Entenda como o debate sobre diversidade pode ser o caminho para um ambiente mais seguro e inclusivo para professores LGBTQI+ nas escolas
“O jeito de olhar é diferente, só quem passa por isso sabe”, relata Walmir Siqueira (51), educador da rede pública do Estado de São Paulo. “Vivemos em uma sociedade conservadora e ainda precisamos trabalhar muito a questão de identidade de gênero e orientação sexual na formação dos educadores e estudantes, porque essa falta de entendimento gera um ambiente escolar hostil”, comenta.
Além de atuar, há 25 anos, como professor de português e inglês na Zona Norte da capital, Walmir faz parte do Conselho LGBTQI+ e do Coletivo Racial do Sindicato dos Professores de São Paulo (Apeoesp), onde também é coordenador estadual e regional. Apesar de ter uma trajetória no movimento, prefere não falar sobre sua orientação sexual em sala de aula.
“Eu enfrento dois polos de discriminação: a racial e a orientação sexual. Mas tento usar esses aspectos da minha identidade ao meu favor, para trazer uma reflexão aos estudantes. Dou aula para o Ensino Médio, por isso busco trazer aulas extrovertidas, sempre estabelecendo limites de proximidade”, relata o educador. “A única regra na minha sala é que não pode haver discriminação de nenhum tipo”, enfatiza.
Walmir se considera privilegiado na escola onde dá aulas atualmente e ressalta que nos últimos cinco anos houve uma mudança no comportamento, sobretudo dos jovens, em relação à receptividade dos padrões que não seguem o modelo heteronormativo. Ainda assim, ele acredita que sua experiência é uma exceção à regra, principalmente nas escolas públicas.
Diálogo como forma de combate
Segundo a Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, 73% dos estudantes LGBTs já passaram por experiências de agressão verbal e outros 36% relataram violência física.
Atos de ameaça, humilhação e violência psicológica comprometem as condições de aprendizado e trabalho, no caso dos educadores. De acordo com uma pesquisa realizada por estudantes da Universidade Federal de Sergipe, a LGBTfobia é a terceira maior causa de bullying nas escolas.
Pedro Oliveira*, 26 anos, sempre foi reservado em relação a sua vida particular. Ele é funcionário efetivo do Estado de Minas Gerais e dá aulas em Januária e Diamantina, no norte do estado. Desde que começou a lecionar, trabalha em escolas rurais e chama atenção para as diferenças, principalmente em relação ao respeito pela figura do professor.
“Os alunos cuidam muito do que falam em sala. Tive apenas um episódio, quando um dos estudantes fez um comentário preconceituoso relacionado à homossexualidade. Quando piadas desse tipo acontecem, costumo chamar o estudante no final da aula e conversar, mas nesse dia percebi um ataque tão direcionado que precisei parar a aula e fazer todo um discurso para a turma sobre orientação sexual”, conta o educador.
Depois do ocorrido, Pedro procurou a coordenação esperando que pudessem encontrar uma solução a partir do diálogo. “Eu gostaria que a escola me ajudasse a pensar em métodos para evitar que esse tipo de comportamento voltasse a acontecer”, relembra.
Este foi o único caso de discriminação desde então. Durante o período de pandemia e ensino remoto, seus estudantes passaram a segui-lo nas redes sociais pessoais e interagir com alguns posts em que ele comentou sobre sexualidade. “A escola é pequena e eu não sei se isso vai refletir de alguma forma, mas estou me preparando para esse debate de maneira leve”.
Receptividade seletiva a professores LGBTQI+
Mesmo dentro da comunidade LGBTQI+ existem diferenças significativas em relação a receptividade na escola quanto aos professores. Na opinião da educadora Ana Almeida*,28 anos, é muito mais comum encontrar educadores gays que assumem sua orientação sexual do que mulheres lésbicas, bissexuais ou transexuais. “Sinto que há um recorte social que faz com que certos grupos da comunidade sejam mais aceitos em determinados ambientes. Isso não deixa de ser um reflexo de uma sociedade patriarcal”.
Ana já lecionou nas redes municipais do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, onde dá aulas de Ciências atualmente. Em todas as escolas percebeu uma predominância de professores heterossexuais ante a comunidade LGBTQI+, e por isso nunca chegou a se sentir confortável em falar sobre a bissexualidade com os colegas.
“Por ser concursada e trabalhar em uma escola pública, acredito que existe um conforto em não poder ser demitida por isso. Se eu trabalhasse em uma escola particular, certamente minha visão seria completamente diferente e eu teria ainda mais medo de me expor”, complementa a educadora.
Uma questão de identidade
Para alguns grupos LBTQI+ que buscam as posições de professores, a dificuldade é mais acentuada. Para pessoas transexuais, que não se identificam com o gênero com o qual nasceram, o ambiente escolar pode se tornar ainda mais hostil. Segundo uma pesquisa realizada em 2016 por João Paulo Carvalho Dias, ex-presidente da Comissão de Diversidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAr), a taxa de evasão escolar de travestis e transexuais era de 82% no Brasil.
Na experiência da educadora Paloma Rodrigues* (26), a relação com a escola foi um caminho para encontrar sua identidade. “Sempre admirei o trabalho dos meus professores, mas tinha medo de estar à frente de uma sala de aula. Hoje eu vejo que isso estava totalmente relacionado ao fato de eu ser uma pessoa transgênero”, relembra.
Enquanto cursava Letras na Universidade de São Paulo (USP), Paloma teve a oportunidade de vencer essa barreira ao se inscrever para um projeto com estudantes do 4º e 5º ano da Escola Aplicada, vinculada à universidade. Foi a partir dessa experiência, que Paloma iniciou o processo de transição e a se assumiu como travesti, dentro e fora da escola.
No início, assumir a identidade gerou questões para a educadora, como por exemplo, o uso do banheiro feminino. “A escola atende os filhos dos professores e funcionários da Universidade, e alguns deles nunca tiveram essa discussão em casa ou mesmo convívio com pessoas trans. Esse espaço é um treinamento para a vida em sociedade, por isso para pensar uma escola ideal primeiro é preciso desconstruir os preconceitos com relação à identidade de gênero e sexualidade”, conclui.
Caminhos em busca da escola ideal
Conversando com a coordenação sobre sua identidade de gênero, e aproveitando a abertura para discussão dentro da universidade, Paloma participou de uma banca com representantes e especialistas em diversidade, que realizou uma formação para os demais professores da escola.
Já Ana Almeida sonha com o dia em que além da “Feira de Ciências” a escola também possa proporcionar uma “Feira da Diversidade”. “É muito importante a escola se posicionar como um corpo comunitário, porque o que acontece nela impacta além dos muros. Trabalhos com a comunidade, com a família, com o corpo docente e com os alunos para compreender a diversidade são essenciais”, comenta.
Para Walmir é importante lembrar que existem leis que garantem o bem-estar da comunidade LGBTQI+ nas escolas, sejam professores, sejam alunos ou outros funcionários. Ele cita o decreto que permite o uso do nome social nas escolas públicas de São Paulo e do Rio de Janeiro, e também a lei que criminaliza a LGBTfobia nas escolas. “Faltam políticas públicas para divulgar essas leis e institucionalizar direitos, sem que isso dependa da consciência individual das pessoas. Se a gente não discute sobre discriminação e diversidade, a gente não forma cidadãos respeitosos”, acredita o educador.
Por fim, Pedro Oliveira complementa que o respeito é a chave da questão para construção de uma escola ideal. “Nós só vamos ter esse respeito quando todos os profissionais da educação, entenderem a importância desse debate. Não é necessário ser membro da comunidade LGBTQI+ para lutar por uma sociedade mais justa, basta ter empatia”, finaliza.
*Alguns nomes foram trocados para preservar a identidade das fontes.