Entre reformulações de conteúdos para adequação a distintos grupos étnicos, atividades tradicionais estão sendo consideradas como experiências educacionais.
Existem hoje mais de 3 mil escolas em territórios indígenas no Brasil. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, fala sobre o desenvolvimento de programas para a oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas e significou um avanço nas políticas educacionais brasileiras. Antes disso, perdurou a imposição de um currículo único que ignorava as condições e especificidades da educação escolar indígena.
Ainda assim, de acordo com o Censo Escolar de 2017, quase 31% das escola indígenas não têm espaços construídos pelo poder público para ministrar suas aulas. E 33% não possuem material didático específico para o seu grupo étnico.
A coordenação nacional das políticas de Educação Escolar Indígena é de competência do Ministério da Educação (MEC), cabendo aos Estados e Municípios a execução para a garantia deste direito. No país, são mais de 240 povos indígenas, e dentro dessa diversidade cultural há diferenças nos processos de educação.
Além de todo esse quadro, desde março todas as escolas estão passando pelo desafio de continuar formando jovens e crianças mesmo com a maior crise sanitária da nossa época, marcada pela pandemia da Covid-19. Na realidade das aldeias, as barreiras passam também por falta de estrutura de conexão com internet e dificuldade de acesso a material didático, até o desinteresse dos mais jovens.
Educação durante a pandemia
A professora Poty Poran mora na Terra Indígena Tenondé Porã junto a outros cerca de 1.500 Guarani, no extremo sul da cidade de São Paulo, abrangendo partes dos municípios de Mongaguá, São Bernardo do Campo e São Vicente.
Ela trabalha na alfabetização das crianças do 3º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual Indígena Krucutu, localizada no território composto por 8 aldeias. Desde março, quando um bebê faleceu de COVID-19, as aulas estão suspensas.
Os estudantes receberam videoaulas da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, mas Poran – que é mãe de dois filhos em idade escolar, no 6º e no 9º ano, conta que falta estímulo às crianças. “Somos uma família mais contemporânea. A gente tem celular, mas os meus filhos não conseguiram acompanhar as aulas online. Era muito desestimulante para eles”.
Também há problemas por conta do sinal de internet e de celular. Somente em alguns lugares das aldeias a conexão funciona, por isso se todos os alunos tivessem interesse em assistir às aulas, geraria uma aglomeração.
Pais e mães, muitas vezes, não conseguem dar suporte aos estudantes por não serem alfabetizados. “Não somos uma sociedade letrada, não tem placas, não tem cartazes. A nossa comunidade guarani é uma comunidade oral. As crianças passam a ser letradas quando vão à escola”, explica Poran.
A secretaria estadual permitiu que atividades tradicionais como o plantio, a caça e o artesanato fossem contados como experiência educacional. Ainda assim, restam dúvidas na comunidade de como vão adequar isso ao currículo das aulas. A educadora acredita que seja necessário um calendário diferente no retorno às atividades presenciais.
O dia a dia na escola do Krucutu
Na Escola Estadual Indígena Krucutu, existem dois horários de aula. Na parte da manhã estudam os estudantes mais jovens e, à tarde, os mais velhos. As atividades são divididas em dois momentos: um na parte externa (na roça, na casa de reza, nas atividades culturais), e outro dentro da escola, fazendo a sistematização do conteúdo.
“Dou aula há 19 anos, e uma coisa que eu aprendi é que a gente tem que sistematizar a cultura sem transformar tudo em educação escolar. Eu não vou fazer as minhas crianças anotarem o que o pajé está ensinando. Neste momento nós precisamos escutar. Depois, na sala de aula, eu vou transformar aquilo em conteúdo escolar. Precisamos saber o limite do que é a escola, e do que é a tradição”, reflete a professora Poty Poran.
Geralmente os estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental ainda não dominam a escrita (nem o português, nem o guarani). “A gente fala guarani todos os dias, mas tem o dia para aprender português. No primeiro momento, as crianças precisam saber quem elas são. Elas são guarani, elas estão em uma aldeia, e têm que valorizar a sua identidade e a sua tradição”, explica.
Os alunos tomam o café da manhã e almoçam na escola. Nessas horas é comum os pais estarem presentes. “Não tem cerca nas escolas porque é para elas serem parte da comunidade, e a comunidade é para ser parte das escolas”.
Produção do próprio material
Em Minas Gerais, Kanatyo Pataxoop, líder na aldeia Pataxó Muã Mimatxi, contou, em um evento online produzido pelo Centro de Referência em Educação Integral, que o governo estadual enviou para as aldeias os Planos de Estudos Tutorados (PET). No entanto foi preciso fazer muitas adequações no material didático.
“Nós começamos a produzir o nosso próprio material de estudos, que demos o nome de ‘plano de estudos com a família’. Estamos produzindo aulas dentro da nossa matriz curricular. Está valendo para todas as turmas”, afirma Kanatyo Pataxoop.
As crianças estão recebendo atividades com base naquilo que estão vivendo com as famílias durante a fase de isolamento. “A nossa preocupação maior é a proteção da vida, mas dentro desse projeto de educação a gente está produzindo o futuro da vida”, conclui
Relembre o case da Escola Indígena Manoel Francisco dos Santos
A Escola Indígena Manoel Francisco dos Santos está localizada em Aratuba, zona rural do Ceará. A escola foi fruto da luta do povo indígena Kanindé para perpetuar a cultura e os direitos elementares dentro de seu território. O objetivo é juntar a cultura indígena, rica em experiências de vida em comunidade, e a sociedade tecnológica. Conheça mais como tudo isso é possível no episódio do Janelas de Inovação abaixo: