Idealizadas por brasileiros e produzidas pela Fundação Lego, peças de montar customizadas em braile estão sendo testadas em vários países e devem chegar às escolas públicas em 2020.
Eles parecem os tão conhecidos bloquinhos de montar da empresa dinamarquesa Lego. São coloridos, permitem inúmeras possibilidades de encaixe e a formação de objetos tridimensionais. A novidade é que são adaptados para que crianças que não enxergam brinquem também e, mais do que isso, sejam alfabetizadas no sistema braile.
O Lego Braille Bricks é customizado com letras, números e símbolos matemáticos em braile, sistema de leitura, escrita e impressão para pessoas com deficiência visual. As peças também trazem letras e números do alfabeto tradicional para que as crianças possam trabalhar juntas em sala de aula, um passo extremamente importante para a educação inclusiva.
O projeto foi oficialmente lançado na França, durante a Conferência de Marcas Sustentáveis, em abril. Apesar de ser desenvolvido pela Fundação Lego, foi idealizado aqui no Brasil, pela Fundação Dorina Nowill para Cegos, que desde 2016 estudava maneiras de facilitar a educação inclusiva e a alfabetização de crianças em braile.
Com protótipo desenvolvido, a fundação brasileira partiu para a Dinamarca e apresentou a ideia ao Grupo Lego, que decidiu assumir a produção de peças para iniciar os testes em escolas do Brasil, Reino Unido, Noruega, além de seu país de origem.
França, Alemanha, Estados Unidos e México estão recebendo as peças atualmente. O lançamento está previsto para o segundo semestre de 2020 e o brinquedo será distribuído gratuitamente nas escolas dos países onde os testes foram realizados.
“Nós estamos muito felizes de levar um projeto brasileiro para o mundo, ainda mais por ter a chance de apresentá-lo a países que estão no topo do ranking da educação de qualidade. Isso mostra que a educação inclusiva é um desafio em todo o mundo”, afirma Ika Fleury, presidente do comitê Lego Braille Bricks, da Fundação Dorina Nowill.
Por aqui serão dez mil kits distribuídos em escolas públicas de sete Estados, entre eles Bahia, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo. Serão atendidas 763 mil crianças de 4 a 10 anos, com e sem deficiência visual. A meta da Fundação Dorina Nowill para Cegos é captar recursos para chegar a 50 mil kits.
Reversão de um cenário crítico
Além de facilitar a educação inclusiva, o brinquedo tem o objetivo de estimular a alfabetização em braile. O sistema criado no século XIX pelo educador francês Louis Braille é a única forma de alfabetizar crianças cegas, mas vem ganhando cada vez menos adeptos em todo o mundo graças aos programas de computadores, aplicativos e audiolivros voltados para esse público.
Dados no Brasil
- Estima-se que 45,6 milhões de brasileiros (24% da população) apresentam alguma deficiência. 6,5 milhões têm deficiência visual;
- Segundo o IBGE, são 140 mil crianças com deficiência visual no Brasil, das quais apenas 75 mil estão matriculadas em escolas públicas;
Segundo estimativas da Federação Nacional para Cegos, nos Estados Unidos, atualmente menos de 10% das crianças norte-americanas com deficiência visual estão aprendendo a ler em braile. Na década de 50, esse número ultrapassava os 50%.
A queda nas taxas de alfabetizados impacta na qualidade de vida, como definiu Philippe Chazal, da União Europeia de Cegos: “Sabemos que os usuários de braile geralmente são mais independentes, têm maior nível de escolaridade e conseguem melhores oportunidades de emprego, por isso temos que aumentar o engajamento com a alfabetização”.
Ponto para a inclusão
A Organização Mundial da Saúde estima que há 19 milhões de crianças no mundo com problemas de visão. Destas, 1,4 milhão têm cegueira irreversível. Crianças com deficiência visual enfrentam muitos problemas no sistema escolar devido à falta de materiais e recursos adaptados, além da falta de professores qualificados para trabalhar com esse público.
Os tijolinhos customizados têm grande potencial para mudar essa realidade, pois permitem que a brincadeira seja partilhada por crianças cegas e videntes e que o aprendizado seja feito de várias formas: sozinho, com colegas e professores na sala de aula e com os familiares em casa. Por conter letras e números do alfabeto tradicional, também permite que videntes aprendam o braile.
“Sou professor com mais de 30 anos de experiência e posso afirmar que essa é uma das experiências mais inclusivas que já vi. É fantástico presenciar em sala de aula alunos com e sem deficiência visual e professores trabalhando a mesma atividade, no mesmo local. Isso é inclusão de verdade”, defende Klaus Schlünzen Junior, que coordenada a capacitação de professores pela Unesp.
O potencial inclusivo das peças já foi comprovado na prática com 82 crianças brasileiras, com e sem deficiência visual, de escolas públicas de Presidente Bernardes e Franco da Rocha, em São Paulo. Os municípios foram escolhidos por apresentarem realidades distintas, o que deixa o teste mais completo: o primeiro é pequeno e considerado uma zona rural. Já Franco da Rocha é mais robusto e está investindo recursos na educação inclusiva.
“Nos dois grupos que testamos, a maioria dos professores nunca tinha visto um texto em braile, o que é muito triste quando pensamos em educação inclusiva. Mas nas formações eles percebem que não é um bicho de sete cabeças e vão se encantando pelo sistema”, conta Ika Fleury.
Educadores também ganham
Para capacitar o trabalho com as peças, a Fundação Dorina Nowill para Cegos se associou à Faculdade de Ciência e Tecnologia da Unesp, experiente na formação de professores à distância. As primeiras formações com participantes foram presenciais, mas com a expansão do projeto a capacitação será totalmente online.
“A ideia é que a gente possa auxiliar cada professor a construir um plano pedagógico personalizado, adaptado às particularidades da região onde atua”, explica o professor e coordenador Klaus Schlünzen Junior.
Para isso, a capacitação contará com tutores que acompanharão os professores e uma plataforma com vídeos e fóruns para troca de experiências entre os profissionais. “Será também um repositório de boas práticas e a constituição de uma rede de apoio para que os professores que trabalham com inclusão saiam do isolamento”, defende Klaus.