Ao unir saberes ancestrais e educação formal, os estudantes têm a oportunidade de desenvolver habilidades essenciais para a vida em sociedade no século XXI
“Como é moderna, em tecnologia de ponta, a sabedoria ancestral”, começa o arte-educador Robson Max. Quando o assunto é unir ancestralidade e educação, ele argumenta que não há nada mais inovador do que olhar para os ensinamentos do passado para renovar os caminhos do futuro. É sobre resistir, reinventar e reconstruir em tempos complexos.
Além de mestre em Antropologia Social e pesquisador de Religiões Afro-Brasileiras, Robson é um dos fundadores do Espaço Cultural Vila Esperança, na cidade de Goiás (GO). Construído em uma região historicamente marcada pela luta de povos indígenas por suas terras, o espaço se propõe a fazer um constante resgate cultural, sobretudo dos povos originários e das identidades afro-brasileiras.
Desde a década de 1990, o território representa a união entre um grupo de arte-educadores e as lideranças da comunidade local. “Percebemos que através da arte os preconceitos podiam ser transpostos. Dentro de um contexto de fantasia, as reflexões chegavam até nós com mais liberdade. Entendemos que aquele projeto itinerante precisava de um nível de continuidade e profundidade que só seria possível através da educação”, relembra o educador.
Caçadores de alegria
Foi então que, em 2004, a Escola Pluricultural Odé Kayodê nasceu, como uma tentativa de conciliar ancestralidade, arte e educação formal. O projeto político pedagógico trouxe perspectivas afrocentradas (que consideram africanos e afrodescendentes como agentes de sua própria cultura e história) e ameríndias (sobre povos indígenas originários), além de atividades voltadas para o território. Por ter uma proposta atraente e significativa, não demorou até que as próprias crianças da região procurassem o espaço espontaneamente.
“O nosso maior objetivo era oferecer memórias positivas para elas. Imaginávamos as crianças no futuro, como pais e avós, contando sobre as dificuldades que enfrentaram, mas também sobre o espaço que ofereceu a eles um tratamento acolhedor, de reconhecimento de suas identidades e vozes”, conclui Robson Max, que atualmente é gestor da escola.
O próprio nome reflete a essência das práticas pedagógicas. “Odé” significa caçador na língua iorubá, e “Kayodê” corresponde à alegria. Embora a equipe pedagógica seja reduzida, os educadores trabalham como verdadeiros caçadores de alegria, transformando o espaço em uma oportunidade de expressar criatividade, pensamento crítico, empatia e memória.
Valores ancestrais no século XXI
Comunicação, Autoconhecimento e Pensamento Crítico > Oralidade
Na história do continente Africano, a figura do griô representa para a comunidade a herança dos saberes e fazeres de um povo. Com o dom da palavra, esse líder comunitário preserva a tradição oral através de músicas, provérbios e histórias que são repassadas de geração em geração. Para construir a identidade de um coletivo, é necessário conhecer e refletir sobre o tempo que passou. Técnicas como storytelling surgiram a partir dos vínculos introduzidos pela oralidade.
Cidadania > Coletividade
A ideia de assumir responsabilidades para encontrar soluções em prol de uma comunidade esteve — e está — presente na organização de diversos povos, muito antes da existência das cidades. Colaborar faz parte da construção e manutenção das tradições. O termo “cidadania”, bebe das filosofias que colocam o desenvolvimento do indivíduo sempre a favor da coletividade.
Sustentabilidade > Bem Viver
Segundo Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas da atualidade, a ideia do “bem viver” tem origem entre os povos que habitavam a cordilheira dos Andes, representados pelos Quechua e Aymara. Para eles, estar na Terra significa viver em comunhão com todos os outros seres que compartilham conosco essa existência. Sem o planeta, não existem seres vivos. Portanto, é necessário um equilíbrio entre o que podemos tirar da natureza e o que devemos devolver a ela.
Habilidades para a vida
Localizada na periferia da cidade de Goiás, a escola atende estudantes da Educação Infantil até o Ensino Fundamental I. Quando foi fundada, buscou fazer parte da rede pública do estado e posteriormente do município. Com o passar dos anos, no entanto, tornou-se uma escola independente, financiada através de filantropia.
A decisão foi tomada para manter a autonomia na elaboração do currículo. O que a difere das demais escolas é justamente a prioridade do desenvolvimento de habilidades para a vida, conectadas com os saberes da comunidade e do território. A ideia não é abandonar os conteúdos regulares, mas costurá-los interligando os ensinamentos do passado e do presente.
“Não é impossível fazer isso dentro de um sistema tradicional. O que realmente importa é encontrar brechas dentro da agenda regular e ter disponibilidade de mudar a postura em relação às diferentes perspectivas de mundo. Apesar de os educadores responderem a um ecossistema, eles também têm autonomia no que diz respeito ao vínculo que estabelecem com a turma”, acrescenta Robson Max.
Conheça alguns projetos da Odé Kayodê
Projeto de Ancestralidade: Logo após o Carnaval, a equipe pedagógica começa a desenvolver atividades e projetos ligados ao Dia dos Avós, comemorado em 26 de julho. A ideia é resgatar, a partir de memórias afetivas, a origem dos estudantes. As crianças são convidadas a entrevistar os familiares próximos, rastreando o máximo que conseguirem de sua genealogia, até fazer a conexão final com a Mãe Terra, de onde todos descendem. Ao final do semestre, a comunidade escolar se reúne para celebrar os espetáculos e exposições organizados pelas turmas.
“Dentro de um indivíduo existem milhares de vidas. Não importa se você tem como saber quem foram essas pessoas ou não, o que importa é ter consciência de que elas existiram e isso faz parte da sua história”, diz Robson Max, diretor da escola
Memórias familiares: Por conta da pandemia, o Projeto de Ancestralidade não pôde acontecer presencialmente nos últimos dois anos. Em 2021, os estudantes foram convidados a criar um memorial digital, que foi compilado em um ebook intitulado “Um livro de memórias chamado Esperança”. Nele, cada estudante reuniu fotografias, objetos, receitas, músicas, habilidades, algo que tenha sido passado de geração em geração em suas famílias. O objetivo era estimulá-los a valorizar e respeitar a sabedoria dos mais velhos e as heranças culturais que deixaram.
Roda de projetos: Em todas as reuniões pedagógicas, a equipe de educadores planeja atividades de acordo com alguns eixos norteadores. Entre eles estão: ecologia, consciência social e política, filosofia, ludicidade e arte.
Tempo de resistência e reflexão
Desde 2020, em decorrência da pandemia de coronavírus, as propostas da Odé Kayodê tiveram de ser adaptadas. O isolamento social não apenas afetou os projetos pensados para acontecer presencialmente, como também as visitas de universidades e outras escolas da região ao espaço cultural, parte da fonte de renda da instituição.
“Nossa escola é presença, festa, cheiro, comida, música e dança. Por isso, esse foi um momento muito difícil para nós. Mas, assim como nossos antepassados resistiram, nós não deixamos de cumprir o nosso papel. Utilizamos a tecnologia para continuar propondo nossos projetos e celebrando, mesmo separados”, complementa o diretor Robson Max.
Para ele, diante de tanta perda e sofrimento, esse período também nos ofereceu a oportunidade de repensar a relação com a coletividade, com o outro e com o tempo. “Precisamos reaprender a ter uma relação saudável com o tempo que passou, o tempo de agora e somente depois o que virá. Mais do que nunca é importante bebermos nas fontes de sabedoria ancestral para distinguir o que é permanente e o que precisa mudar”, finaliza.
Já ouviu falar da Pedagogia Griô?
Na região da Chapada Diamantina (BA), outro espaço de fortalecimento da ancestralidade do povo brasileiro se destaca internacionalmente pela atuação junto à educação formal. A associação Grãos de Luz e Griô existe desde 1995 e surgiu para reunir os saberes das comunidades tradicionais, rurais e periféricas da região. A partir das vivências no território, a educadora Lillian Pacheco sistematizou a Pedagogia Griô, que vincula os saberes dos mestres da tradição oral aos conteúdos regulares.
A partir de temas geradores como Terra, Água, Cidadania, Trabalho, Alimento, disciplinas como História, Ciências e Matemática são introduzidas. A vida está sempre no centro e as habilidades para a vida em comunidade são priorizadas. As formações e oficinas resgatam músicas, histórias e danças e não apenas são destinadas aos jovens, como também aos educadores interessados em aprimorar práticas sob essa perspectiva.