Fatores históricos, estruturais e políticas públicas ajudam a explicar o perfil mais homogêneo dos professores da educação básica. Entenda a importância de reverter esse cenário.
A arte-educadora Helena Meireles, de Porto Alegre (RS), está acostumada a romper barreiras. Enquanto mulher negra, sempre se viu como minoria no corpo docente das escolas pelas quais passou ao longo de sua trajetória profissional.Também faz parte do seleto grupo de mulheres transexuais de toda a rede municipal. “Eu mesma só conheço mais três professoras”, aponta.
Em 2018, ela se juntou a outras professoras negras da escola EMEF Senador Alberto Pasqualini para criar o coletivo Quilombelas, que desenvolve ações e reflexões para valorização da história, cultura e identidade afro-brasileiras com toda a comunidade escolar.
A falta de diversidade no quadro de docentes é um diagnóstico dado pelo Perfil do Professor da Educação Básica no Brasil, composto a partir do cruzamento de dados demográficos, de contexto de trabalho e de formação docente.
O levantamento organizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), demonstra que a maioria dos professores da Educação Básica são mulheres (81%), de cor branca (42%) e parda (25,5%) e com idade média de 41 anos. Há discrepâncias também na distribuição do perfil por etapas, com a predominância de mulheres na Educação Infantil e nas etapas iniciais da Educação Básica, e de homens no Ensino Médio e nas áreas de exatas.
Para efeito de comparação, a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE mostrou que a porcentagem de pessoas que se declaram negras no Brasil é de 56,10%. A superioridade nos números não está refletida, no entanto, nas ocupações profissionais, especialmente as de melhor remuneração e prestígio social.
Promover uma mudança nesse quadro buscando aproximar a profissão docente de uma diversidade que se observa na população brasileira de forma geral é essencial no “enfrentamento de preconceitos e desigualdades e na construção de diálogo democrático entre culturas”, como descreve o estudo do Inep.
Em outras palavras, professores diversos são instrumentos de valorização de identidades e superação de desafios em universos plurais e condizem com o 4º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que visa assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade para todas e todos.
“É preciso refletir sobre esses lugares de representação que pessoas negras e LGBTQI+ ocupam em nossa sociedade. Hoje, na relação com os alunos, meu corpo vai além da representatividade, pois ele traz discussões para reflexão sobre esses estereótipos tão marcados”, afirma Helena.
Raízes históricas
Muitos dos fatores que tornam o perfil dos professores pouco diverso são estruturais, ou seja, remontam às raízes históricas da nossa formação enquanto povo e sociedade. Somos uma população de muitas cores e culturas, mas o acesso é desigual em educação, formação profissional, saneamento básico, entre outros.
“Nossa diversidade foi constituída por episódios como escravidão, colonialismo, exploração dos povos indígenas, e diversas políticas de embranquecimento da população”, aponta a historiadora e professora da Universidade Federal de São Carlos, Ana Cristina Juvenal da Cruz, que desenvolve trabalhos na área de educação com ênfase em relações étnico-raciais.
Um olhar histórico também nos ajuda a compreender o desequilíbrio entre homens e mulheres na profissão. No Brasil do século XIX existiam as chamadas escolas domésticas, nas quais mulheres exerciam funções de cuidado e orientação das crianças. Na transição do Império para a República, o ensino primário passou a ser obrigação do Estado.
As professoras foram incorporadas ao quadro de servidoras públicas e o magistério se configurou como uma oportunidade de inserção das mulheres no mercado de trabalho, tendência que se intensificou com o tempo. Os homens, enquanto isso, se dirigiam a profissões que surgiam pelo fenômeno da industrialização e da urbanização, e que tinham salários mais atrativos.
O tempo passou, mas estereótipos continuaram. O magistério ainda é visto como uma profissão feminina, especialmente na Educação Infantil, e a representatividade masculina continua maior nas posições com salários mais altos e em áreas como o Ensino Superior.
Sob uma lente de aumento
Para a professora Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios, da Universidade do Estado da Bahia, é difícil entender quem são, realmente, os professores da Educação Básica levando em conta apenas dados do Censo da Educação Básica, do Inep e outros levantamentos mais amplos.
“A gente tem trabalhado com uma outra leitura dos dados. Quando pegamos uma análise mais generalista, perdemos as especificidades locais. Melhor seria combinar pesquisas mais aprofundadas, com análises quantitativas e qualitativas”.
Com esse objetivo, o Grupo de Pesquisa Docência, Narrativas e Diversidade na Educação – DIVERSO, coordenado por Jane, está rodando um projeto piloto com escolas dos municípios de Salvador e Jacobina na busca pelo entendimento das assimetrias da profissão e experiências pedagógicas nessas localidades.
“A diversidade é uma dimensão de atravessamentos e negociações identitárias que aparecem na forma como os professores atuam, dizem quem são e na maneira como enfrentam os conflitos. O profissional está o tempo inteiro sendo atravessado por isso nas práticas, nas formações, em seu próprio modo de ser e pensar e no contato com os estudantes”, explica a pesquisadora.
O conceito de diversidade trabalhado por Jane e pelo grupo DIVERSO está baseado no pensamento da autora e professora Nilma Lino Gomes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Nos últimos dez anos, o Brasil avançou na superação de algumas condições estruturais que afetam a Educação com políticas públicas de ações afirmativas. Isso tem modificado o perfil dos profissionais que vão para o mercado”, avalia a Ana Cristina.
“Sobretudo há também uma mudança nos próprios saberes produzidos nas Universidades, uma vez que os estudantes levantam questões sobre diversidade étnica e racial, desigualdade social e de gênero, entre outras”.
Para Helena Meireles, as discussões sobre diversidade na educação e todo o movimento de mudança não deve ficar restrito a poucos grupos de pessoas. “Ele está dentro de um processo de reconstrução social do povo brasileiro como um todo, por isso precisa do envolvimento de toda a população”, conclui.