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3rd Heshun Village Art Festival Gala Xucun – China, 2015 | Crédito: Walter Nomura a.k.a Tinho

Por Kathia Gomes, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

Em um pequeno sobrado no Tucuruvi, Zona Norte de São Paulo, vive um dos artistas mais atuantes e respeitados do cenário do grafite brasileiro. Entrar neste lugar é ter a chance de conhecer de perto um pouco do processo de criação de Walter Nomura, o Tinho. Tudo no local leva sua impressão digital: paredes, sofá, bancos, móveis e até as roupas que veste, em cada canto um respigo de tinta, seu material de trabalho desde a infância.

Formado em Artes Plásticas pela FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), o grafiteiro tem suas obras expostas e comercializadas na Galeria Movimento, no Rio de Janeiro, e é reconhecido internacionalmente por sua produção de arte urbana. Seus traços, que encontram nas ruas sua principal plataforma, já lhe renderam convites para grafitar em vários lugares do mundo, como China e Berlim, e, apesar da consciência da fama, mantém a simplicidade e a inquietação de quando tinha apenas 12 anos, época em que preocupava os pais por causa das pichações nas ruas.

Levado a trabalhar por seus pais antes mesmo de completar 13 anos, Tinho teve de lidar prematuramente com questões sérias, como abandono, violência e solidão, muito presentes nos ambientes que frequentava. Até hoje, muito disso está registrado em suas obras, onde os transeuntes das cidades se deparam com um retrato poético do abandono e do descaso, despertando sensações que mesclam tristeza e beleza. Em entrevista ao Promenino, ele conta um pouco sobre a sua infância, fundamental para o seu processo de formação como artista.

Promenino – Como você começou a grafitar e de que forma surgiu seu interesse em retratar problemas vividos na infância?

Tinho: Eu tinha 12 anos quando comecei e, na época, o que fazia era pichação. Era final do governo Figueiredo, de ditadura militar. Muito do que faço é consequência da minha história, que já começou diferente no meu nascimento. Precisei ficar três meses em uma incubadora e, depois disso, mais três meses sob os cuidados de uma enfermeira. Mais tarde, vim para a casa dos meus avós [onde vive hoje, mesmo depois do seu falecimento], porque meus pais trabalhavam. Então, eu cresci meio distante dos meus pais. Tanto que, durante muito tempo, eu considerava como pais os meus avós.

Promenino – E como foi o primeiro contato com as ruas e o grafite?

Tinho: É preciso deixar claro que naquela época era bem diferente de hoje. As crianças ficavam muito na rua. E eu era assim. Tinha certa liberdade de transitar. Eu andava de skate e a vida na rua sempre foi uma coisa natural para mim. A partir daí, tive muitas vivências e experiências. Eu comecei a pichar e, por causa do skate, conheci uma galera um pouco mais rebelde e politizada, que era formada por punks. Tinha uma praça aqui perto que era o point da galera. Comecei a andar com eles muito cedo, com 12 anos. Minha vida era assim, andar de skate e pichar. Até que comecei a ter referência de fora, principalmente após ler várias revistas de skate e assistir a um filme chamado Beat Street. Mas sempre procurando uma identidade própria, com uma estética que não fosse cópia do que era feito lá fora. Uma obra que se integrasse ao ambiente, fazendo parte dele. O grafite e o skate são as grandes expressões da rua.

Promenino – Como você começou a vivenciar e a retratar a situação de abandono das crianças de rua?

Tinho: Minha mãe tomou conhecimento dos problemas que eu estava causando na rua com as pichações e, para me encaminhar, ela e meu pai arrumaram um emprego para mim. Eu não tinha completado 13 anos quando comecei a trabalhar. Comecei então como office-boy num escritório de advocacia, no centro de São Paulo. Naquela época não tinha celular, então, meu pai me deu algumas fichas e falou ‘olha, se tiver algum problema, você me liga, que eu tento te ajudar. Mas tenta não precisar, pois você vai começar a trabalhar e é isso.’ Num primeiro momento, fiquei com medo, era muito criança. Mas também era uma aventura. Aprendi a andar de ônibus, de metrô. Conheci os outros office-boys do prédio e da região. Eles me levaram para um point no centro e conheci todos os pichadores da cidade. Então, meus pais só mudaram o problema de lugar [risos]. Em vez de ser na Zona Norte, passei a fazer as pichações no centro e até em outras periferias. Um dos moleques morava em Pirituba, então, em vez de voltar para casa, eu ia com ele para Pirituba. A sorte de não ter celular naquela época era que as pessoas não conseguiam me encontrar!

Promenino – Você chegou a sofrer alguma violência nas ruas?

Tinho: Eu acabei sendo protegido. Um dos lugares onde eu gostava de andar, no final dos anos 80, era a Praça Roosevelt [na região central de São Paulo].  Naquela época, o Brasil vivia um período muito ruim, de desemprego e violência. Aquele era um lugar perigoso, onde havia muitos moradores de rua. Eu convivia com aquele povo, com aquela situação. Então, eu ia na padaria próxima e comprava pães, frango assado e levava para dividir com a galera da região. Era legal, porque me davam segurança. Eu podia andar por lá sem medo de ser roubado ou agredido. Por outro lado, estava ali, dividindo os problemas das ruas com eles. E isso sempre me tocou muito. Uma por ser adolescente, e quando a gente é adolescente quer mudar o mundo. E, como fazia grafite na rua, achava que por meio do que eu pintava poderia ao menos fazer as pessoas olharem esses temas com um olhar menos preconceituoso.

Promenino – Como é falar da miséria das ruas e ao mesmo tempo ser sujeito de atenção por conta de suas obras?

Tinho: A galeria para mim é uma coisa recente, de uns poucos anos para cá. O grafite já é produzido há um tempo e passou por várias fases. Recentemente, tem agradado a uma boa parcela da população, da mídia, e conquistado espaço nos principais jornais e até em novela. Mas tudo é uma conquista, que demorou muito tempo para ser alcançada. Ainda hoje muita gente vê o grafite como mais uma forma de pichação. Inclusive para nós, grafiteiros, é tudo igual. A única coisa que muda é a estética. A ação é a mesma: ir para a rua e pintar uma parede que não te pertence, sem pedir autorização. Como sou da velha escola, não tenho a prática de pedir autorização. Não gosto. Acho muito chato.

Promenino – O que o grafite representa para São Paulo?

Tinho: Eu vejo o grafite e outras expressões de arte de rua como uma resposta humana ao ambiente em que a gente vive. São Paulo é uma cidade imensa, onde você não tem horizonte, apenas linhas de prédios, fumaça, carros passando para todos os lados, muitas pessoas. E, apesar de serem muitas, elas não querem conviver. Quanto mais verticalizada é a cidade, maior o distanciamento. Então, o grafite funciona também como nosso horizonte. Um horizonte feito de tintas.

Promenino – Você acha que a experiência de infância que teve de alguma forma se refletiu em sua obra, ainda que inconscientemente?

Tinho: Sim, tudo fica impresso em nosso subconsciente. Eu fiquei seis meses longe dos cuidados de minha mãe, logo após nascer, ao contrário das outras crianças, que logo vão para o colo ou peito da mãe. Quem me amamentou foi uma negra que tinha tido filho. Por isso, eu digo que sou um japonês de alma negra, literalmente. Todas essas experiências, inclusive o sentimento da solidão, ficam impressas na memória.

Confira mais trabalhos do artista em seu perfil no Flickr.

Artista faz retratos poéticos do abandono e da solidão na infância
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