ECA: ARTIGO 129/LIVRO 2 – TEMA: MEDIDAS APLICÁVEIS AOS PAIS OU RESPONSÁVEIS
Comentário de Francisco Xavier Medeiros Vieira
Tribunal de Justiça/Santa Catarina
Em nosso ofício de pesquisadores na área da violência doméstica contra criança e adolescentes temos nos defrontado com antigas dúvidas que assaltam aqueles que, por força de sua prática profissional, têm atendido casos desta natureza. Estas dúvidas dizem respeito a como proteger a vítima de novas agressões, como encaminhar o tratamento terapêutico de pais e filhos, como se determinar a possibilidade de reunificação familiar após eventos desta natureza. Nas mentes de muitos daqueles que se defrontam com a questão ainda há resquícios de um antigo dilema: o direito da criança ser protegida é mais importante do que o direito da família à privacidade?. No trabalho que ora apresentamos tivemos como intuito mostrar que, numa sociedade adultocêntrica, é preciso que repudiemos com competência as falsas soluções que muitas vezes invocam os interesses da criança mas que, na realidade, a prejudicam muito mais do que a ajudam. Na área da violência doméstica contra crianças e adolescentes muitas respostas já foram obtidas e outras ainda estão para ser conseguidas. Recuperar estas informações torna-se importante para se conseguir um trabalho de maior qualidade. Foi pensando nisso que buscamos, aqui, desfazer antigas dúvidas, contribuindo, assim, para uma reflexão aprofundada sobre o tema e, talvez, suscitando novas interrogações, que são a prova de que todo o conhecimento não existe pronto, acabado, mas que se fortalece com as críticas e com os acréscimos.
Buscamos definir conceitualmente o que entendemos por violência doméstica contra crianças e adolescentes, quais os seus tipos preferenciais e como se pode intervir em termos da violência física e da sexual.
A violência doméstica é um dos vários tipos de violência que a Humanidade tem praticado e continua praticando contra crianças e adolescentes.
Para bem compreender o fenômeno importa responder as três questões conceituais básicas: 1°) Que se entende por violência?, 2°) Qual a natureza da violência doméstica?, 3°) Quais os tipos principais de violência doméstica?
Comecemos pela primeira questão.
Segundo M. Chauí, “entendemos por violência uma realização determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão das normas, regras e leis preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão, isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como uma ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência” (participando do debate sobre Mulher e Violência, in Perspectivas Antropológicas da Mulher, Rio, Zahar, 1985).
Se analisarmos detidamente essa definição, podemos extrair dela os elementos fundamentais de uma concepção sociológica de violência, tal como o fez S. Adorno (Violência e Educação,São Paulo, 1989, mimeografado):
“Primeiro, nunca é demais repeti-lo, a violência é uma forma de relação social; está inexoravelmente atada ao modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições sociais de existência. Sob esta ótica, a violência expressa padrões de sociabilidade, modos de vida, modelos atualizados de comportamento vigentes em uma sociedade em momento determinado de seu processo histórico. A compreensão de sua fenomenologia não pode prescindir, por conseguinte, da referência às estruturas sociais; igualmente, não pode prescindir da referência aos sujeitos que a fomentam enquanto experiência social.
“Segundo, ao mesmo tempo em que ela expressa relações entre classes sociais, expressa também relações interpessoais. A violência está presente no modo de realização da existência econômica que comporta a exploração de uns sobre outros; não se encontra ausente da imposição de limites e restrições à participação política democrática; não se exime de se manifestar no terreno da cultura, campo no qual as diferenças de identidade entre grupos sociais heterogêneos tendem a ser subjugadas por concepções unívocas da vida, da sociedade, do mundo. Nesta perspectiva, a violência manifesta-se como dominação, como instrumento de sujeição de grupos sociais determinados, seja a classe, o grupo étnico e o racial, ou mesmo aqueles agrupamentos que se constituem às voltas de situações peculiares, como a sexualidade ou a religiosidade. Porém, ao mesmo tempo, está presente nas relações intersubjetivas, aquelas que se verificam entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre profissionais de categorias distintas. Seu resultado mais visível é a conversão de sujeitos em objeto, sua coisificação.”
“Terceiro, a violência é, simultaneamente, a negação de valores considerados universais: a liberdade, a igualdade, a vida. Se entendermos, como o fez a filosofia política clássica, que a liberdade é fundamentalmente capacidade, vontade, determinação e direito natural do homem, a violência enquanto manifestação de sujeição e de coisificação só pode atentar contra a possibilidade de construção de uma sociedade de homens livres. Ela conspira, ainda, contra a viabilidade de construção de uma sociedade democrática, na medida em que se confronta com o princípio de igualdade, entendido como igual direito dos diversos grupos sociais serem constituintes da história de sua sociedade, independentemente de suas diferenças de raça, de sexo, de classe ou outra qualquer. Por fim, um outro pressuposto, embutido nessa conceituação sociológica da violência, diz respeito à percepção do significado da vida. A violência não é necessariamente condenação à morte, ou, ao menos, esta não preenche seu exclusivo significado. Ela tem por referência a vida, porém a vida reduzida, esquadrinhada, alienada; não a vida em toda a sua plenitude, em sua manifestação prenhe de liberdade. A violência é uma permanente ameaça à vida pela constante alusão à morte, ao fim, à supressão, à anulação.”
Essas considerações permitem-nos enfrentar a segunda questão colocada.
A violência doméstica é diferente da violência estrutural, que é a violência entre classes sociais, inerente, ao modo de produção das sociedades desiguais.
A violência doméstica é uma violência intraclasses sociais, que permeia todas as classes sociais, enquanto violência de natureza interpessoal. “Enquanto violência intersubjetiva, a violência doméstica consiste também: a) numa transgressão do poder disciplinador do adulto, convertendo a diferença de idade adulto-criança/adolescente numa desigualdade de poder intergeracional; b) numa negação do valor liberdade: ela exige que a criança ou adolescente sejam cúmplices do adulto num pacto de silêncio; c) num processo de vitimização enquanto forma de aprisionar a vontade e o desejo da criança ou do adolescente, de submetê-la ao poder do adulto a fim de coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas e as paixões deste.
“Por isso mesmo, o abuso-vitimização consiste, pois, num processo de completa objetalização da criança ou adolescente, isto é, de sua redução à condição de objeto de maus-tratos”.
“Em síntese, a violência doméstica contra crianças e adolescentes: I – é uma violência interpessoal; II – é um abuso do poder disciplinador e coercitivo dos pais ou responsáveis; III – é um processo de vitimização que ás vezes se prolonga por vários meses e até anos; IV – é um processo de posição de maus-tratos à vítima, de sua completa objetalização e sujeição; V – é uma forma de violação dos direitos essenciais da criança e adolescente enquanto pessoas, e, portanto, uma negação de valores humanos fundamentais como a vida, a liberdade, a segurança; VI – tem na famíliasua ecologia privilegiada. Como esta pertence à esfera do privado, a violência doméstica acaba se revestindo da tradicional característica de sigilo” (M.A. Azevedo, A Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes no Município de São Paulo, projeto de pesquisa mimeografado).
Finalmente, a terceira questão levantada diz respeito aos tipos de violência doméstica reconhecidos. Eles são três: violência física, violência sexual e violência psicológica. No âmbito deste trabalho trataremos apenas das violências física e sexual.
Violência física:corresponde ao emprego de força física no processo disciplinar de um filho por parte de seus pais. A literatura é muito controvertida em termos de quais atos podem ser considerados violentos: desde a simples palmada no bumbum até agressões com armas brancas, de fogo, com instrumentos (pau, barra de ferro, taco de bilhar etc.), imposição de queimaduras, socos, pontapés etc. Cada pesquisador tem incluído em seu estudo os métodos que considera violentos no processo educacional pais filhos, embora haja ponderações no sentido de que a violência deve-se relacionar a qualquer ato disciplinar que atinja o corpo de uma criança ou adolescente (para uma discussão conceitual mais aprofundada a respeito, consulte-se M. A. Azevedo e V. N. A. Guerra, Crianças Vitimizadas: a Síndrome do Pequeno Poder, São Paulo, Iglu, 1989).
Violência sexual: o conceito está longe de ser preciso. No entanto, é possível considerarmos como tal “todo jogo ou ato sexual, relação heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa” (M.A. Azevedo e V.N. A. Guerra, “Vitimação e vitimização: questões conceituais”, in Crianças Vitimizadas… cit.). Genérica como está, essa conceituação tem duas vantagens básicas. A primeira delas é permitir abranger dois subtipos de abuso: o incesto e a exploração sexual. O incesto define se para nós como “toda atividade de caráter sexual, implicando uma criança de 0 a 18 anos e um adulto que tenha para com ela seja uma relação de consangüinidade, seja de afinidade ou de mera responsabilidade” (idem, ibidem). Nesse sentido, a conceituação é bastante ampla para incluir como agressor todo aquele que tenha um vínculo de responsabilidade para com a criança (pai adotivo, tutor, padrasto etc.) e cujas relações sexuais seriam interditas por lei ou costume. Também supera a definição restrita de incesto, segundo a qual este seria um fenômeno envolvendo apenas indivíduos sexualmente maduros. A exploração sexual, por sua vez, implica a participação de criança menor de 18 anos em atividade de prostituição e pornografia infantis, isto é, no comércio do sexo.
A segunda vantagem da definição proposta para abuso-vitimização sexual está em que ela permite incluir, como tal, todo o espectro de atos sexuais, sejam eles homossexuais ou heterossexuais: a) com contato físico (abrangendo coito ou carícias apenas); b) sem contato físico (incluindo exibicionismo, voyeurismo etc); c) com força física (incluído agressões e até assassinato); d) sem emprego de força física (para uma análise mais aprofundada desta questão consulte-se, a respeito, M. A. Azevedo e V N. A. Guerra, Crianças Vitimizadas… cit.).
Tendo procedido à conceituação de violência doméstica contra crianças e adolescentes em termos de duas modalidades de que ela pode se revestir, passaremos, agora, a discutir os dois artigos (arts. 129 e 130) do Estatuto da Criança e do Adolescente no que tange especificamente a este tipo de violência.
Os artigos supramencionados inserem-se no t1tulo IV, “Das medidas pertinentes aos pais ou responsáveis”, ou seja, como se pode encaminhar a atenção à violência doméstica no âmbito familiar.
O art. 129 aborda as medidas aplicáveis aos pais ou responsável. Embora saibamos que tais medidas dizem respeito a uma série de problemas, permitir-nos-emos fazer, aqui, um corte e trabalhar a relação delas com a violência doméstica.
A nosso ver, as medidas abrangem dois aspectos fundamentais: a) a permanência dos pais com os filhos; b) a separação, seja ela definitiva ou temporária.
Para a adoção de uma ou de outra decisão é importante, no nível da violência doméstica, estabelecer-se, em primeiro lugar, o potencial de risco que uma criança corre após o evento agressivo. A literatura mostra-nos que a violência física e a sexual têm que ser tratadas diferentemente neste aspecto.
No tocante à violência física os critérios que devemos adotar para poder tomar a decisão de separar ou não a vítima de seus pais, de acordo com a literatura especializada, são os seguintes:
1° A idade da vítima e a sua possibilidade de defesa quanto ao ato sofrido. Se for um bebê, dificilmente poderá escapar dos agressores ou, mesmo, buscar ajuda imediata, conforme os meios de agressão empregados. 2° . A presença de violência física severa, ou seja, quando a vítima sofreu: danos físicos relevantes (abdominais, cerebrais, queimaduras graves); múltiplas fraturas; mutilações; agressões com armas (brancas, de fogo); envenenamento deliberado com intento de morte:
3°. Falecimento anterior de outras crianças na casa: é necessário pesquisar se a família perdeu irmãos da vítima e quais as circunstâncias que envolveram tais mortes, sendo que muitas vezes foram produzidas por atos violentos.
4°. Histórias anteriores de violência quanto à mesma vítima: é preciso verificar, também, em que medida o evento agressivo vem-se repetindo com freqüência. Em nosso País, os agressores costumam levar a vítima a atendimento médico em diferentes instituições, aproveitando-se do fato de que, em geral, não há comunicação entre elas. Recuperar esta trajetória é de vital importância para a sobrevivência da vítima.
5°. Pais expressam não desejar a vítima em sua companhia: há muitos pais que colocam claramente, após a agressão, que não desejam permanecer com o filho, estando dispostos a abrir mão pele. Muitas vezes, a insistência dos profissionais em reunir pais e filhos pode, num primeiro momento, tornar-se perigosa para a vítima. 6°.O elemento não agressor não reúne condições de proteger a vítima: nos casos de violência física, geralmente, um dos pais é o agressor e o outro um elemento passivo que se omite em face do fenômeno, seja porque tem medo do agressor, seja porque não convêm tirar da esfera do privado esta questão. Uma avaliação consistente deste elemento não agressor é fundamental no sentido de verificar se reúne condições para se opor ao quadro de violência existente, defendendo a vítima e limitando a ação do agressor.
7°. Pais que recusam todo o atendimento proposto,: por negarem sistematicamente que houve violência ou por considerarem a disciplina violenta como essencial para a vítima.
De modo geral, estes critérios, se forem bem analisados, poderão dar uma indicação do potencial de risco a ser enfrentado pela vítima na companhia dos agressores.
Se for decidida a separação da vítima em termos dos pais, colocam-se duas questões: para onde ela deverá ser encaminhada? por quanto tempo ocorrerá a separação?
A vítima poderá permanecer: em companhia de parentes (avós, tios etc.): ressalte-se que, se a escolha recair nos avós, é preciso primeiro verificar se eles, nos casos de violência física, não agrediram os pais no passado; em companhia das chamadas “famílias substitutas terapêuticas experiência que vem ocorrendo com sucesso internacionalmente e que consiste na existência de famílias adequadamente preparadas para receber estas vítimas, supervisionadas por profissionais competentes e remuneradas pelo Estado por esta atividade; em casas-refúgio com 20 vagas no máximo e dedicadas exclusivamente a receber estas vítimas: a literatura científica internacional mostra que tais casas devem ser voltadas somente para as vítimas de violência doméstica e contar com pessoal capacitado para recebê-las. Nestas casas não se exclui o contato pais-filhos, sendo que este mesmo contato é supervisionado por profissionais preparados para tanto. Erroneamente se pensa que as casas-refúgio para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica devam ter o mesmo funcionamento das casas-refúgio para mulheres adultas vítimas de violência marital. Neste último caso não se libera o endereço das casas para se evitar o confronto entre o casal. No caso das crianças e adolescentes, quando bem trabalhada a separação, os pais a aceitando em benefício do.filho, os riscos de que eles criem problemas nas casas-refúgio são bem reduzidos, também.
A permanência destas vítimas em grandes instituições fechadas não é recomendável, sendo adotada em último caso.
Um segundo aspecto a ser discutido é o do tempo de separação dos pais. Como nos alertam J. Goldstein, A. Freud e A. J. Solnit: “diferentemente dos adultos que aprenderam a prever o futuro e assim a saber esperar, as crianças têm um senso interior de tempo baseado na urgência de suas necessidades instintas e emocionais”. “Uma criança experimentará um dado período de tempo não de acordo com sua duração real, medida objetivamente pelo calendário e o relógio, mas de acordo com seus sentimentos puramente subjetivos de impaciência e frustração” (No Interesse da Criança?,São Paulo, Martins Fontes, 1987). Os Autores colocam que, como a noção de tempo para a criança é diferente da do adulto, é preciso que “as autoridades ajam com toda a rapidez deliberada para maximizar a oportunidade de cada criança, seja para restaurar a estabilidade em um relacionamento existente, seja para facilitar o estabelecimento de novos relacionamentos que venham a substituir os antigos. As decisões processuais e importantes nunca devem ultrapassar o tempo em que a criança a ser colocada suporta a perda e a incerteza” (idem, ibidem). Com bastante propriedade, os autores enfatizam que a criança ou adolescente separado da família, neste quadro da violência doméstica, não pode aguardar indefinida e burocraticamente uma decisão do seu caso.
Quanto à questão do tratamento terapêutico de casos desta natureza, é preciso sempre guardar na memória as frases de Kempe e Schmitt sobre a necessidade de uma atenção adequada a estas vítimas e à sua família: “se uma criança que foi agredida fisicamente retoma aos pais sem intervenção, 5% delas são assassinadas e 35% seriamente feridas de novo. Além disso, as famílias não tratadas tendem a produzir crianças que crescerão como delinqüentes juvenis e assassinos, bem como serão os futuros agressores da próxima geração” O. Eekelaar e S. Katz, Fami/y Vio/ence – An Internationa/ and Interdiscip/inary Study, Toronto, Butterworths, 1978): Na área da violência física há diversas modalidades de tratamento para vítimas e agressores, que passam por terapias familiares, de casal, ludoterapia, terapia de grupo etc. (consulte-se, a respeito, P.J. Beezley, “Modernas opções de tratamento”, in M. A. Azevedo e V. N. A. Guerra, Crianças Vitimizadas .., cit.).
Para os casos em que a vítima foi separada dos agressores existem alguns critérios nos quais podemos nos basear em termos de propor novamente a reunificação familiar: a) pais em processo terapêutico; b) pais conseguindo: tolerar a expressão de sentimentos negativos da vítima em relação a eles; usar técnicas disciplinares adequadas; controlar seus impulsos; reconhecer problemas específicos do cuidado com os filhos e resolvê-los; falar de forma positiva dos filhos; identificar situações potencialmente perigosas para eles, propondo-se a um afastamento dos filhos nesses momentos; não faltar às visitas para a vítima, estabelecendo com ela interação positiva nas mesmas; c) o elemento não agressor reúne condições para intervir, se for preciso; d) observações de outros profissionais de todas as instituições envolvidas no caso, mensurando-se o nível de consistência dessas observações.
Quando, entretanto, ficar caracterizada a impossibilidade de convivência da vítima com os pais e se romperem os vínculos deste pátrio poder, uma das soluções possíveis é a adoção. Proposta de forma criteriosa, procurando escolher para a vítima pais que aceitem seu passado, que compreendam o que sucedeu e que se disponham fundamentalmente a cooperar, está-se, na realidade, evitando que esta vítima venha a ser “desenvolvida” sucessivamente por famílias que, na verdade, não estavam buscando um filho, mas um objeto para a realização de suas necessidades. É importante considerar que não é fácil a adoção de uma vítima que sofreu violência física. Muitas vezes ela acaba inconscientemente mobilizando os pais adotivos para eventos agressivos em relação à sua figura. Por isso, é importante que tanto a vítima quanto os pais adotivos recebam ajuda especializada, para que estes novos vínculos se estabeleçam de forma adequada.
No tocante à violência sexual, teremos que considerar que ela ocorre graças à atuação conjunta de quatro fatores: 1°) um adulto que nutre sentimentos sexuais por uma criança; 2°) um adulto que age na base desses sentimentos, através da redução de seus inibidores internos; 3°) ausência ou força reduzida de impedimentos externos a essa prática; 4°) a vulnerabilidade da criança para aceitar, cooperar ou evitar a abordagem sexual de adultos.
Em síntese, a decisão de manter a vítima ao lado do agressor passa pela consideração: a) do grau de vulnerabilidade física e psicológica da criança; b) da força protetiva do elemento não agressor; c) da cultura sexual vigente nos grupos sociais a que a família pertence; d) do tipo de agressor sexual(preferencial ou situacional).
A intervenção numa família incestogênica, além de considerar os elementos em risco, deve, necessariamente, levar em conta também a “história natural” do processo abusivo, isto é, a trajetória do abuso (duração e gravidade); tipo (pai x filha; mãe x filho etc) e o momento da revelação (disclosure) acidental ou intencional. Essa intervenção deve necessariamente também estar estruturada em termos de um projeto terapêutico que envolva, no mínimo, as seguintes medidas:
a) Saída do agressor de casa imediatamente após a revelação (especialmente nos casos de incesto pai x filha; mãe x filho). “Os profissionais mais experientes na área concordam em que, durante o período de crise (disclosure), pai e filha não devem estar sob o mesmo teto. Mesmo se o pai confessa imediatamente após a revelação, é simplesmente muito perigoso e estressante para a filha ter que retornar ao lar, enfrentar seu pai e continuar vivendo sob sua autoridade. Por muitas razões é mais desejável que o pai deixe a casa ao invés da filha. Em primeiro lugar, como ele é um adulto, está mais capacitado a encontrar alternativas de moradia. Ele não precisa ser colocado em lares substitutos; tudo o que ele precisa é de um quarto em algum lugar. Em segundo plano, muitos abrigos temporários para meninas são inapropriados ou inseguros para vítimas de incesto. Se uma filha for enviada para uma instituição dessa natureza, ser-lhe-á difícil escapar ao sentimento de estar sendo tratada como criminosa, ao invés do pai. Se, por outro lado, a filha for colocada em uma família substituta, corre o risco de sofrer nova vitimização sexual. Quando uma jovem é definida como vítima de incesto, muitos homens vão achá-la sexualmente interessante e tratá-la como propriedade pública. Como resultado, não será difícil que ela receba atenção sexual de pais adotivos e outros membros de famílias adotivas. Finalmente, mesmo que se encontre um local ideal para a filha, ela se sentirá punida se for excluída da família enquanto o pai permanece em casa. Remover a filha do lar reforça a tendência da díade parental se aliar contra ela, enquanto que a remoção do pai dará à vítima uma chance de reparar o seu relacionamento com a mãe e uma oportunidade a esta última para atuar por si própria. Excluir um homem de sua própria casa, todavia, representa um enorme desafio à dominação masculina. Enquanto tal, este curso de ação geralmente encontra muita resistência, não apenas por parte dos pais, mas também de quase todas as instituições sociais existentes. Por isso mesmo, um pai agressor deverá ser compelido a deixar o seu lar somente através de uma ordem judicial” U. L. Herman, Father-Daughter Incest, Londres, Harvard University Press, 1981).
Em outras realidades, quando se determina judicialmente o afastamento do agressor da moradia comum (nos casos de abuso sexual incestuoso) acopla-se a essa medida uma proibição de acesso imediato do agressor à vítima. Em nossa realidade, um dos mais sérios obstáculos à efetivação dessa medida está na própria mãe (em caso de incesto pai x filha), que geralmente prefere a companhia do agressor, como decorrência da sua condição de desamparo e subalternidade. Fica claro também que a efetivação dessa medida pressupõe um esclarecimento e discussão aprofundados da questão com a vítima (quando possível) e com o cônjuge não agressor. Pressupõe, também, uma atuação articulada entre Polícia e Justiça da Infância e da Juventude.
b) Tratamento terapêutico familiar, que deve envolver, entre outros (p. ex., no caso de abuso sexual pai x filha): 1) aconselhamento individual para a vítima, mãe e pai; 2) aconselhamento mãe x filha; 3) aconselhamento marital, que é visto como uma peça-chave quando se visualiza a possibilidade de reunificação familiar; 4) aconselhamento pia-filha; 5) aconselhamento familiar.
A terapia familiar em casos de abuso sexual deve, necessariamente, estar assentada no pressuposto de que o agressor precisa ser tratado e que no bojo deste tratamento deve figurar a reeducação sexual.
Todo tratamento implica uma avaliação anterior aprofundada do agressor.
A literatura internacional mais recente vem mostrando que o projeto terapêutico pode ou não envolver o encarceramento do agressor e a compulsoriedade ou não do tratamento prescrito.
“Em termos de recomendações de tratamento dos agressores sexuais, o avaliador tem quatro escolhas?: 1º) prisão; 2°) colocação em instituições tipo hospital-dia; 3°) tratamento na comunidade; 4º) nenhum tratamento com monitoração”.
“A primeira opção – prisão – destina-se ao agressor que não sente nenhuma culpa em relação ao seu comportamento. Ele tem pouca motivação para mudar e representa o nível mais alto de risco para a comunidade”.
“A segunda opção é apropriada para os indivíduos que reconhecem o dano do seu comportamento, mas são incapazes de controlá-lo”.
“O tratamento na comunidade é apropriado para o agressor que claramente reconhece o dano do seu comportamento, que tentou controlá-lo e que deseja assumir responsabilidade pelo mesmo”.
“A última opção é a menos desejável” (S.C.Wolf,J.R.Conte e M. E. Meinig, “Asessment and treatment of sex offenders in a community setting in Walker”, in Handbook on Sexual Abuse of Children, L. E.A. (ed.), Nova York, Springer Publishing Co., 1988).
Finalmente, as medidas pertinentes aos pais ou responsável são de dois tipos básicos: destinam-se, de um lado, a recuperar os agressores familiares e, de outro, a tentar minimizar as seqüelas traumáticas do abuso-vitimização. Enquanto tais, são formas de tentar impedir a reprodução do círculo da violência doméstica. Todavia, para não serem letra morta, dependem, fundamentalmente, de políticas públicas que privilegiem não apenas a detecção do abuso, mas que, sobretudo, considerem a indispensabilidade de uma retaguarda competente para atendimento multidisciplinar de vítimas e agressores, por um período longo de tempo e sem demagogia.
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Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
ARTIGO 129/LIVRO 2 – TEMA: MEDIDAS APLICÁVEIS AOS PAIS OU RESPONSÁVEIS
Comentário de Viviane Guerra N. A. Guerra
Centro Diógenes de Estudo e Defesa dos Direitos da Criança e do Adoslescente Vitimizados/São Paulo
Uma das atribuições do Conselho Tutelar é atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas supra-enumeradas, como dispõe o art. 136, II. E, enquanto não instalados os Conselhos Tutelares, esse mister é deferido à autoridade judiciária, na forma do art. 262.
Acerca do inc.I, convém sublinhar, por primeiro, o direito da criança e do adolescente á convivência familiar e comunitária, os quais devem ser mantidos em sua família de origem, obrigatoriamente incluída, na hipótese do art.23, em programas oficiais de auxílio.
Sempre que os direitos reconhecidos no Estatuto forem ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável legal; e em razão de sua conduta (art.98), impõe-se a medida específica de proteção prevista no art.101, IV: inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e o adolescente.
Dentre os vários programas comunitários de proteção à família, há um que merece recomendação, pela seriedade com que vem sendo conduzido desde 1963, ano de sua fundação em São Paulo. Trata-se da Escola de Pais do Brasil, entidade aconfessional e apartidária, reconhecida de utilidade pública em nível nacional (Dec.72.220), em vários Estados da Federação e em incontáveis Municípios. Movimento de voluntários, inteiramente gratuito, funciona na rede pública e particular de ensino, centros comunitários, clubes, salões, onde quer que seja sua presença reclamada, num empenho profilático digno dos melhores encômios. Seu trabalho é desenvolvido através de atualizado temário dirigido aos diversos níveis, sócio-culturais, incluindo cálculos de debates alternativos. (Para acioná-la basta escrever para a R. Bartira 1.094, Perdizes, 05009-000, São Paulo, Capital).
Sobre o inc. II do art. 129, a medida de proteção é a inserida no inc. VI do art. 101: inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, adotado pelo Conselho Tutelar, ou, na sua falta, como gizado, pelo juiz da jurisdição da infância e da juventude.
A medida preconizada no inc. III materializa-se mediante a requisição para tratamento em regime hospitalar ou ambulatorial (art.101, V), nos termos do art. 136, II e III, “a”.
O inc. IV. Trata do encaminhamento a cursos ou programas de orientação, o que, à primeira vista, parece objetivar a recomendação do inc. I do mesmo art. 129. Ocorre que, enquanto neste se busca a proteção familiar, com abrangência dilargada, naquele a sugestão é de orientação específica para determinada situação, a fim de solucionar conflitos diagnosticados, identificados.
No tocante á obrigação de matricular o filho ou o pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar (inc. V), preceito normatizado no art. 55, ocorrendo a hipótese do art. 98, II, cumpre ao Conselho Tutelar ou ao magistrado competente aplicar a disposição contida no art. 101, III.
O problema da evasão escolar agiganta-se a cada dia, agravando um quadro de milhões de crianças em idade escolar fora das escolas. De um lado, não temos escolas em quantidade suficiente; de outro, a qualidade do ensino deteriora-se, seja por falta de incentivo e de condições de trabalho, seja pela remuneração aviltante dos professores.
Em conseqüência, é assustadora a queda de rendimento até dos que, contemplados da sorte, lograram um espaço em sala de aula e nela permanecem.
De qualquer modo, “passando por transformações marcantes nas suas funções, a família começou a colocar na escola uma expectativa ampliada. A entrega de um filho à escola, esperando que de lá venha a formação de hábitos, a cultura no sentido intelectual e social, passou a ser uma constante. Essa tomada de posição acabou transformando a relação casa e escola”. De fato, “é muito importante que haja uma aproximação dos pais com a escola, para que possa surgir uma linguagem comum ou pelo menos aproximada, sobre tudo no conceito de educação” (Erotildes de Mello Soares, Nós e o adolescente, São Paulo, Instituto da Família, 1986).
Quanto ao inc. IV “obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado” cumpre lembrar que o direito à vida e à saúde é direito fundamental. O art. 7° preceitua “a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. O Estatuto reporta-se a um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais em todos os níveis (art.86), sendo que uma das linhas de ação da política de atendimento se traduz no atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão (art.87, III).
Inc. VII: a advertência consiste em uma admoestação verbal, reduzida a termo e assinada. Medida pedagógica, prevista no art. 115, será sem dúvida, oportunidade de reflexão para os pais ou responsável, que assim, serão levados a reencontrar o trilho do processo educativo interrompido, talvez desfigurado.
A perda da guarda (parágrafo único do art. 169), tratada no inc. VIII do art. 129, só é viável mediante a ato judicial fundamentado, ouvido o Ministério Público (art.35), podendo ser decretada nos mesmos autos do procedimento contraditório, instaurado e com a tramitação delineada nos arts. 155 a 163, a que se aplicam subdisiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente(art. 152).
Para esse fim é também competente a Justiça de Infância e da Juventude, nas hipóteses do art. 98, consoante expressa o art. 148, parágrafo único “b”.
O inc. IX do art. 129, ora comentado, dispõe sobre a destituição da tutela, a cujo desiderato observar-se-ão o procedimento para a remoção de tutor previsto na lei processual civil e, no que couber, as disposições relativas à perda e à suspensão do pátrio poder (art.164), desenhadas, como se disse, nos arts. 155 e 163. A matéria vem disciplinada nos arts. 1.190 a 1198 do CPC e, especificamente, no arts. 1.736 do CC de 2002.
O último inciso (inc.X) “suspensão ou destituição do poder familiar” tem o procedimento também esquematizado nos arts. 155 a 163 do Estatuto, sendo pertinente à espécie o disposto nos arts. 1.635 a 1.638 do CC de 2002, e 21, 22, 23, 24 e 148 parágrafo único, “b” da lei ora comentada.
Importante ressaltar, por derradeiro, que, nos precisos termos do art. 23 do Estatuto, a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury