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ECA: ARTIGO 102 / LIVRO 2 – TEMA: MEDIDAS DE PROTEÇÃO
Comentário de José Luís Alicke

Ministério Público /São Paulo

Para todos os atos da vida civil, o ser humano precisa utilizar-se de sua certidão de nascimento, da qual dependem, p. ex., a obtenção de caderneta de vacinação, matrícula em escola ou creche, carteira de identidade, alistamento militar, título de eleitor, carteira de trabalho etc.

Estima-se que aproximadamente 21% dos nascimentos ocorridos no Brasil não são levados a registro (fonte Agência ANDI – Infância na Mídia, 1.8.2003).

Outrossim, segundo dados fornecidos pelo “CLAVE – Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde”, existem, em nosso País, cerca de 30 milhões de crianças e adolescentes vivendo em situação de extrema penúria e abandono, cujos pais ou responsáveis, em sua grande maioria, não reúnem condições para providenciar o registro civil desses infantes e jovens, que, assim sendo, não são considerados – sob o ponto de vista jurídico – cidadãos e, consequentemente, não têm direitos assegurados como tais, porquanto a circunstância de não possuir registro de nascimento

significa viver a margem da sociedade, sem nome, sem existência jurídica, sem cidadania.

Em face dessa realidade (observe-se que 30 milhões de crianças e adolescentes carentes, abandonados e infratores, correspondem a população de países como o Canadá ou Colômbia), chega-se facilmente a conclusão de que o tema “regularização do registro civil” toma-se extremamente  relevante, assim como todos os temas ligados à esfera da infância e da juventude.

A regularização do registro civil não significa apenas a mera obtenção de certidões de nascimento ou óbito, mas também, e principalmente, a decorrência natural do respeito aos fundamentos que  constituem o próprio Estado Democrático de Direito, notadamente o respeito aos direitos a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º da Carta Magna).

Pois bem, sob o prisma dos direitos universais dos cidadãos, devemos ter em mente o principio da “preservação da identidade” (insculpido no art. 8n da “Convenção sobre Direitos da Criança” – convenção, essa, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 20.1 1.89 e assinada

pelo Governo Brasileiro em 26.01.90, cujo texto foi aprovado pelo Dec.Legislativo 28, de 14.09.91, do Congresso Nacional, e promulgado pelo Dec. Presidencial 99.7 10, de 2 1.1 1.90), pelo qual fica o Estado-Nação incumbido de proteger e, se necessário, restabelecer os aspectos básicos da

identidade (nome, nacionalidade e laços familiares). É que, no campo do Direito, a análise da pessoa humana é realizada através de três ordens de considerações: direitos de existência (o homem, no sentido biológico do corpo humano e da vida humana, merece a proteção do Direito); direitos da personalidade (são as prerrogativas pertencentes a toda pessoa humana, pela sua própria condição, tais como liberdade, igualdade etc.); e direito à individualização (as pessoas têm direito à própria identidade física, distinguindo-se das demais mediante determinados sinais característicos, como, p. ex., o nome).

Já, sob o enfoque procedimental, especificamente na área da infância e da juventude, as primeiras indagações que são formuladas, visando à identificação das partes e equacionamento do caso posto em juízo, são as seguintes: Qual o nome da criança ou adolescente? Quantos anos tem? Qual é o sexo da criança ou adolescente? Quem são os pais? Sob a ótica policial (distorcida), o indivíduo que anda nas ruas, sem documentação, boa pessoa não é…

Por outro lado, para que um indivíduo possa provar que existe (juridicamente), é necessário que tenha em seu poder a certidão do seu nascimento, devidamente inscrita no Registro Civil. Essa certidão faz prova do nascimento e da filiação. E somente de posse de sua certidão de nascimento

é que a pessoa humana irá conseguir todos os demais documentos exigidos no dia-a-dia de sua vida civil.

O nascimento, A luz do Código Civil brasileiro de 2002 (Lei 10.406), corresponde ao momento a partir do qual a pessoa adquire personalidade civil, tomando-se sujeito de direitos e obrigações (art. ZQ). Coincide com o momento do corte do cordão umbilical e os primeiros sopros de vida. Em

outras palavras, a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida. A morte, para o Direito, coincide com o fato biológico (CCl2002, art. 6º). Cessadas a circulação e a respiração, o homem morre, no sentido jurídico e biológico, desaparecendo a sua personalidade de direito, redundando em efeitos, inclusive, de ordem familiar e patrimonial.

Outrossim, a lei civil impõe a obrigatoriedade de comprovação do nascimento e da morte, através de inscrição em registro público (CC, art. 9º, I). 

Os principais atos da vida civil são documentados no Registro Civil, sendo que os serviços concernentes aos registros públicos, estabelecidos pela legislação civil, para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, foram regulamentados pela Lei 6.015173 (Lei de Registros Públicos). 

Desnecessário dizer que, cuidando-se de criança ou adolescente cujos direitos estejam em estado de vulnerabilidade, e havendo incompatibilidade entre norma prevista na “Lei de Registros Públicos” (Lei 6.01 5, de 3 1.12.73) e disposição do “Estatuto da Criança e do Adolescente” (Lei 8.069, de 13.07.90), é evidente que este último diploma legal prevalecerá sobre aquele (art. 2º, § 2º, da LICC), solução, essa, que já era adotada quando da vigência do revogado Código de Menores.

Regularização do registro civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente

Segundo disposição legal, as medidas específicas de proteção estarão sempre associadas à regularização do registro civil.

Assim, a autoridade judiciária, agindo de ofício ou por provocação do Ministério Público ou de terceiro interessado, ao receber a comunicação de efetiva ameaça ou violação a direito fundamental de determinada criança ou adolescente, tem o dever de, além de adotar as medidas de proteção

cabíveis, também providenciar a regularização do registro civil desse infante. E autoridade judiciária, in caszi, significa juiz de direito da Vara da Infância e da Juventude, nos precisos termos do art. 148, parágrafo único, “h”, c/c O art. 98, ambos do ECA.

Aliás, nesse aspecto, foi sábio o legislador ao atribuir a Justiça da Infância e da Juventude competência para julgamento da hipótese elencada no parágrafo único, “h”, do referido art. 148 do ECA, vez que se trata, efetivamente, da aplicação dos princípios da “concentração de soluções” e

da “especialização”, consistentes em aglutinar, nas mãos de uma única autoridade judiciária (a mais especializada, ou seja, com conhecimento específico sobre o tema particular e predominante), a análise e solução dos vários pontos em discussão levados a apreciação da Justiça, visando áobtenção de decisão mais uniforme, adequada e coerente com as inúmeras facetas do caso concreto, envolvendo criança e adolescente com direito ameaçado ou violado.

Cabe, pois, ao Juízo da Infância e da Juventude apreciar e julgar os casos de suprimento, retificação ou cancelamento do registro civil relativo a crianças e adolescentes cujos direitos estejam sendo ameaçados ou violados. Por outro lado, a contrario sensu, não sendo a hipótese de aplicação das medidas específicas de proteção previstas no Estatuto, eventual regularização do registro civil de crianças ou adolescentes, obrigatoriamente, deverá tramitar perante a Vara de Registros Públicos.

Assim, ao receber a comunicação de que um infante ou jovem, apresentando-se com seus direitos ameaçados ou violados, além de medidas de proteção, necessita de regularização de registro civil, caberá a autoridade judiciária tomar as seguintes providências:

a) Inexistência de registro anterior

Verificada a inexistência de registro anterior, o assento de nascimento da criança ou adolescente será lavrado com os dados disponíveis (art. 62 da Lei de Registros Públicos).

Quando se cuidar, p. ex., de criança abandonada em hospital ou maternidade, deverá ser requisitada sua ficha clínica, contendo as informações que possam identificar o registrando (nome e data de nascimento da criança, nome dos pais ou responsáveis, endereço residencial etc.).

Sendo os pais desconhecidos, o registro de nascimento será precedido de estudo social onde se apurem os dados possíveis relacionados com a criança ou adolescente. Caso não se saiba a data correta de nascimento, será determinada a realização de exame de verificação de idade (E.V.I.),

para obtenção da idade aproximada. Não se logrando apurar outros dados, nada impede que a certidão de nascimento seja lavrada apenas com o nome e data de nascimento da criança ou adolescente. Sendo ignorado qualquer dado relativo ao nome e filiação da criança, a autoridade judiciária deverá indicar o prenome e patronímico que a criança ou adolescente usará na vida civil.

Importante lembrar que o nome é o sinal exterior pelo qual se designa, se identifica e se reconhece a pessoa no seio da família e da comunidade (Washington de Barros Monteiro). Aliás, como se sabe, o nome é composto de um prenome e do respectivo patronímico ou apelido de família. O prenome é individual e pode ser escolhido. Pode ser simples (ex.: João), ou duplo (ex.: João Carlos), ou triplo etc. Antecede o apelido de família. O patronímico ou apelido de família indica a filiação ou estirpe. Pode ser simples (ex.: Silva) ou composto (Costa e Silva).

b) Retificação e cancelamento do registro civil

Verificada, posteriormente, qualquer anormalidade ou erro no registro civil, poderá a autoridade judiciária determinar, após as diligências necessárias, a retificação do respectivo assento, expedindo mandado competente, indicando, com precisão, os dados que devam ser retificados – retificações, essas, que serão feitas a margem do registro, ficando o respectivo mandado arquivado.

As causas que ensejam retificação do assento de nascimento dividem-se em: simples erros materiais, como, p. ex., erros de grafia; erros que exigem melhor comprovação, como, p. ex., data de nascimento, sexo, nome dos pais, nome dos avós, inclusão ou exclusão de apelidos de família.

Na prática, ocorre que o Juízo da Infância e da Juventude, muitas vezes, premido pelas circunstâncias, apesar da falta de informações precisas ou inexistência de dados suficientes, determina (e deve, mesmo, providenciar), em caráter de urgência, a lavratura inicial de certidões incompletas, visando a regularização do registro civil de uma certa criança ou adolescente. Todavia, mais tarde, surgindo dados complementares ou informações atualizadas sobre aquele infante ou jovem, torna-se necessário proceder à retificação ou cancelamento do registro que houvera sido lavrado por ordem judicial.

No caso de duplicidade de registro, o registro a ser cancelado será aquele que foi lavrado por último (em data mais recente), prevalecendo o registro mais antigo, tomando-se o cuidado de analisar se há necessidade de ser retificado o registro original, para inclusão, alteração ou exclusão de algum dado incorreto, omisso ou faltante.

Cumpre notar que o prenome, a princípio, é imutável, ressalvada a hipótese prevista no art. 59, parágrafo único, da Lei de Registros Públicos.A alteração do patronímico, por seu turno, somente será admitida nas hipóteses dos arts. 57 e 58 da Lei de Registros Públicos.

Entretanto, no caso de adoção (note-se que o Estatuto somente prevê uma única modalidade de adoção), a modificação do prenome poderá ser determinada, a pedido do adotante, sendo que o adotando passará obrigatoriamente a usar os apelidos de família do adotante (art. 47, § 5º,do ECA e art. 1.627 do CC/2002).

Nessa hipótese, porém, será lavrado novo assento de nascimento, contendo o nome dos adotantes,.como pais, bem como o nome de seus ascendentes, além dos dados pertinentes ao adotando (art. 47, § 1º, do ECA).Por outro lado, o mandado judicial, que será arquivado, cancelará o registro original do adotando (art. 47, §2º, do EC.A).

Por derradeiro, importante acrescentar que “retificação do registro civil”não significa “ação de investigação ou negação de paternidade”. Por conseguinte, havendo conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, envolvendo discussão a respeito da paternidade, a lide posta

em juízo deverá ser apreciada pela Vara da Família e Sucessões, e não pelo Juízo da Infância e da Juventude. Todavia, se o pai biológico comparecer em juízo e voluntariamente manifestar o desejo de reconhecer a paternidade de determinada criança ou adolescente, a autoridade judiciária deverá

mandar expedir mandado de averbação desse reconhecimento de paternidade junto ao assento de nascimento original, independente da anuência da genitora (arts. 29, § 1º,, “d”, e 59, ambos da Lei de Registros Públicos, c/c arts. 10, 11, e 1.609, IV, do CC/2002).

Procedimento

O procedimento para regularização do registro civil, na área da infância e da juventude, é de rito informal e sumaríssimo, iniciado de oficio ou por provocação de terceiro, devendo o magistrado fazer brevíssima averiguação e instrução, proferindo decisão fundamentada. De se observar; contudo,que a falta de intervenção do Ministério Público acarretará a nulidade do feito, tratando-se o art. 204 do ECA de norma cogente, imperativa.

 

Para o cumprimento da decisão judicial, deverá ser expedido mandado com dados específicos, visto que o oficial do cartório necessita de uma ordem judicial para constar em seus arquivos, porquanto o registro será em caráter excepcional, refugindo ao procedimento regular. Todo registro, nessas condições, estará isento de multas, custas e emolumentos ( § 2*ºdo art. 102 do ECA).

Gratuidade e prioridade da regularização do registro civil

O Estatuto da Criança e do Adolescente, procedendo de maneira totalmente coerente, assegurou a gratuidade (isenção de custas, multas e emolumentos) dos registros e certidões imprescindíveis a regularização do registro civil de crianças e adolescentes cujos direitos acham-se ameaçados

ou violados – registros, esses, que deverão ser realizados com absoluta prioridade -, evidenciando a preocupação do legislador com a inquestionável premência de regularização da identificação civil e respectiva situação jurídica desse enorme contingente de crianças e adolescentes excluídos

e marginalizados da sociedade.

Outrossim, nunca édemais lembrar que a Constituição Federal somente uma única vez menciona a expressão “absoluta prioridade”: exatamente no art. 227, quando assegura os direitos fundamentais da criança e do adolescente, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Conselho Tutelar

 

O Conselho Tutelar, por expressa disposição legal, poderá requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou adolescente, quando necessário (art. 136, VIII, do ECA). Todavia, é importante esclarecer que o termo “requisitar” não significa poder de mandar lavrar assento de nascimento ou óbito, mas tão-somente a obtenção de certidão do que constar em assento já inscrito no Cartório de Registros Públicos. Havendo necessidade de inscrição no Registro Civil, o Conselho Tutelar deverá encaminhar o caso à autoridade judiciária competente (art. 136, V, do ECA).

Conclusão

O Estatuto da Criança e do Adolescente, como todos sabem, trouxe uma nova perspectiva de valorização da infância e da juventude brasileira, refletindo um novo espírito advindo da Constituição Federal de 1988. O grande mérito do Estatuto foi, exatamente, o de colocar o poder coercitivo do Estado como instrumento daqueles que pretendem, realmente, fazer valer o Direito da Criança e do Adolescente, instrumento, esse, que reconhece, na esteira do Direito Constitucional do Cidadão, um conjunto de direitos da população infanto-juvenil e um conjunto de deveres da família,

da sociedade e do Estado.

Assim, está reservado a Justiça da Infância e da Juventude importante papel na solução de conflitos referentes aos direitos da criança e do adolescente, sempre que tais direitos sejam ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, ou por falta, ou omissão ou abuso dos pais ou responsáveis, ou, ainda, em razão de sua própria conduta.

Nesses casos, havendo lesão ou ameaça de lesão aos direitos de criança ou adolescente, caberá ao Estado-juiz aplicar as medidas específicas de proteção, acompanhadas da necessária regularização do registro civil, como forma de resgatar a dignidade e a cidadania de milhões de crianças e

adolescentes que, ainda hoje, vivem a margem da sociedade, sem nome, sem existência jurídica e sem identidade própria.

 

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ECA comentado: ARTIGO 102 / LIVRO 2 – TEMA: Medidas de proteção
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