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ARTIGO 182/LIVRO 2 – TEMA: ATO INFRACONAL

Comentário de Paulo Afonso Garrido de Paula
Ministério Público/São Paulo

Representação e ação sócio-educativa pública

Liminarmente, é mister consignar que o Estatuto da Criança e do Adolescente introduziu a figura da chamada “ação sócio-educativa pública”. Resulta do ato infracional (crime ou contravenção penal – ECA, art. 103) praticado por adolescente a pretensão sócio-educativa, possibilitando ao Estado o direito de fazer atuar as normas previstas na legislação especial, ou seja, no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Adotando o Estatuto tais princípios, o legislador, ao contrário do que fez na aprovação do revogado Código de Menores, quando instituiu um sistema marcado pelo informalismo e discricionariedade, estabeleceu um procedimento de apuração de ato infracional de natureza formal, de sorte que a forma materializasse uma garantia (citação, contraditório etc.), instaurado a partir do oferecimento de representação pelo Ministério Público,
titular da ação sócio-educativa pública.

Revelando o ato infracional um desvalor social, consubstanciado em grave ofensa à ordem jurídica, e, ao mesmo tempo, uma resposta infanto juvenil às adversidades próprias do enfrentamento dos desafios do cotidiano, sendo, por vezes, resultado da irreflexão brotada da imaturidade, as conseqüências jurídicas decorrentes de crimes e contravenções penais, quanto ao autor, criança ou adolescente, devem respeitar a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Tal característica não só exclui crianças e adolescentes da responsabilidade penal, sendo, a propósito, recomendado pelo ONU que, nos sistemas jurídicos que reconheçam o conceito de responsabilidade penal para menores, seu começo não deverá fixar-se numa idade demasiado precoce, levando em conta as circunstâncias que acompanham a maturidade emocional, mental e intelectual (Regras de Beijing,Res. ONU-40/33,de 29.11.85- regra 4); como, também, determina a previsão de medidas adequadas e regras processuais peculiares. Assim, pugna a comunidade internacional por um sistema capaz de satisfazer as necessidades da sociedade e também as necessidades dos infratores, protegendo seus direitos básicos (resolução cit., regra 2.3).

Se do sistema processual penal deflui o princípio da obrigatoriedade de propositura da ação penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao instituir a remissão como forma de exclusão do processo, expressamente adotou o princípio da oportunidade, conferindo ao titular da ação a decisão de invocar ou não a tutela jurisdicional. A decisão nasce do confronto dos interesses sociais e individuais tutelados unitariamente pelas normas insertas no Estatuto (interessa à sociedade defender-se de atos infracionais, ainda que praticados por adolescentes, mas também lhe interessa proteger integralmente o adolescente, ainda que infrator). Assim, em cada caso concreto, pode o Ministério Público dispor da ação sócio-educativa pública através da remissão, concedendo-a como perdão puro e simples ou, numa espécie de transação, incluir medida não privativa de liberdade,excetuando-se, portanto, a semiliberdade e a internação.

Convencido o Estado-Administração, através do Ministério Público, de que é imprescindível responsabilizar o adolescente mediante a efetivação de uma conseqüência legal decorrente da prática de um ato infracional, excluída a adequabilidade da remissão, notadamente naqueles casos autorizadores de privação de liberdade (ECA, art. 122), exercita-se a ação sócio-educativa pública mediante o oferecimento da representação.

A representação, portanto, constitui-se em peça vestibular da ação sócio-educativa pública, instrumento inicial de invocação da tutela jurisdicional, tendo por escopo a aplicação coercitiva da sanção decorrente da prática, pelo adolescente, de conduta descrita como crime ou contravenção penal.

Tais sanções, ou conseqüências jurídicas, encontram-se elencadas no art. 112do ECA, estando nominadas de medidas sócio-educativas e variando desde a privação de liberdade até a advertência. Além de tais sanções, podem ser aplicadas ao adolescente autor de ato infracional medidas de proteção, previstas no art. 10I, I a VI.

A expressão “sócio-educativa” revela a preocupação do legislador concernente às finalidades das sanções: meio de defesa social – tanto que prevê a possibilidade de privação de liberdade (internação)- e instrumento educativo de intervenção no desenvolvimento do adolescente, de sorte a revelar ou desenvolver recursos pessoais básicos necessários ao enfrentando todas adversidades próprias da vida, sem utilização de soluções violentas ou ilegais.

Assim, ao perseguir-se a atuação coercitiva das sanções previstas em lei,mediante o oferecimento de representação, busca o Ministério Público (Estado-Administração) equacionar a necessidade de defesa social com a possibilidade de interferência na educação do adolescente, de modo a buscar reversão do quadro infracional evidenciado pela incidência em conduta descrita como crime ou contravenção penal.

A medida mais adequada a tal escopo somente será identificada posteriormente, razão pela qual o Ministério Público não necessita indicar na representação a medida sócio-educativa a ser aplicada, porquanto a adequação da medida às condições do adolescente deve ser aferida no curso do procedimento, à luz de subsídios técnicos a serem fornecidos por equipe interprofissional (ECA, arts. 112, § 1li, e 186, §§ 211e 411- cf.ECA Anotado, Cury, Garrido e Marçura, Ed. RT, 1991, nota I ao art. 182).

Requisitos formais da representação.

Estabelece o dispositivo em apreço que a representação conterá o breve resumo dos fatos e a classificação do ato infracional e, quando necessário, o rol de testemunhas.

Resumir brevemente os fatos significa descrevê-los, ainda que sucintamente, de modo a satisfazer a regra inserta no art. 227, § 311, IV, da CF, repetida pelo art. III, I, do ECA, que garante ao adolescente pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional. Trata-se de elemento integrante do princípio do contraditório. Como afirmado em trabalho anterior, quis o legislador constituinte conferir ao adolescente a garantia de que teria ciência inequívoca do ato a ele imputado, de modo a poder apresentar defesa, seja negando a existência do fato ou alegando circunstâncias que elidam a ilicitude da conduta. “Pleno”, a nosso ver, é o conhecimento integral, imune de qualquer omissão relevante que possa influir na decisão da causa, enquanto “formal” representa possibilidade de redução a registro, passível de comprovação, de sorte que exista segurança jurídica de que a garantia constitucional foi respeitada (“A criança e o adolescente na Constituição Federal”, in Infância, Adolescência e Pobreza, Cadernos Fundap, Ano 10, n. 18, set./90).

Em outras palavras, exige o ordenamento jurídico que a representação contenha a exposição da conduta do adolescente, com todas as suas circunstâncias, de sorte a que o mesmo, conhecendo a atribuição infracional, possa produzir sua defesa.

Quanto à classificação do ato infracional, é necessário ressaltar que o ECA, em seu art. 103, define o mesmo como a conduta descrita como crime ou contravenção penal,dotando conteúdo certo e determinado, abandonando expressões como ato anti-social, desvio de conduta etc., de significado jurídico impreciso. Tal inovação tem o mérito de objetivamente relacionar a conduta do adolescente com um fato tipificado em lei como crime ou contravenção penal, afastando-se qualquer subjetivismo do intérprete quando da análise da ação ou omissão. Assim, exige a lei que a representação indique o dispositivo do Código Penal, legislação penal extravagante ou Lei das Contravenções Penais tipificador de uma conduta à qual se subsume a ação ou omissão cuja autoria possa ser atribuída ao adolescente. Tais requisitos formais devem ser atendidos quer se trate de representação escrita ou oral. Se escrita, constarão de petição, requerimento endereçado ao juiz competente. Cópia da representação deverá instruir a citação, servindo de contrafé. Já, a representação oral deve ser formulada pelo Ministério Público em sessão diária instalada pela autoridade judiciária. Tal inovação tem por fito agilizar a tramitação do procedimento de apuração, seguindo-se a realização da audiência de apresentação referida no art. 184 do ECA.

Requisitos substanciais da representação

Instrumento da ação sócio-educativa pública, a representação deve atender, substancialmente, às chamadas “condições da ação”. Tal tema, evidentemente, carece de estudo profundo, considerando não só sua genérica complexidade, seu constante reexame, bem como características específicas decorrentes do sistema adotado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Assim,como um ensaio inicial, mas presente o objeto deste trabalho no sentido de fornecer breves subsídios, ainda que eventualmente equivocados, parto da premissa de que a ação sócio-educativa subordina-se a condições relacionadas à pretensão de atuação coercitiva das sanções decorrentes do ato infracional. Possibilidade jurídica do pedido, legitimatio ad causam e interesse de agir constituem-se em condições genéricas que devem ser consideradas quando do oferecimento ou recebimento da representação.

Evidentemente que a pretensão sócio-educativa deduzida através da representação deve ser juridicamente viável, legalmente admissível pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, o pedido de aplicação coercitiva de medida sócio-educativa a criança a quem se atribua a prática de ato infracional é juridicamente impossível, porquanto o ECA, em seu art. 105,expressamente consignou que a9 ato infracional por ela praticado corresponderão unicamente medidas de proteção. Da mesma forma, juridicamente impossível o pedido de aplicação coercitiva de medida sócio-educativa por perambulação, de vez que tal conduta não se subsume a qualquer tipo descrito na lei penal.

No que concerne à legimatio ad cqusam, deflui do Estatuto da Criança e do Adolescente que somente o Ministério Público pode promover a ação sócio-educativa. É ela, portanto, sempre pública. Somente o Estado, através da instituição encarregada de defender os interesses sociais e individuais indisponíveis, tem legitimidade para invocar a tutela jurisdicional, pretendendo a aplicação dê medida que funcione como meio de defesa social e, ao mesmo tempo, instrumento de intervenção positiva no processo de desenvolvimento do adolescente infrator. Assim, inexiste a figura da ação sócio-educativa privada, ou ação sócio-educativa condicionada, não só pelo fato de inexistir menção legal expressa, como, também, decorre do sistema adotado pelo Estatuto a titularidade exclusiva do Ministério Público para promovera aplicação coercitiva de medida sócio-educativa. Isto, contudo, não significa que possa o Ministério Público ou a autoridade judiciária constranger a vítima dos crimes contra os costumes a submeter-se a exame de corpo de delito ou prestar esclarecimentos a respeito dos fatos.

No que concerne ao interesse de agir, algumas considerações são inevitáveis. Se, no processo penal, em síntese, o interesse de agir repousa em elementos de convicção colhidos em fase anterior ao processo, de sorte a conferir idoneidade ao pedido, impedindo que o cidadão sofra os constrangimentos inerentes ao processo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao prever um verdadeiro juizado de instrução, estabelecendo um

Procedimento judicial de apuração de ato infracional, dispensou a figura do inquérito policial, remetendo a coleta de provas diretas ou indiciárias para a fase judicial. Assim, afastou o rigor próprio do processo penal, minimizando a severidade da avaliação da justa causa para a invocação da tutela jurisdicional. Por tal razão, expressamente consignou que a representação independe de prova pré-constituída da autoria e materialidade (ECA, art. 182, § 2º), deixando claro que o interesse de agir encontra-se implícito na peça inaugural da ação sócio-educativa pública, porquanto a aplicação coercitiva de medida não prescinde da intervenção jurisdicional de apuração do ato infracional. Isto não significa que a representação possa brotar de irrefletidas e vagas suposições, beirando a inidoneidade; é mister um mínimo de viabilidade, resultante de elementos colhidos nas fases precedentes, notadamente em relação à autoria, de sorte a que a apuração dos fatos revele-se necessária.
Rol de testemunhas

A representação deve conter o rol de testemunhas, aplicando-se, quanto ao seu número, os arts. 398, 533 e 539 do CPP. Isto decorre do art. 152 do ECA, que determina a aplicação subsidiária das normas gerais previstas na legislação processual pertinente aos procedimentos regulados no Estatuto. Assim, nos procedimentos de apuração de ato infracional definido como crime apenado com reclusão, estabelece o Código de Processo Penal o número máximo de oito testemunhas; se trata de apuração de ato infracional cuja pena cominada não seja a de reclusão, o número máximo é de cinco; se o ato infracional, por fim, é classificado como contravenção, poderão ser arroladas até três testemunhas.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ECA comentado: ARTIGO 182/LIVRO 2 – TEMA: ATO INFRACONAL
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