Saiba como a literatura indígena evoluiu, suas características e quais obras, e autores, podem ser trazidos para as escolas.
Quando Eliane Potiguara começou a escrever, na década de 70, a literatura de autoria indígena tinha poucos expoentes. Formada em Letras e Educação, ela é hoje escritora, poeta, ativista, professora e empreendedora social de origem potiguara.
A partir dos anos 1990, outros autores começaram a contar suas histórias. Em 1996, a publicação de Histórias de Índio (Companhia das Letrinhas), de Daniel Munduruku, deu mais energia à literatura indígena. Daniel, do povo Munduruku, é pesquisador, professor e escritor. Ele também é diretor-presidente do Inbrapi, Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual.
O p-o-e-s-i-a.org tem como objetivo fortalecer a poesia brasileira através da articulação entre poetas, escritores, leitores, artistas, professores e apoiadores da cultura. O projeto escolheu a literatura indígena contemporânea como tema da primeira edição da revista virtual. A publicação tem como homenageada a poeta Eliane Potiguara e conta com a participação de 27 autores das mais diversas etnias.
“Não criei o termo literatura indígena. Eu sempre pensei que estava escrevendo algo com intuito de educar o olhar nas pessoas, nunca sequer me imaginei como escritor. A ideia de escritor só foi aparecer na minha vida depois que eu já tinha escrito 20 livros. Antes disso eu não me considerava um escritor, eu achava que era apenas um educador que escrevia algo para ajudar as crianças a entender o mundo indígena. Só depois eu fui perceber que eu podia ser escritor, educador, palestrante, acadêmico, pensador, filósofo, tudo junto e misturado”, conta Munduruku em entrevista ao canal Nuhé.
Em 2008 a Lei 11.465/08 tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas redes de ensino. O conteúdo escolar integrou o conhecimento sobre os africanos, à luta e cultura de negros e indígenas no Brasil. A proposta era enfatizar a contribuição de todos esses grupos – nas áreas social, econômica e política – para a formação da população brasileira.
Para Mundukuru, a partir desta lei foi criada uma demanda mercadológica para livros e materiais escritos por autores indígenas. As editoras se interessaram mais pelo tema, e mais escritores foram publicados.
Essa visão é compartilhada por Olivio Jekupé, escritor indígena do povo Guarani, que declarou em entrevista ao UOL: “nos anos 2000, começaram a surgir mais escritores indígenas com livros publicados, com mais facilidade para publicar, principalmente os índios urbanos. Isso é muito bom, é importante esses livros chegarem às escolas para as pessoas conhecerem a literatura nativa”.
Obras e autores
Julie Dorrico é descendente do povo Macuxi. Ela é doutoranda em Teoria da Literatura, organizadora do estudo “Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção”, e autora do livro “Eu sou macuxi e outras histórias”.
A escritora é ainda idealizadora das páginas no Instagram Leia Mulheres Indígenas e Literatura Indígena Rondônia. Em seu canal do YouTube Literatura Indígena Contemporânea ela aborda a produção estética de autores indígenas nos dias de hoje a partir de entrevistas, depoimentos, e resenhas de obras.
Em suas produções Julie defende que para compreender a literatura indígena é preciso reconhecer que a estrutura do pensamento dos povos ameríndios é diferente da ocidental. “Os povos indígenas se orientam a partir do princípio de homem integrado à natureza, e o sujeito do ocidente segue a lógica binária e dual de homem versus a natureza. A própria noção de que os povos indígenas são os “verdadeiros donos da floresta” é totalmente equivocada justamente porque eles não têm essa relação de posse com a natureza”, explica Julie em entrevista ao site Literatura RS.
É importante reconhecer que a literatura indígena faz parte de um universo representado pela sociodiversidade de 305 etnias espalhadas pelo Brasil. Portanto, ela é diversa e apenas uma obra não será suficiente para conhecer toda a complexidade de um povo. Selecionamos abaixo oito obras de autores indígenas que podem ser usadas com estudantes. Confira:
● O Pássaro Encantado – Eliane Potiguara
Neste livro, Eliane Potiguara fala sobre a avó, figura poderosa e mágica, que traz os costumes, as memórias e os ensinamentos para a vida. Os avós são figuras muito importantes para os povos indígenas, pois são os “guardiões” da memória coletiva.
● A Mulher que Virou Urutau – Olivio Jekupe e Maria Kerexu
É a história de uma índia que se apaixona por Jaxi, o Lua. Para saber se o sentimento era verdadeiro, Jaxi resolve colocar em prova o amor da jovem. A obra é uma história de amor que aborda a lenda guarani sobre o pássaro urutau, ave que possui uma diferente estratégia de camuflagem: ficar imóvel nos troncos das árvores, de olhos fechados, para não chamar a atenção dos predadores.
● O Amanhã Não Está à Venda – Aílton Krenak
O autor reflete sobre a pandemia de Covid-19. Krenak questiona a ideia de “volta à normalidade” em que a humanidade quer se divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso de desigualdade entre povos e sociedades. “As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã”, escreve em um trecho.
● Histórias de Índio – Daniel Munduruku
O autor divide o livro em duas partes. Na primeira, traz um conto da cultura munduruku sobre Kaxi, um garoto escolhido pelo pajé como seu sucessor. Para ser iniciado nos segredos da pajelança, o pajé lhe ensina que é preciso sonhar, pois nos sonhos residem os grandes mistérios da vida. Na segunda parte, Daniel Munduruku relata com bom humor suas experiências no “mundo dos brancos” e aborda a situação dos povos indígenas.
● Oré Awé Roiru’a Ma – todas as vezes que dissemos adeus – Kaka Werá
A obra narra a trajetória do índio Kaka Werá Jecupé em busca de suas raízes ancestrais, percorrendo aldeias, passando por iniciações espirituais entre o povo tapuia e o povo guarani, além de suas inquietações ao ver toda a cultura de seu povo sendo apagada pelo crescimento de São Paulo.
● Criaturas de Ñanderu – Graça Graúna
Neste conto, uma garota com nome de pássaro ganha asas ao tornar-se adulta e sai de sua tribo para conhecer a cidade grande.
● Os Donos da Terra – Glicéria Tupinambá, Daniela Fernandes e Vitor Flynn Paciornik
Uma história em quadrinhos que aborda as recentes lutas do povo Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, no sul da Bahia. A trama mistura recuperação dos territórios, operações policiais e ações paramilitares e prisões de lideranças.
● Coração na Aldeia, Pés no Mundo – Auritha Tabajara
É escrito em formato de cordel – manifestação literária tradicional da cultura popular brasileira, mais comum no interior nordestino. A autora, Auritha Tabajara, é cearense do município de Ipueiras, e a primeira mulher indígena a publicar livros em cordel no Brasil.
Aurita faz um retrato de si como mulher indígena, apresenta a sua jornada nas grandes cidades e a busca pelo reconhecimento como mulher, sua luta contra a violência e o entendimento como LGBTQIA+.