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ARTIGO 117/LIVRO 2 – TEMA: MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Comentário de Roberto Bergalli
Universidade de Barcelona/Espanha

1.A inclusão desta medida de “prestação de serviços à comunidade” entre as de caráter “sócio-educativo”, previstas neste cap.IV do Estatuto, supõe que sua aplicação deve ser efetivada uma vez verificado algum dos “atos infracionais” que acarretam esse tipo de reação. Conseqüentemente, não se poderia submeter nenhum adolescente à prestação desse serviço se seu delito não tiver sido estabelecido com a satisfação de todas as garantias de que fala o cap. III; isto é, sem que tenha sido cumprido o devido processo legal de que o Estatuto dispõe para atribuir responsabilidade legal aos adolescentes em relação aos atos por eles cometidos e que geram alguma das intervenções coercitivas a seu respeito.
Este enfático respeito que o Estatuto manifesta pela observância de um alto nível de garantias processuais permite apreciar como este ordenamento jurídico da condição de menor de idade no Brasil se orienta na linha do debate contemporâneo em tomo da necessidade de encontrar uma nova legitimação para os sistemas de controle penal (cf. L. Ferrajoli e outros,Diritto e Ragione (Teoria deI Garantismo Penale), 2ª ed., Bari, Laterza Editore, 1990). Pretender que as intervenções punitivas que se empregam nos Estados contemporâneos, como último recurso de controle social, recuperem a aspiração máxima de assegurar os limites de tais intervenções na estrita defesa dos direitos humanos é verdadeiramente uma luta na qual está comprometido o pensamento jurídico crítico. Luta, essa, que, no campo da atenção às questões que dizem respeito à minoridade em sociedades dramaticamente atravessadas pela injustiça social, converte-se em lema de um programa político global.
Após o acima exposto, cabe, não obstante, ressaltar alguma perplexidade em relação à observância pelo Estatuto de um princípio básico do garantismo penal. Efetivamente, o fato de que as “medidas sócio-educativas” possam aplicar-se aos adolescentes “verificada a prática de ato infracional” (art. 112) remete necessariamente ao conhecimento do que entende o Estatuto por “ato infracional”. Se as conseqüências jurídicas do cometimento de um “ato infracional” assumem natureza punitiva (assim parecem ser todas as previstas no art. 112 e, portanto, também a que aqui se analisa, estatuída no art. 117), então o art,. 103 (“Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”) deveria ter sido mais explícito, em beneficio do princípio da legalidade. É verdade que o enunciado nulla poena sine crimine pareceria estar contemplado com a expressão desse art. 103, que, irremediavelmente, remete à legislação penal de fundo do Brasil para adequar cada “ato infracional” que se impute a um adolescente, para saber se a esse pode-se aplicar alguma das “medidas sócio-educativas”. Mas, para que o garantismo processual que emerge do capoIII corresponda a um verdadeiro garantismo penal, é imprescindível que se dê plena satisfação ao princípio nullum crimen sine lege, mediante uma remissão expressa à legislação pertinente. Uma simples menção a “crime ou contravenção penal”, como faz o art. 103, coloca em risco de cair em crenças substancialistas ou formalistas (confusão entre Direito e Moral) a respeito da definição do delito ou da contravenção penal (v. Ferrajoli, ob. cit., p. 369), comprometendo seriamente o princípio de estrita legalidade ao deixar espaço para atribuir fundamentos ontológicos – como a imoralidade, a periculosidade, a anormalidade psicofisica e semelhantes – à noção de “crime ou contravenção penal”.
2. A “prestação de serviços à comunidade” é, como está dito, uma das “medidas sócio-educativas” que encobrem forte natureza punitiva. Se faltassem ainda dados para afirmar essa convicção, bastaria remeter- se ao art. 114, pelo qual se sabe que “a imposição das medidas previstas nos incs. II a VI do art. 112 pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da material idade da infração, ressalvada a hipótese de remissão, nos termos do art. 127”. Com essa afirmação, a medida do art. 117,sob comentário, adquire a categoria de conseqüência jurídica prevista para o cometimento de um ato punível, necessário de ser demonstrado jurisdicionalmente e imputado à culpabilidade de seu autor.
Entretanto, não se pode negar que todas as “medidas sócio-educativas” estão carregadas de um forte conteúdo pedagógico, caráter que, no caso das “medidas específicas de proteção” dedicadas às “crianças”, é especificamente reconhecido (v. art. 100). Nesse caso, a submissão de um adolescente a “prestação de serviços à comunidade” tem um sentido altamente educativo, particularmente orientado a obrigar o adolescente a tomar consciência dos valores que supõem a solidariedade social praticada em seus níveis mais expressivos. Assistir aos desvalidos, aos enfermos, aos educandos (atividades que devem ser prestadas em “entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres”) é tarefa que impõe a confrontação com o alter coletivo, de modo que possa demonstrar-se uma confiança recíproca que, por sua vez, está presente em todos os códigos de ética comunitária, como herança dos decálogos religiosos. Frente à complexidade dos sistemas sociais contemporâneos que Impulsionam a fomentar a integração mediante a confiança institucional (cf M. Luhmann,Soziologische Rujklãrung (Rufsütze zur Theorie sozialer Systeme), 43 ed., Westdeutscher Verlag, Opladen, 1974, pp. 35 e ss. e 76 e ss.), o recurso a fomentar a confiança recíproca entre os indivíduos parece próprio de sistemas sociais simples, que funcionam sobre a base de uma solidariedade mecânica (como já destacou Durkheim). Mas não se pode desconhecer que a “prestação de serviços à comunidade” reconhece antecedentes em práticas de controle correcional; as experiências de Community Service realizadas no âmbito cultural anglo-norte-americano (cf. G. Kaiser, “Mõglichkelten der Entkriminalisierung nach dem Jugendgerichgesetz im Vergleich zum Ausland”, in Zeitschrift ftir Pãdagogik 29,1983, pp. 31-48) foram sempre orientadas por uma vontade pública educativa que, nos casos de menores incursos em atos puníveis, revela que semelhante orientação pretende deter os fracassos dos distintos processos de socialização.
A medida que aqui se comenta é de introdução original no tratamento das questões de minoridade na América Latina, e, no Continente europeu, apesar de não existir prevista como tal, sua natureza de “medida formativa” encaixa-se perfeitamente, p. ex., entre todas as previstas na seção segunda da Parte Segunda da vigente Lei Judicial Juvenil (Jugendgerichtgazatz, JGG), que, por certo, ainda que sempre como conseqüência de um ato punível, aparecem, no entanto, nitidamente separadas das “medidas disciplinares” e da “pena juvenil”, aplicáveis quando as “medidas formativas” não forem suficientes (v. os textos originais e reformas da JGG, atualmente vigente, em Bundesgesetzblatt, BGBJ. I S. 3.428 sS.;BGBJ. III S. 451-1-1).
Por último, cabe ressaltar que a ênfase do Estatuto pelo respeito a direitos fundamentais que aos menores, como pessoas, deve assegurar todo Estado de Direito preocupa-se também neste art. 118 com as garantias que o parágrafo único estatui para na “prestação de serviços à comunidade” não sejam violadas as condições mínimas de um contrato de trabalho regular para adultos, de acordo com as aptidões de cada adolescente e com os fins educativos a respeito de cada um daqueles submetidos a esta medida.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ECA comentado: ARTIGO 117/LIVRO 2 – TEMA: MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
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