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Crédito: Shutterstock

Confira, abaixo, dois textos:
o psicólogo Klessyo Freire e Rubens Bias, do CONANDA,
e o escrevem sobre o Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH)

Estamos transformando conflitos e diferenças em doenças?
Poesia e texto abaixo assinados por Klessyo Freire*

Rótulos
Pelo pai ausente que não pode comparecer
Trabalha em dupla jornada para sobreviver

Pelo hiperativo que não quer obedecer
Trocaram os seus professores sem ele saber

Pelo rebelde com problema de comportamento
Que ouve que é incapaz a todo momento

Moço, quando rotula não tem solução
Rotula, rotula, rotula, eduque a ação

Moço, quando rotula não solução
Rotula, rotula, rotula é medicalização

Pelxs professorxs e seus antidepressivos
Não importa as condições tem que ser podutivo

Pelas mulheres esperando na fila do parto
Cesária, quero nem saber está marcado

Pelo maconheiros, drogados e viciados
Jogados no frio da rua abandonados

Moço, quando rotula não tem solução
Rotula, rotula, rotula, eduque a ação

Moço, quando rotula não solução
Rotula, rotula, rotula é medicalização

Pelos favelados, safados e bandidos
Sofrendo todos os dias vários genocídios

Pelxs trans, lésbicas e gays
Agredidos todos os dias para eles não valem as leis

Pelas mães quer perdem seus filhos
Mortos e aparecem na tela como bandidos

Moço, quando rotula não solução
Desvela, pertuba, desmedicaliza a ação

Moço, quando rotula não solução
Existe resistência onde tem opressão

Medicalização é o processo no qual questões sociais complexas são individualizadas através de uma lógica reducionista que expressaria um “suposto” adoecimento do organismo por não se adequar a um padrão estabelecido pela sociedade.

Enfim, escrevo essa introdução para me apresentar e falar um pouco da minha história, quebrando um pouco a ordem e a formalidade exigida em alguns espaços textuais. Me chamo Klessyo Freire, sou psicólogo, pesquisador e militante contra os processos de medicalização da educação e da vida e durante aproximadamente oito anos passei por um processo de medicalização que incluiu o diagnóstico do “suposto” TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção). Durante esse tempo fiz uso do Cloridrato de Metilfenidato e de alguns antidepressivos.

Quando tinha 15 anos eu questionava a escola e os seus padrões, não entendia porque tinha que aprender coisas que nunca usaria na vida. Eu gostava de ler sobre história, filosofia, como o mundo funcionava e etc. e chegava na escola e via um conhecimento que não me atraia. Era me dito “aprenda isso na escola para passar no vestibular, depois você não vai precisar de nada disso”, me fazendo questionar que escola é essa que traz um tipo de conhecimento utilitarista e que só vai ser usado para passar no vestibular?

Com isso, eu tinha enorme dificuldades com matérias exatas (principalmente matemática), não me despertava curiosidade aprender fórmulas prontas que eu não sabia como seriam usadas. Fui tetracampeão na recuperação em matemática, fui para a famosa “recu” na 8ª série, 1º, 2º e 3 º ano, bem como de outras matérias como física, química e biologia. Posso dizer que senti na pele a exclusão com aqueles que fogem a norma e não aprendem, sofrendo a exclusão de colegas e professores.

Nesse contexto, quando recebi o diagnóstico com 15 anos, ele veio com uma sensação de “conforto” por saber “o que eu tinha”. O problema é que o diagnóstico cola na gente feito cola, viramos TDAHs, TODs (Transtorno Opositor Desafiante), Disléxicos e etc. e silenciamos nossas angústias e questionamentos. Durante um tempo não me era permitido ficar triste porque tomava antidepressivos devido a minha oscilação de humor (depois fui perceber que muito dessa oscilação era causada pelo efeito do Cloridrato de Metilfenidato) e isso me causava um incomodo tremendo.

Acabei por internalizar por muito tempo o “tem algo errado comigo”, de forma que acabei ficando dependente e fazendo uso abusivo do Cloridrato de Metilfenidato. O início da desconstrução desse processo de medicalização teve origem quando comecei a cursar o curso de psicologia e entrei em contato com algumas discussões. Mesmo assim, persistia o discurso de que teria alguma coisa, sustentado em muitos casos inclusive pelas análises e psicoterapias que passei.

A desconstrução desse processo culminou na minha entrada no Fórum de Medicalização da Educação e da Sociedade, quando comecei a militar contra os processos de medicalização, principalmente na escola. Atualmente, além do Fórum, eu tenho pesquisado e estudado os processos de medicalização, principalmente na escola e na saúde mental. A minha saída para isso tudo foi através do coletivo e da militância política.

Dessa forma, eu aconselho aos pais e educadores/as de que se o/a filho/a ou o/a aluno/a de vocês receberem algum rótulo ou diagnóstico procurem ver a história de muitos desses “supostos” transtornos e as controvérsias e polêmicas subjacentes a eles, a exemplo do TDAH. A ciência não é neutra e em muitos casos, responde a interesses econômicos como a indústria farmacêutica, que está intrinsicamente aos processos de medicalização e a produção de muitos desses “supostos” transtornos. A diferença não pode ser tratada como doença, vamos ver o tipo de sociedade que estamos produzindo e as relações opressivas dela que a escola tem reproduzido sistematicamente.

Portanto, encerro esse texto dizendo que acredito na educação como um espaço de potência e capaz de fazer frente às constantes violações dos direitos humanos (os processos de medicalização estão incluídos aí também) que assistimos no dia a dia. Como foi dito acima na poesia que escrevi acima, “onde existe opressão tem resistência”. Se a lógica da medicalização é individualizar, vamos subverter a ordem e coletivizar e tornar essa luta política, fazendo frente a muitos desses processos que estão presentes no dia a dia e nas políticas públicas.

Como dizia Raul Seixas no trecho da música carimbador maluco exposto abaixo, o preço a ser pago pela rotulo é grande.

“Tem que ser selado, registrado, carimbado/Avaliado e rotulado se quiser voar!/Se quiser voar/Pra lua, a taxa é alta/Pro sol, identidade,/Vai já pro seu foguete viajar pelo universo/É preciso o meu carimbo dando, sim”

Vamos lutar para que as pessoas possam voar e ir à lua sem carimbos, rótulos e sem pagar as altas taxas que lhe são exigidas. Por uma sociedade sem rótulos e que respeite as diferenças.

*Klessyo Freire é psicólogo, pesquisador e militante contra os processos de medicalização da educação e da vida.

Reflexões sobre a medicalização de crianças e adolescentes
Texto abaixo assinado por Rubens Bias*

O Brasil passa por uma explosão no consumo de Ritalina, tendo aumentado 775% em 10 anos e colocando o país como 2º maior mercado do mundo. Em geral, esse remédio é utilizado para tratamento de crianças e adolescentes diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Existem controvérsias científicas sobre a existência desse transtorno. Como não pode ser comprovado por exames inequívocos de imagem, genéticos ou químicos, psiquiatras e outros especialistas questionam até mesmo a sua existência. Existem controvérsias também em relação a amplitude desse fenômeno. Na França, a incidência é de 0,5% das crianças e dos adolescentes e na Holanda é de 32%.

Os médicos baseiam seu diagnóstico de TDAH em um manual chamado DSM. Os critérios para que uma criança seja diagnosticada são amplos e genéricos, com questões como “Comete erros por descuido?”, “É esquecido nas atividades diárias?”, “Corre em situações inadequadas?”, “Tem dificuldade em esperar a vez?”. São características que podem ser identificadas em qualquer criança, o que facilita que toda queixa encaminhada por professores ou familiares se transforme em uma doença a receber um remédio. O próprio psiquiatra que coordenou a edição anterior, Allen Frances, afirma que o DSM contribuiu para uma “falsa epidemia” de TDAH.

O uso de Ritalina pode trazer problemas cardiovasculares. Quando passaram a ser acompanhadas por um CAPS infanto-juvenil em São Paulo, um terço das crianças e adolescentes pararam de usar o remédio porque estavam com problemas cardíacos. O uso também pode ocasionar transtornos psiquiátricos, como depressão, psicose e tendência suicida, além de gerar dependência.

É importante refletir ainda sobre impactos subjetivos do uso. Na relação pedagógica, devemos nos perguntar sobre os impactos de um aluno que começa a se perceber como sendo incapaz a não ser que medicado e a escola e os professores que passam a não ter outras responsabilidades além de indicar o diagnóstico e a prescrição. Na relação com o desempenho e a diversidade, devemos nos perguntar exigência de normalidades irreais, de desempenho escolar que não aceita diferenças de ritmo e de modos de comportamento que não aceitam divergências. Na relação com alteradores de comportamento, devemos nos perguntar se não estamos estimulando essas crianças a lidar com desafios e problemas na vida adulta, por meio do uso de remédios como rivotril e lexotan, de drogas lícitas, como álcool e cigarro, ou mesmo de drogas ilícitas.

Desde 2015, o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação, o Conselho Nacional de Saúde e o CONANDA vêm alertando sobre esse fenômeno da excessiva medicalização. Foram publicadas recomendações que foram encaminhadas a todas as secretarias estaduais e municipais de saúde e de educação. São sugeridas práticas não medicalizantes, com abordagens pedagógicas e multisetoriais em saúde, buscando olhares amplos a problemas complexos. Sugere-se também a publicação de protocolos clínicos para controlar a dispensação, assim como vem sendo feito nos municípios de São Paulo e Campinas para promover o uso racional de medicamentos.

É fundamental que familiares, profissionais e gestores saibam dos riscos associados ao uso do metilfenidato por crianças e adolescentes. Remédio nem sempre é sinônimo de saúde ou de cuidado.

*Rubens Bias, analista de políticas sociais, conselheiro do CONANDA (Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente), Coordenação Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno (CGSCAM), no Ministério da Saúde

Saiba mais:

Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade: medicalizacao.org.br

Recomendações do Ministério da Saúde para adoção de práticas não medicalizantes e para publicação de protocolos municipais e estaduais de dispensação de metilfenidato
http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2015/outubro/01/Recomenda—-es-para-Prevenir-excessiva-Medicaliza—-o-de-Crian–a-e-Adolescentes.pdf

RESOLUÇÃO N. 177 do CONANDA que dispõe sobre o direito da criança e do adolescente de não serem submetidos à excessiva medicalização http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-conanda/resolucoes/Resoluo177Conanda.pdf

Estamos transformando conflitos e diferenças em doenças? Reflexões sobre a medicalização de crianças e adolescentes
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