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Conheça a juventude das comunidades de São Paulo, que fazem dos saraus redutos da democracia.

A palavra falada empodera o jovem nos encontros nas comunidades.

O palco é escuro e a luz marca um círculo definido em seu centro. É a mesma luz que atravessa o papel trêmulo nas mãos da jovem. É a primeira vez que ela recita, e um fino fio de transpiração escorre por sua testa. Encosta os lábios no microfone e o som sai abafado, mas forte. A plateia está em silêncio. Quando uma jovem recita o poema, sua alma sai desejosa de pertencer ao lugar: ela pode dizer o quiser e expressar o que sente. Pode ser ela mesma e gostar.

A ansiedade do primeiro, segundo, até de um empoeirado poema, acontece a todo tempo no palco do Sarau do Binho. Manifestação cultural consolidada na Zona Sul de São Paulo, o sarau teve muitas casas e se desdobra em muitos formatos, mas mantém acessa a chama de como começou: é um espaço onde as pessoas podem declamar versos. “É uma necessidade de fazer arte, se colocar no mundo, dizer não a muita coisa que está aí. Acho que no fim, é uma identidade, porque o sistema é tão esmagador e opressor, e o sarau vem para dar essa voz.”

Quem assim o diz é Robinson Padial, o Binho, organizador do sarau que leva o seu nome. Poeta tardio, ele extravasou o amor pela literatura começando com a Noite da Vela, que acontecia no primeiro bar ocupado pelo sarau, no Campo Limpo. Por causa de um aval que nunca saia, eles deixaram o lugar, e o sarau adquiriu um caráter de flutuação: está onde pode acontecer. Em um momento ocupa o Espaço Clariô, em Taboão da Serra. No outro, nas escolas que os secundaristas ocupavam para não fechar. Onde quer que esteja, o Sarau do Binho redesenha o que é a periferia, e como os jovens que crescem nela a enxergam.

O que é periférico, marginal, não é somente o que contorna o centro. Binho entende o contexto periférico da literatura como uma demarcação de território, algo que nasce e se firma como manifestação cultural autêntica de determinada localização. No âmbito geográfico, entretanto, ele pensa as definições muito turvas e dependentes de referencial. “O centro de São Paulo é cheiro de periferias, o Brasil é uma periferia do mundo”. O periférico do jovem que cresce em Campo Limpo ou em Itaquera pode ser a Praça da Sé, não o sarau que acontece na esquina da sua casa.

E não se pode presumir que, por brotar e acontecer nessas regiões, a literatura de periferia tem uma fala estática. Não são poemas sobre buracos na rua, sobre violência policial, sobre o que por estereótipos se atribuem a essa manifestação literária – eles falam de tudo o que a poesia permite, de pássaros à emancipação feminina. “É o modo como cada um está vendo seu mundo. Não é porque estamos em uma localização geográfica periférica que o tema precisa ser periferia. O tema é o universo”, diz Binho.

De uma longa relação com a escrita e teatro, a poetisa Luiza Romão, de 23 anos, sentiu a força da palavra falada na primeira vez que participou do Slam da Guilhermina. “Minha questão é o lugar de artista na intervenção da realidade.” ela relata. Escrever a poesia vem depois de declamá-la; muitas vezes Luiza se surpreende com o que criou quando se depara com o escrito.

Para ela o ato de poetizar tem tudo a ver com o empoderamento da juventude. “Faz você ter consciência de sua história, do que é ser sujeito artista no mundo e mobilizar pessoas”. O sarau é um reduto de democracias, as poéticas e as do dia a dia.

Sua poesia se desdobra desde os temas políticos – o vídeo Projétil de Lei, que fala sobre a redução da maioridade penal, viralizou na internet – até o chamado “poema tirada”, em peças como “Ele me ligou a cobrar, mas estava sem crédito comigo”. É característica do jovem, também do poeta, mudar seus ares.

O que os saraus fazem hoje é o que fizeram desde sempre: criar espaços para a arte. Eles podem acontecer em teatros pequeninos no Campo Limpo ou entre estudante secundaristas. Podem acontecer em qualquer lugar que possa reunir jovens e poetas. Porque nesses redutos, eles se posicionam sob o holofote de sua própria história. É o lugar de fala, e falar é existir e resistir.

Conexão Brasil-Angola

Ermildo Panzo compara a declamação de poemas ao ato de degustar uma fruta: tem de ser feito com a boca inteira, dentes e língua. “Quando queremos dizer não, temos que imaginar a mordida em uma maçã. Quando queremos acariciar uma palavra, imaginamos a delicadeza com que descasamos uma banana.”

Ermildo é um poeta de muitas terras. Nasceu em Angola, foi criado em Cuba e aportou no Brasil direto para a casa de Binho, que ele considera “uma das artérias funcionais da poesia periférica dos sarais”. Rindo, ele conta que em suas primeiras apresentações, fechava os olhos com força na hora em que declamava, por vergonha. Mas hoje, poeta consagrado, entende o que as poesias exigem: é preciso cerrar as pálpebras para buscar dentro do corpo a costura entre o público e quem declama.

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