, sua atuação é nitidamente protetiva, finalisticamente destinada, a priori, à defesa de pessoa ou grupo de pessoas.

Exemplifiquemos com a ação de nulidade de casamento. Nesse feito, Busca o Ministério Público uma atuação previamente desvinculada do interesse pessoal de cada um dos cônjuges. Está ele destinado à busca da procedência do pedido apenas se reconhecer que o casamento foi contraído com alguma nulidade absoluta; em caso contrário, pode o órgão ministerial sustentar a improcedência, mesmo que tenha sido o próprio Ministério Público o autor da ação. Pode, pois, apelar em favor da procedência ou da improcedência do pedido, conforme entenda seja o caso. Contudo, nessa mesma ação, é de perguntar-se qual interesse poderia ter ele em recorrer da sentença, para discutir a só fixação do montante da verba honorária que, esta sim, interessa apenas a partes maiores e capazes

Outro exemplo, agora: suponhamos a atuação ministerial em feito em que haja incapazes. Trata-se de atuação teleologicamente protetiva; não obstante, não é o órgão ministerial obrigado a recorrer a favor do incapaz, que a seu ver não tenha razão. Contudo, se o incapaz obteve procedência de seu pedido, mesmo que ao ver do órgão ministerial não tenha ele razão, não terá agora o Ministério Público interesse processual na reforma da sentença que deu ganho de causa ao incapaz. Ao apelar contra a vitória do incapaz, aí estaria defendendo interesses agora sim disponíveis da outra parte, que é maior e capaz.

Assim, para bem medir sua intervenção, o órgão do Ministério Público deve pois, em primeiro lugar, atentar para a causa que o trouxe ao processo. Vistos, em linhas gerais, os pontos distintivos entre as funções típicas e atípicas, agora resta examinar a distinção fulcrada na titularidade da função, ou seja, se lhe é exclusiva ou não. Quanto à titularidade de função desempenhada pelo Ministério Público, podemos apontar aquela que lhe é exclusiva (apenas e tão-somente a promoção da ação penal pública), distinguindo-a das demais, todas estas concorrentes com outras pessoas ou órgãos.

Adiante faremos abordagem especial de cada uma dessas funções ministeriais.

1.5 Rol constitucional das funções do Ministério Público

1.5.1 A ação penal pública: A primeira das funções do Ministério Público, relacionadas no art. 129 da Constituição, consiste na promoção da ação penal pública.

Já anotamos que a única função exclusiva do Ministério Público consiste na promoção da ação penal pública; o que se fará “na forma da lei” é o como promovera ação (CF,art. 129,I). É uma só a exceção ao princípio da iniciativa exclusiva do Ministério Público na promoção da ação penal pública: trata-se da ação penal privada subsidiária (CF, art. 5J1,LIX).

Qual a natureza jurídica da relação que existe entre o Promotor de Justiça e o oficio que as leis denominam de Ministério Público?

O Promotor de Justiça é agente estatal que exerce o oficio de Ministério Público,estabelecendo-se entre ambos uma relação de organicidade e não apenas de representação. órgão e o ministério público ele não representa apenas a Instituição num feito em que atua. Assim, desde que o Órgão tenha atribuições legais para oficiar em função judicial ou extrajudicial, tudo aquilo que ele disser ou, fizer” dentro dos. limites do oficio e das atribuições que desempenha, será a própria Instituição que esta dizendo ou fazendo; nenhum outro órgão, por mais hierarquizado que seja, poderá substituir sua vontade lançada em sua manifestação, desde que o ato praticado tenha provindo de quem tenha atribuições para praticá-lo. O Promotor de Justiça comunga uma parte do todo da Instituição.

Ademais, é o Promotor um agente político do Estado. O agente político, na lição de Hely Lopes Meirelles, é um dos órgãos da soberania do Estado, encarregado de tomar as últimas decisões, na esfera de suas atribuições, sobre matérias que a própria Constituição lhe incumbiu. Responsabiliza, pois, no exercício regular de suas funções, ao próprio Estado, não a si mesmo nem à Instituição a que pertence.

Na promoção da ação penal pública pelo órgão do Ministério Público, vemos o exercício de urna parcela direta da própria soberania do Estado (aqui estamos considerando soberania sob o ângulo analisado por Herculano de Freitas e retomado por Ataliba Nogueira, como o poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar competências).

O direito de punir – jus puniendi – tem como seu titular o Estado soberano. Entretanto, para que esse poder-dever seja atuado em concreto, há vários momentos que devem ser transpostos, cada um deles de exercício de soberania por órgãos diferentes do Estado: a) a edição da lei (pelos Poderes Legislativo e Executivo); b) a acusação penal (pelo Ministério Público); c) a jurisdição penal (pelo Poder Judiciário); d) a execução penal (pelos Poderes Judiciário e Executivo).

Tem sido objeto de disputa a posição do “Ministério Público no processo penal: seria ele parte sui generis (Manzini, Tomaghi); parte imparcial (De Marsico, Noronha); parte parcial (Camelutti); parte material e processual (Frederico Marques); parte formal, instrumental ou processual (01- medo,Leone, Tourinho); não é parte (Otto Mayer, Petrocelli)?

Convém lembrar que Manzini sustentou só não ser o Ministério Público parte no sentido material, porque não é seu o direito que promove, mas do Estado soberano; lembrou o grande penalista que o Ministério Público não tem um interesse seu contraposto ao de alguém, antes e fora do processo.

Entretanto, acolhida a teoria da organicidade (não só entre o Prol11otor e o Ministério Público, mas entre este e o Estado soberano), é possível objetar a estas conclusões, aceitando seja a Instituição parte material e formal no processo penal.

Assim, o Ministério Público, sobre ser parte no sentido material, é também parte formal ou instrumental. Sua imparcialidade é meramente moral, não é referida em sentido técnico. Ser parte é ser titular de ônus e faculdades processuais. Seu dever de buscar a verdade, sua liberdade de acusar ou de pedir a absolvição, por certo não desnaturam sua posição de órgão do Estado, que concentra nas mãos a titularidade exclusiva de promover o direito de punir do Estado.

1.5.2 O defensor do povo: Impõe o art. 129, II, da Constituição ao Ministério Público o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na própria Constituição, com a obrigação de promover as medidas necessárias a sua garantia.

Com efeito, na fase que antecedeu a Constituinte de 1988, muito se falou na criação de um defensor do povo. Deveriam estas funções recair na pessoa de um ombudsman, à guisa dos país escandinavos? Deveríamos criar um órgão novo? Acaso estaria correto que ao próprio Ministério Público se confiassem essas novas funções?

Certamente por levar-se em conta a tradição de atendimento ao público que têm os Promotores de Justiça em todo o País, acabou por prevalecer esta última opção na Constituição vigente.

Nessa relevantíssima função, entre outras providências, deve o Ministério Público empreender firme combate à violação da ordem social e, em especial, dos chamados direitos humanos. Como exemplo, lembremos deve ele zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos constitucionais; buscar seja dado real atendimento médico nos hospitais e postos de saúde; fiscalizar a existência de vagas nas escolas; zelar pelas condições em que se encontram os presos. Em todos esses casos, não se podem perder de vista os limites das atribuições de cada órgão ministerial. Trata-se, outrossim, de função nova, que exige, naturalmente, as maiores cautelas e equilíbrio.

O correto exercício dessa atividade supõe que o órgão ministerial: a) receba petições, reclamações ou representações de pessoas interessadas; b) instaure, presida ou determine a abertura de procedimentos administrativos
para apuração de denúncias e posterior propositura de ações civis públicas ou de ações penais públicas de suas atribuições; c) expeça notificações e requisite informações; d) realize audiências publicas com entidades da sociedade civil.

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevê algumas funções tipicamente de ombudsman para o Ministério Público, como, por exemplo, o zelo pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e aos adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis, a inspeção de entidades públicas e particulares com adoção das providências necessárias, ou a expedição de recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação(art. 201, VIII, XI, e § 5Q,c).

1.5.3A promoção do inquérito civil e da ação civil pública: Esta matéria, pela riqueza e por suas peculiaridades, adiante merecerá exame mais direto.

1.5.4 A ação de inconstitucionalidade e representação interventiva: A ação direta de declaração de inconstitucionalidade cabe, na área do Ministério Público, e abstraídos agora os demais legitimados ativos, ao Procurador Geral da República (CF, atts. 129, IV, e 103, VI). No Estado de São Paulo, seguindo o modelo federal, correspondente iniciativa é afeta ao Procurador-Geral de Justiça (CF, art. 125, § 2Q;CE, art. 90, III).

Naturalmente, a existência de tais ações diretas de inconstitucionalidade em nada obsta à possibilidade de, em concreto, ou seja, inter partes, ser incidentemente reconhecida a inconstitucionalidade, alegada como defesa.

Quanto à representação interventiva, de forma esquemática, podemos dizer que pode ser ela: l°)espontânea (ou de oficio: CF, art. 84, X); 2Q) provocada- que por sua vez se divide em: a) discricionária (sob solicitação do Poder coacto ou impedido – art. 36, I, da CF); b) vinculada (após requisição de tribunal ou após provimento de representação interventiva: arts.36, Ia IV e 35, IV, da CF).

1.5.5A defesa das populações indígenas: O art. 129, V, da Constituição comete ao Ministério Público a defesa em juízo dos “direitos e interesses das populações indígenas”.

Trata-se de mais uma hipótese de atuação propter partem, na defesa e um interesse personificado (ou seja, atuação protetiva). A matéria, v. nosso O acesso à justiça e o Ministério público, cit., Cap.3, 22.

Além da legitimação conferida ao Ministério Público, a Constituiçãotambém atribui iniciativa concorrente aos próprios índios e a suas comunidadese organizações (CF, art. 232). Note-se que no interior do Estado de São Paulo e até em favelas da Capital existem grupos de índios, justificando-se o zelo da atuação ministerial na defesa dos valores de que cuidam os arts. 231, 232 e 210, § 2° (proteção da organização s9cial, dos costumes,das línguas, das crenças, das tradições, dos direitos originários sobre as terras dos índios).

Entendemos deva a proteção individual dos índios ser feita perante a Justiça comum; apenas a “disputa sobre direitos indígenas” cabe na competência dos juízes federais (CF, art. 109, XI). Neste último caso, trata-se da defesa de direitos difusos ou globais; a não se entender assim, admitir se que toda e qualquer proteção aos interesses indígenas apenas caiba perante a Justiça Federal, seria autêntico desfavor aos índios, não desejado
pela Lei Maior, até por não estar a Justiça Federal estruturada em todo o País, como o está a Justiça comum.

1.5.6 A expedição de notificações e de requisições: Os incs. VI e VIII do art. 129 da Constituição disciplinam o poder ministerial de expedir notificações e requisições.

Embora colocados tais incisos dentre o rol das funções ministeriais, na verdade, não se trata de funções, mas de instrumentos de atuação. Cuidaremos da matéria quando comentarmos o art. 201 do Estatuto.

1.5.7 O controle externo da atividade policial: Em seu art, 129, VII, a Constituição comete ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, “na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior”, o que vale dizer, em face do § 5° do art. 128, tratar-se da lei complementar de organização de cada Ministério Público, sem prejuízo de eventuais normais gerais traçadas pela Lei Nacional do Ministério Público (art. 61, § 1°, II, d).

Foi verdadeira tendência da Constituinte estabelecer um sistema completo de freios e contrapesos entre as instituições: por poucos votos não foi aprovado o Conselho Nacional de Justiça, para controle externo da Magistratura e do Ministério Público; foi, entretanto, mantido um adequado sistema de controle externo sobre o Município (art. 31), sobre as entidades da administração direta e indireta (arts. 70 e 74) e, agora, instituído o controle externo sobre a atividade policial (art. 129, VII).

Qual seria o objeto dessa forma de controle externo do Ministério público sobre a atividade policial, antevisto pelo constituinte e até hoje não regulamentado adequadamente na maioria das leis locais?

É multifária a atividade policial, mas, a nosso ver, o controle que, o ministério Público deve exercer sobre ela diz respeito essencialmente as áreas em que a atividade policial se relaciona com as funções institucionais do Ministério Publico: trata-se a investigação e crimes, dentro e fora dos inquéritos policiais, ou seja, a tarefa de polícia judiciária e de apuração de infrações penais.

A expressão controle, advinda do francês, significa ato de vigilância, verificação e fiscalização administrativa; inspeção, supervisão, exame minucioso das atividades, dos órgãos.

Mas como será exercido tal controle? Conforme já se antecipou, depende do advento de lei complementar local; necessariamente, a lei nacional de que cuida o art. 61, § III,II, d,da Constituição da República, deveria impor a respeito algumas normas gerais – entretanto, a Lei 8.625/93 ficou muito aquém do desejável.

Para adequado adimplemento de tal atribuição constitucional, penso devamos caminhar para a fiscalização da apresentação ou não-apresentação de notitia criminis, que nem sempre é canalizada regularmente para a apuração dos atos criminosos; para o acompanhamento e melhor coleta de elementos de convicção destinados.a formar a opinio delictis; para a apuração de crimes em que estão envolvidos policiais, governantes ou pessoas que possam influenciar negativamente na correta apuração dos fatos delituosos; para as visitas ordinárias ou extraordinárias às Delegacias e aos locais onde estejam pessoas sujeitas à prisão processual; para o acompanhamento de lavratura de atos e termos policiais (boletins de ocorrência, flagrantes,oitiva de testemunhas, indiciados ou vítimas); para o combate à tortura e aos meios ilícitos de prova.

Nessa tarefa, ao constatar o cometimento de ilícitos penais ou a existência de falhas administrativas, deverá o órgão ministerial tomar providencias na esfera de suas atribuições (CF, art. 129, I a III); na área administrativa ou penal, que exceda o campo de sua atuação, deverá o órgão ministerial dirigir-se às autoridades competentes, pertençam estas ao próprio Ministério Público ou não.

A propósito do inquérito policial, anoto ser tarefa que exige cuidados especiais o adequado relacionamento do Ministério Público e da Polícia civil,especialmente na fase do inquérito. No acompanhamento das atividades da Polícia Judiciária, pode ocorrer que o Promotor de Justiça surpreenda prisões ilegais ou até mesmo torturas, nas suas visitas às Delegacias ou à Cadeia Pública. Nesses casos, deve agir com rigor, dentro de suas atribuições, coibindo os abusos de imediato com os meios legais a seu alcance, bem como apurando as responsabilidades.

Em nosso sistema jurídico, o Delegado de Polícia preside o inquérito o que não o exime do dever de atender às requisições efetuadas pelo órgão do Ministério Público, até mesmo durante a elaboração do inquérito. O órgão ministerial pode fazer tais requisições por oficio ou, se presente ao ato extrajudicial, pode fazê-las pessoalmente. Tratando-se de requisições formuladas por quem tenha atribuições para tanto, são elas ordens que exigem cumprimento (CF, art. 129, VIII).

Com efeito, corretamente se tem reconhecido que o órgão ministerial pode efetuar requisições seja antes do inquérito (como a própria requisição do inquérito), seja depois de ultimado este (como quando, em vez de denunciar, entende ele necessárias novas diligências), seja, enfim, durante o andamento do dito inquérito policial, como titular exclusivo da promoção do ius puniendi estatal: seu poder de requisição também se destina à apuração das infrações penais por parte da Polícia.

1.5.8 A representação da Fazenda Pública: A Constituição vedou aos órgãos do Ministério Público a representação das entidades de direito público (CF, art. 129, IX), vencida que está a norma transitória que dispunha a respeito (ADCT, art. 29, § 511).

Anote-se, porém, uma curiosidade: embora a representação judicial da Fazenda tenha sido a própria causa histórica da Instituição, o Ministério Público acabou dela se divorciando. Hoje, é o Ministério Público um órgão de defesa da sociedade e do indivíduo contra seus agressores, entre os quais não raro se encontra o próprio governo ou os governantes.

E hoje, de fato, há incompatibilidade de o Ministério Público exercer a advocacia da Fazenda. Se de um lado vez ou outra se apontam vantagens práticas, vemos, antes, verdadeira incompatibilidade real.

Aqui devemos insistir na distinção efetuada por Renato Alessi, a que mais de uma vez já nos socorremos, quando se analisam as facetas do interesse público: com efeito, é possível distinguir, de um lado, o modo pelo qual a Administração vê o interesse da coletividade (interesse público secundário) e, de outro, o efetivo bem geral (interesse público primário).

À primeira vista, poderia parecer chocante nem sempre coincidam um e outro ângulo do mesmo interesse público. Acredito, contudo, ser injustificada qualquer surpresa quanto a essa sempre virtual e às vezes efetiva descoincidência. Por exemplo, a Administração pode, até por erro técnico, entender de construir uma usina nuclear em condições ou locais inadequados, a trazer graves perigos para a coletividade; pode pretender a inundação de regiões de valor cultural ou ecológico, como vastas florestas tropicais; pode licenciar ou até mesmo explorar o funcionamento de uma siderúrgica que, dezenas de anos a fio, lança poluentes sólidos na atmosfera, com lesões incalculáveis à coletividade.

Seriam estas decisões, tomadas não raro ao sabor de ocasionais influências Políticas ou econômicas,às vezes até subalternas ou criminosas, Apenas porque partidas da própria Administração, seriam elas, por si sós, sempre e sempre, qual presunção absoluta, um efetivo bem para a coletividade? E nos outros países seria diferente? Tantas decisões de ir à guerra, de dividir países, de investir na corrida armamentista, de desviar recursos do povo para contas particulares etc..Tudo isto mostra que não se pode erigir a uma presunção absoluta a suposição de que o governante esta sempre a defende o real bem comum. Tanto que volta-e-meia retrocede-se em decisões de todo o tipo, à só mudança de governos.Daí a descoincidência, pelo menos virtual, entre o aludido interesse público primário e o secundário.

Não estamos aqui a nos referir a meras opções ou a juízos discricionários de conveniência administrativa tomados pelos governantes. Falamos antes de ilegalidades não raro cometidas pelos administradores.

Voltemos, porém, à questão da representação da Fazenda. Suponhamos que o Procurador-Geral da República, enquanto acumulava as funções de Ministério Público e de chefe da advocacia da União, estivesse a dar um parecer num processo judicial. Substancialmente, fá-lo-ia com representante da Fazenda ou como órgão do Ministério Público? É evidente que ambos os interesses precisam. de ser bem zelados, mas por órgãos distintos, porque se trata de interesses potencialmente inconciliáveis nas mãos de um só órgão. Interesse e fiscalização não se conciliam, como já foi reconhecido exatamente a esse propósito por nossa mais alta Corte.

1.6Norma residual ou de extensão

Agora, o inc. IX do art. 129 da Constituição, sobre vedar ao Ministério Público a defesa e a consultoria das pessoas jurídicas de direito público interno, ainda lhe confere a possibilidade de receber outros encargos, a ele cometidos pela legislação infraconstitucional, desde que se trate de funções compatíveis com sua finalidade.

Trata-se de norma que deve ser decomposta em duas partes: a) temos, de um lado, a norma de encerramento, pela qual poderá o Ministério Público exercer outras funções, desde que compatíveis com suas finalidades institucionais; b) de outra parte, temos a já aludida vedação para a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas – matéria sobre a qual nos reportamos às observações já anteriormente formuladas.

À vista da destinação institucional do Ministério Público, podemos apontar uma conseqüência mais imediata da norma ora examinada: a Vedação da defesa de interesses exclusivamente individuais indisponíveis (CF, arts. 129, IX, e 127, caput).

Diante disto, seria de perguntar se se toma possível desde já recusar algumas funções atípicas que o Ministério Público vem atualmente exercendo (como a ação penal ex delicto, cf. art. 68 do CPP). Acreditamos que a resposta ainda seja negativa, ao menos diante da forma absoluta com que colocada a proposição. Realmente, o que justifica a intervenção ministerial nesse encargo, que não é de representação e sim de substituição processual da vítima pobre, é o acesso à Justiça, e, para tal fim, a lei capacita o Ministério Público, que deve exercitar tal defesa, ao menos enquanto não seja ela cometida e exercida efetivamente pela Defensoria Pública.

1.7 As notificações e as requisições

Como já antecipamos, o art. 129 da Constituição, em seus incisos, menciona algumas “funções institucionais” do Ministério Público que, na verdade, são antes instrumentos para desempenho de funções institucionais, que funções institucionais por si mesmas.

Sobre elas discorreremos quando dos comentários ao art. 201 do Estatuto.

1.8 O Promotor “ad hoc”

Ao contrário do que o permitia anteriormente a legislação infraconstitucional, agora está vedada a figura do Promotor ad hoc para o exercício de funções do Ministério Público (CF, art. 129, § 2Q).

A propósito das conseqüências decorrentes da ausência do órgão do Ministério Público em audiência, remeto-me a estudos anteriores, onde examinamos a questão mais detidamente.

Na área da infância e da juventude, na apuração do ato infracional, devemos partir do pressuposto de que foi extinto o procedimento de ofício, com o acolhimento do princípio constitucional do devido processo legal. Toma-se imperioso o oferecimento de representação ministerial para a apuração de infração praticado por adolescente, como mera decorrência de imposição constitucional que visa a preservar a imparcialidade do Juiz. Conclui-se, pois, pela invalidade do procedimento para apurar ato infracional, Sem a observância do devido processo legal. Outrossim, em todos os casos Em que o Estatuto exige a oitiva do Ministério Público, não se pode admitir Oficie Promotor ad hoc, prática hoje vedada pela Lei maior.

1.9 O princípio da obrigatoriedade

É muito comum invocar-se o princípio da obrigatoriedade, quando se fala da promoção da ação penal pública ou da ação civil pública pelo Ministério Público. Indispensável se toma, pois, alcançar-se o verdadeiro significado do princípio.

Embora, em síntese, se pudesse dizer, de forma mais simples, que tal Princípio consiste na obrigação que tem o Promotor de propor a ação, bem como na impossibilidade de dela desistir, veremos que a matéria está a exigir uma compreensão menos simplista, e portanto mais completa e adequada do aludido princípio.

Devemos colocar com mais clareza a questão da obrigatoriedade de agir por parte da Instituição: identificando o Ministério Público uma hipótese em que, por força de lei, lhe caiba agir, não se compreenderia fosse ele recusar-se a fazê-lo.

Não se admite, destarte, que o órgão do Ministério Público, identificando uma hipótese na qual a lei exige sua atuação, se recuse a agir; é nesse sentido que se pode dizer, corretamente, que sua atuação lhe é um dever,seja quando se trate de ajuizar uma ação penal, seja quanto ao ajuizamento da ação civil, seja até mesmo para interpor qualquer recurso.

Todavia,acrescente-se, se não tem o Ministério Público discricionariedade regrada para agir ou deixar de agir quando identifica hipótese de agir, ao contrário,tem – e precisa mesmo ter – a necessária liberdade para apreciar se ocorre hipótese em que sua atuação’ se toma obrigatória.

Essas considerações valem tanto para o processo civil quanto para o Processo penal. Neste último, o Ministério Público também tem ampla liberdade para apreciar os elementos de convicção do inquérito policial, para verificar se identifica ou não a existência de crime a denunciar; mas, se reconhece a presença de tal pressuposto e se proclama que a seu ver houve crime, a partir desse momento não pode recusar-se a agir.

Assim, viola o princípio da obrigatoriedade o pedido de arquivamento de inquérito policial, formulado por Promotor de Justiça que às expressas reconheça, por exemplo, estar demonstrado que o indiciado furtou mas, por razões de oportunidade ou conveniência, deixa de denunciar. Hã exceção para o que aqui se disse quando o Ministério Público deixa de denunciar por falta de justa causa, ou quando o Ministério Público esteja autorizado pela lei a transigir, com mitigação do princípio dá obrigatoriedade (CF, art. 98, I; Lei 9.099/95, arts. 76 e 89).

No processo penal, além da regra do art. 42 do CPP, há ainda mais uma limitação à disponibilidade da iniciativa do Ministério Público: interposto um recurso, dele não pode desistir o órgão ministerial (CPP, art. 576).

É matéria controvertida a questão de admitir-se ou não a desistência na ação civil pública proposta pelo Ministério Público, bem como a questão da possibilidade de desistir-se do recurso interposto por órgão desta Instituição em matéria cível. Já temos sustentado, em trabalhos doutrinários, essa excepcional possibilidade, por razões que foram discutidas em sede própria.

A transação no processo penal ainda é inviável, feita apenas a ressalva das possibilidades, modestíssimas a nosso ver, hoje trazidas pelos arts. 76 e 89 da Lei 9.099/95, com base no art. 98, I, da Constituição. Na ação civil pública, sob o aspecto puramente técnico, e à falta de autorização legal, a rigor parece-nos impossível a transação por parte do Ministério Público, porque o substituto processual não é titular do direito material que defende em juízo; contudo, já antevemos concessões, de caráter pragmático e também excepcional, ao aludido princípio, 11exceto em matéria em que a própria lei, por expresso, vedou a transigência.

Não há obrigatoriedade absoluta em prosseguir na ação civil pública de conhecimento, objeto de desistência por parte de um dos outros colegitimados. Com efeito, nesse caso, a decisão do órgão ministerial, sobre a questão de prosseguir-se ou não na ação, sujeita-se aos mesmos princípios informadores da viabilidade para a própria propositura da ação (art. 5°, § 3°, da Lei 7.347/85, alterado pela Lei 8.078/90). Em outras palavras, se o órgão do Ministério Público se convencer de que não ocorre hipótese em que se faça necessário o prosseguimento do feito, não será obrigado a prosseguir na ação que, aliás, não seria obrigado a propor.

Julgado, porém, procedente o pedido formulado por um dos co-legitimados para a ação civil pública, se na execução advier desistência, agora ministério Público será obrigado a assumir a promoção da execução, porque aqui não haverá como não se identificar,a existência da violação do direito, já reconhecida Jurisdicionalmente, aliás.

2. Funções previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente

As funções institucionais a que se refere o art. 200 do Estatuto compreendem não só aquelas especificamente referidas no art. 201, bem como qualquer outra função que a Lei 8.069, de 13.7.90, tenha expressa ou implicitamente cometido ao Ministério Público.

Diversamente do que talvez pudesse parecer à primeira vista, nem todas as funções de Ministério Público previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente caberão ipso facto aos Promotores de Justiça da Infância e da Juventude.Com efeito, o Estatuto contém diversas normas de atuação ministerial que seguramente acabarão sendo objeto de aplicação por outros órgãos da Instituição, que atuam em outras áreas. É o que pode ocorrer, por exemplo, com as atribuições penais (arts. 228-244) ou mesmo quando da aplicação das normas atinentes à proteção da criança ou do adolescente portador de deficiência (art. 208, 11).Não se pode, pois, dizer, tout court, que as funções de Ministério Público, previstas nessa lei, serão, pura e simplesmente, xercidas pelos Promotores de Justiça da Infância e da Juventude, mas sim que “serão exercidas nos termos da respectiva Lei Orgânica” do Ministério Público (art. 200).

Esta disciplina legal permite, sem dúvida, que diversas funções legais cometidas ao Ministério Público pelo Estatuto possam ou, conforme disponha a lei local de organização do Ministério Público, até mesmo devam
ser exercidas por outros órgãos da Instituição, levando-se em conta o princípio da especialidade.

Desenvolvamos um dos exemplos acima lembrados. Certo é que toda criança e todo adolescente estão a exigir, por parte do Ministério Público, uma atuação protetiva; da mesma forma, toda pessoa portadora de deficiência também está a exigir o mesmo tipo de intervenção ministerial (art. 5i) a Lei 7.853/89). Contudo, passa a ser evidentemente mais agravada a circunstancia de ser a criança ou o adolescente portador de qualquer forma de deficiência física ou psíquica.

Qual, entretanto, a condição mais peculiar, nesse caso em que se somam duas condições que estão a exigir referida atuação protetiva? Embora a rigor, uma ou outra solução pudessem ser sustentadas, devemos buscar aquela que seja a melhor, ou seja, aquela que mais adequadamente permita a proteção integral da criança portadora de deficiência, o que corresponde a um plus de hipossuficiência, a ensejar um redobramento da proteção ministerial.

No fundo, propendendo-se por uma ou por outra opção, de modo algum se prejudicaria o bem jurídico a final objetivado pela lei, pois ambas as formas de atuação ministerial são protetivas. Contudo, em existindo a Promotoria de Justiça da Pessoa Portadora de Deficiência, pela sua especialização, será a nosso ver a que melhor concentrará em mãos os conhecimentos técnicos da Instituição, apropriados para exigir até mesmo em juízo o fornecimento de educação especial para as pessoas portadoras de deficiência, o acesso a logradouros e edifícios públicos e de uso público, o fornecimento de transportes adequados, a realização de exames médicos, que, quando oportunamente feitos, podem evitar muitas formas de comprometimentos futuros.

Em suma, no exemplo examinado, podemos concluir que, desde que esteja em discussão um direito ou um interesse, ainda que individual, de criança ou de adolescente portador de deficiência, e desde que esse bem jurídico esteja relacionad6, de alguma forma, com a própria condição de deficiência, a intervenção protetiva há de ser desempenhada pela Promotoria de Justiça da Pessoa Portadora de Deficiência (como numa ação, ainda que individual, em que se discuta o acesso especial a um meio de transporte). Entretanto, ainda que haja num feito interesse de criança ou adolescente portador de deficiência, mas nele não esteja em questão a peculiar condição de deficiência do menor, nele intervirá apenas o Promotor de Justiça da Infância e da Juventude ou o Promotor de Justiça Cível, conforme o caso, dentro dos limites fixados na lei local do Ministério Público.

Enfim, não podemos deixar de enfatizar quão estreita é a ligação do Ministério Público com as normas de proteção à criança e ao adolescente, haja vista tratar-se de interesses sociais ou individuais indisponíveis.

Analisando os principais direitos e interesses ligados à proteção da infância e da juventude, como foram relacionados pelo art. 227, caput, da Constituição, vemos, com efeito, que a indisponibilidade é a nota predominante em todos eles. Com efeito, diz a Constituição ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Desta forma, não se pode excluir a iniciativa ou a intervenção ministerial em Qualquer feito judicial em que se discutam interesses sociais ou individuais indisponíveis ligados a proteção da criança e do adolescente; o mesmo se diga Quando se trate de interesses coletivos, difusos ou individuais homogêneos Ligados à proteção da infância e da juventude.

3.A Lei Orgânica local do Ministério Público

Cabe à Lei Orgânica de cada Ministério Público disciplinar o exercício das funções a ele cometidas pelo próprio Estatuto.

Na área do Estatuto, portanto, as funções cabentes ao Ministério Público da União, por força do Estatuto, são exercidas pelo Ministério Público Federal,pelo Ministério Público do Trabalho ou pelo Ministério Público do Distrito Federal ou Territórios, conforme o caso, segundo a Lei Complementar 75, de 20.5.93 (art. 128, I, e § 511, caput, 13parte, da CF).

Quanto ao Ministério Público dos Estados, além das respectivas Leis Complementares de Organização (art. 128, lI, e § 5Q,caput, 2a parte, da CF), ainda há uma lei federal que estabelece normas gerais para sua organização do Ministério Público dos Estados (art. 61, § 1Q,lI, d, da CF),13lei esta que também deveria ser aplicável ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, posto integre esta Instituição o Ministério Público da União,que é organizado por Lei Complementar própria.

Além de conferir-se à lei federal a explicitação de normas gerais de Organização do Ministério Público dos Estados, do Distrito Federal e Territórios( CF,arts. 21, XIII, 22, XVII, 48, IX, 61, § lQ,lI, d, 68, § lQ), ainda previu a Constituição pudesse a lei complementar respectiva estabelecer lhe o estatuto, e, o que é mais importante, até mesmo fixar-lhe novas atribuições. Conquanto caiba à própria União legislar sobre processo (CF, art. 22, I, ressalvada a exceção de seu parágrafo único, bem como a matéria procedimental de competência concorrente dos Estados, cf. art. 24, X e XI),o permissivo constitucional que faculta à legislação complementar local estipular normas de atribuição do Ministério Público permite que a legislação local disponha sobre novas áreas para sua atuação e intervenção processual.

Ademais, cumpre deixar claro, posto óbvio, não é apenas o Promotor de Justiça da Infância e da Juventude o único órgão do Ministério Público que zela pelos direitos e interesses ligados à proteção dos menores. O Promotor de Justiça Criminal, o Promotor de Justiça de Família, o Promotor de Justiça Cível, o Procurador de Justiça – enfim, toda a Instituição está investida na proteção da infância e da juventude, na forma e nos limites da lei local de organização do Ministério Público.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ECA comentado: ARTIGO 200/LIVRO 2 – TEMA: MINISTÉRIO PÚBLICO
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