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Por Carolina Pezzoni, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
A sociedade conta sempre a mesma história: “eles não podem ser como nós porque isso implica que nós podemos ser como eles”. Precisam, portanto, ser considerados como uma alteridade e escapar assim ao olhar; por isso a prisão, que os (in)visibiliza.
Gostemos ou não, estes jovens fazem parte do nosso mundo e compreendê-los ajuda (bastante) a nos compreender; livres ou encarcerados eles são parte de nos na medida em que fazem parte da nossa sociedade e cultura e, portanto, do ar (simbólico) que respiramos.
Trechos de “Os inquilinos da Casa e suas narrativas”, de Fernando Lefevre & Ana Maria Cavalcanti Lefevre, no livro A voz dos meninos (2014).
Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, em 2012, apurou em pesquisa o perfil dos 17,5 mil adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no Brasil, mais da metade deles não frequentava a escola antes de ingressar nas unidades e a maioria parou de estudar até os 14 anos. Não obstante o peso dessa realidade, os altos índices de reincidência – 15% em São Paulo, de acordo com a Fundação Casa, e 50%, de acordo com o Ministério Público – mostram que não há medida para quando eles saem da instituição.
“Ele volta para o mesmo lugar de onde saiu”, destaca Daniela Schoeps, coordenadora-geral do projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais, promovido há oito anos pelo CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) em algumas unidades de internação da Fundação Casa. “Não é o caso de culpar a situação social, até porque muitos na mesma situação seguem outros caminhos, mas ele volta para a mesma quebrada, não é aceito em outro grupo”, observa a coordenadora, responsável também pela realização de formações com os educadores, que integram o convênio.
Entender este contexto, a fim de romper com o estigma que carregam os adolescentes em conflito com a lei, é um ponto central do projeto, que atende aos internos com oficinas de cultura popular, artes visuais, artes cênicas, artes da palavra e artes do corpo. “Eles não são iguais ali dentro, assim como ninguém é, em nenhum lugar”, afirma Daniela. Mas isso não costuma ser um problema entre os arte-educadores, capazes de responder à pergunta ‘Quem é esse adolescente?’ sem saber qual foi o ato infracional que o levou até ali. “Um educador pode passar meses trabalhando com um menino e jamais saber o que aconteceu. Desde o início do trabalho, ele já percebe que essa curiosidade não leva a nada. Isso é natural, a gente nem precisa falar.”
Leia a reportagem do Promenino sobre as oficinas de fotografia realizadas pelo francês Klavdij Sluban com adolescentes na Fundação Casa, no segundo semestre de 2015.
O respeito à cultura que os jovens trazem com eles, portanto, é fundamental. Segundo o educador e um dos coordenadores regionais do projeto, José Paulo, o Pê, isso deve ser considerado para que eles percebam a importância de ampliar seu repertório, cumprindo um dos grandes objetivos do projeto. Tony Sagga, também educador e coordenador de outra regional, concorda: “Cada educador sente o seu grupo e trabalha em cima da bagagem que o jovem já tem, que muitas vezes é mínima… Às vezes acontece de um adolescente que não sabe ler ou escrever estar na atividade de artes da palavra. E os educadores aceitam esse desafio”.
O maior deles, na avaliação de Edson Pelicer, artista visual e coordenador regional, é provar para o menino que ele pode fazer. “Ele carrega essa insegurança, geralmente ligada ao pouco contato com o assunto. Traz muito essa coisa da cópia, do fazer igual… Existe esse preconceito com a arte abstrata, por exemplo. Então, cabe a você ir mostrando porque é daquela forma. Ampliar o repertório visual, levando referências, para que percebam a subjetividade, é muito importante”, explica, destacando que, quando conseguem ir além e fazer diferente, sempre fica melhor.
A seu ver, ao longo de três meses de atividades, em dois encontros semanais de 1h30 – o ciclo regular das oficinas –, já dá para perceber as mudanças. E o resultado é estabelecido não a partir de comparações externas, mas sobre uma linha do tempo do que o próprio jovem produziu. “Procuramos mostrar até onde ele chegou em relação a quando começou”, descreve o educador.
Nem julgar, nem salvar
A atividade desses arte-educadores já é desafiadora em sua natureza: inserir a arte, que é experimentação e fruição, em um ambiente de privação de liberdade. E eles precisam saber lidar com isso. Um dos princípios é o entendimento de que eles não estão ali para salvar alguém. “Ninguém é super-herói”, esclarece Daniela. “Esse ideal é frustração na certa.” Em sua leitura, existem outros fatores para se pensar em um processo de transformação.
Diálogos com a escola
Um dos frutos não previstos do projeto tem sido o despertar do interesse por alguma disciplina do ensino formal através da arte. Como relata José Paulo, “o trabalho de um educador de cultura popular que entra na questão dos quilombos e dos territórios onde surgiu a capoeira se reflete em uma aula de Geografia, da mesma forma que o trabalho de uma educadora da palavra que apresenta poesias da literatura marginal se reflete nas atividades de Língua Portuguesa”.
Por meio da arte, o adolescente em medida socioeducativa entra em contato com algo que provavelmente não conhecia antes ou conhecia muito pouco. “A arte oferece possibilidades”, avalia a coordenadora do projeto. Permite acessar memórias de família e acontecimentos históricos, por exemplo, encorajando a formação de uma identidade. Além disso, promove escolhas, empoderando o adolescente em relação ao que ele pode fazer. “O que de fato ele fará com isso é opção dele, se vai conseguir, é outra história ainda”, conclui, levando em conta que a arte-educação não é uma instância única: “existe também a escola, o ensino profissionalizante, a família…”
Até mesmo o letramento é uma consequência das oficinas. “Ainda que de maneira informal, esse diálogo está acontecendo”, observa Daniela. Para aprofundar nesses aspectos do projeto, o CENPEC, no âmbito da Plataforma do Letramento, está produzindo um documentário sobre a temática. A proposta é acompanhar oficinas de todas as linguagens, e contar com especialistas para identificar nelas componentes de letramento.
A liberdade de atuação dos educadores é um recurso que contribui para a fluência do trabalho. “É uma decisão do projeto não ter uma apostila a ser seguida. Então, um educador da palavra não dá a mesma coisa que o outro. Ele pode até trabalhar o mesmo conteúdo, mas cada um a sua maneira”, explica Daniela, revelando que um dos requisitos para se tornar educador é a experiência artística.
Uma situação recorrente, segundo Tony, é a necessidade de trabalhar a autoestima e o trabalho em grupo, para que os adolescentes não se sintam envergonhados se derem um passo fora do tempo ou gaguejarem na hora de fazer um improviso. Existem muitas estratégias, mas uma delas é mostrar que o erro acontece para todos. “Quem vem da arte tem essa sensibilidade para agregar, encontrar formas de inserir”, diz ele. Aos poucos, o adolescente que estava indisposto a dançar começa a ajudar com o som e às vezes até a dançar…
Situações como esta, reflete Pê, mostram que o mesmo menino que não está para a medida, está para esse momento de arte e cultura. “Ufa, ainda bem que você veio professor, é um momento que nós tá de boa” ou “Foi preciso eu vir preso para conhecer esse tipo de arte” são falas que demonstram o nível de envolvimento.
Um fator importante – destacado por Daniela – é deixar o adolescente à vontade, não obrigá-lo a fazer. “Ele já é obrigado a tudo na Fundação Casa. E, mesmo que ele esteja só sentando ali, está produzindo, adquirindo conhecimento. Enquanto isso, o educador vai procurando formas de trazê-lo até que ele se apropria da prática. Pensamos muito em termos de experimentação.”
Diante dos questionamentos, que podem vir tanto do corpo de funcionários como dos adolescentes, a recomendação é apresentar uma argumentação técnica. Se um movimento de dança de rua for questionado por fazer determinado tipo de apologia, o educador deve estar preparado para explicar a origem do movimento, próprio daquela manifestação artística. “É uma questão de atitude”, reflete Pê, “que as hierarquias do tolhimento podem não entender”. Na opinião de Edson, essa explicação é uma chance mostrar ao adolescente a função daquela atividade e até uma forma de conviver melhor lá dentro, com todas as restrições, “que existem mesmo”.
Na mesma medida em que o educador empodera o jovem na Fundação Casa, ele também é empoderado pelas formações para ter melhores condições de desenvolver o seu trabalho. “Um dos grandes objetivos da formação é que esse artista ganhe corpo e assuma o papel de um educador completo sem se engessar”, afirma Daniela. E a tarefa não é simples, pois ele deve lidar, permanentemente, com o profissional da área pedagógica, a segurança, o agente de pátio, a própria condição precária dos meninos internos, os desligamentos, entre outras instâncias e desafios. “São artistas dentro de um ambiente de privação de liberdade”, ressalta Daniela.
Ainda assim, segundo relata José Paulo, que trabalha com jovens em restrição de liberdade desde a época da Febem, a melhora é visível: “Antes era um tambor ali, um pandeiro aqui… Eu fazia um rap bem tímido porque isso era música de ladrão, de bandido. Não tinha abertura nenhuma.”
Atualmente, cada centro opera à sua maneira, alguns com maior contenção e disciplina, outros com menos, alguns com funcionários que reconhecem o potencial transformador da arte, outros em que se dá menos valor. De qualquer forma, em todos eles, ouve-se o barulho da grade trancando antes de dar início a uma oficina. É por isso que, como destacou Daniela, esses arte-educadores são mestres verdadeiros, que, mesmo diante de todas as limitações, fazem a arte acontecer lá dentro.
Documentário: Os Visitantes da Casa
A partir de uma vontade de registrar o olhar e a experiência destes profissionais que desenvolvem oficinas de experimentação artística e cultural junto aos jovens da Fundação, surgiu o documentário Os Visitantes da Casa (2016). Nesta produção coletiva e centrada nos encontros de formação semanais dedicados ao debate e à troca de experiências, os arte-educadores narram suas vivências dentro da complexa instituição. Refletem sobre o educar para a sensibilidade e a atividade criativa “em um caldeirão de tensões”, como traz seu texto de apresentação.
Os encontros de formação foram acompanhados durante seis meses. E, ao longo deste período, discutiu-se com os educadores “o que esperavam do filme, quem iria participar e como, trazendo formações sobre o roteiro, personagens…”, compartilhou Daniela Schoeps.
O título foi inspirado no texto “Os inquilinos da Casa e suas narrativas”, do livro A voz dos meninos (2014), publicado como parte da produção de conhecimento contemplada pelo projeto. (Clique aqui para fazer o download gratuito da publicação).
Seus autores, Fernando Lefevre e Ana Maria Cavalcanti Lefevre, contrastam o lugar dos educadores, que, como visitantes, frequentam os centros três horas por semana, e dos meninos, que, como inquilinos do Estado, pagam com a própria liberdade para habitarem ali.