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Conheça o trabalho de Israel Neto e da editora Kitembo, que fomenta autores negros de literatura fantástica para trabalhar legado das culturas africanas

#Educação#EducaçãoAntirracista#EnsinoMédio

A foto mostra o escritor Israel Neto, fundador da Editora Kitembo. Ele veste camiseta preta, colar e lenço com símbolos e estampas africanas.

A literatura fantástica é parte do mundo adolescente, mas as referências são quase todas brancas e estrangeiras. Com esse diagnóstico, o escritor paulistano Israel Neto começou a aproximar o afrofuturismo de escolas públicas brasileiras. A partir de obras de ficção de autores negros de várias partes do país, Neto conecta estudantes do Ensino Fundamental e Médio a universos e futuros criados a partir das experiências africanas.

“A literatura afrofuturista traz a África a partir de potências negras, com seus sonhos, anseios e tecnologias sociais. Ela sai dessa lógica de contar a história das africanidades no mundo tendo somente a escravidão e o racismo como norteadores”, explica o escritor.

O projeto nas escolas, batizado de Clube do Livro, nasce da experiência de Neto com o coletivo de arte e cultura Literatura Suburbana, que, em 2008, organizava uma série de ações para fomentar a Lei 10.639 nas escolas da Brasilândia, região periférica da zona norte de São Paulo (SP). Atualmente, o Clube do Livro já rodou por escolas públicas da capital paulista, do Rio de Janeiro (RJ) e de Três Coroas (RS).

Literatura fantástica nas escolas

Israel Neto, de 35 anos, escreve ficção científica desde criança, criando histórias a partir dos desenhos que via na TV. Integrou o movimento da literatura periférica que começou a ganhar corpo em São Paulo nos idos de 2010. Certa vez, ele se encantou com um livro que contava a história dos orixás, só que o autor era branco.

Surgiu o incômodo que se transformou em busca incessante por feiras e eventos literários para encontrar autores negros que estavam produzindo ficção científica. “A gente precisava reunir essa galera e fomentar outras reflexões. Nós, escritores negros e escritoras negras, podemos e devemos refletir sobre o mundo e pensar o futuro a partir de outras linguagens para além do conto e da poesia.”

Assim nasceu, em 2018, a  Editora Kitembo, fundada por Neto e pelos escritores Anderson Lima, Aisameque Nguenge e Alexandre Diniz. Com nome de uma divindade da cultura angolana, conhecida por ser “dona do tempo”, a editora reúne cerca de 30 autores de afrofuturismo de várias partes do Brasil e tem recebido prêmios e reconhecimento da crítica literária especializada.

Conversamos com Neto para entender como a literatura fantástica pode ser trabalhada na educação e os potenciais do afrofuturismo para enriquecer os processos de ensino e aprendizagem. Confira a seguir:


Fundação Telefônica Vivo: O que é o afrofuturismo?

Israel Neto: Afrofuturismo é uma tag que reúne pessoas de vários lugares do país que pensam o futuro a partir das nossas experiências afrodescendentes. Mas é também um conceito filosófico, político e um estilo de vida. Ele faz a conexão entre o nosso presente e o nosso passado, que está para muito além do navio negreiro. Tem um traço de reivindicação da contemporaneidade para que possamos desfrutar artisticamente da nossa plenitude, assim como Michael Jackson, Prince Jones e outros artistas fizeram.

Então, o afrofuturismo é pensar corpos negros no futuro de maneira positiva, com avatares criados por nós mesmos, e não aqueles que nos foram determinados pelo eurocentrismo. Por fim, é também um movimento que se utiliza de algumas ferramentas estéticas para levar sua mensagem. Na literatura, por meio de fantasia, ficção, horror e suspense. Na moda, a partir da mistura de tecidos com outros materiais. Na música, com composições que misturam tecnologia e músicas ancestrais, e por aí vai.

 

Fundação Telefônica Vivo: Como o mercado literário recebe e dá espaço para o afrofuturismo?

Israel Neto: O mercado literário é hostil para um escritor ou uma escritora negra. A pesquisa da Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UNB) mostrou isso quando levantou o perfil de escritor brasileiro que as editoras costumam publicar. Tem também uma questão cultural de relacionar a literatura fantástica apenas ao entretenimento. Por muito tempo, a nossa gente do movimento negro e do movimento periférico teve a literatura como uma ferramenta de denúncia, de aquilombamento. Nesse sentido, produzir um material que flertasse mais com o entretenimento do que com algumas disputas no campo político era também incomum.

E tem outra barreira relacionada ao fato de que a literatura nacional de ficção fantástica ainda é pouco publicada no Brasil e quase sempre relacionada à categoria infantojuvenil. Somado a isso tudo está, claro, o racismo estrutural, que define um lugar para o escritor negro. ‘Opa, como assim um escritor ou uma escritora negra que não está falando sobre racismo? Que está abordando outros contextos? Isso não vai vender’, é um pensamento comum.

 

Fundação Telefônica Vivo: A Kitembo nasceu para fazer essa disputa no mercado editorial, mas decidiu levar seus conteúdos para a escola também. Conte como surgiu a ideia de fazer o Clube do Livro em escolas públicas.

Israel Neto: Essa história começa antes da Kitembo. Em 2008, eu e um grupo de amigos fundamos o coletivo de arte e cultura Literatura Suburbana, aqui na Brasilândia.Um dos trabalhos que fazíamos era fomentar a Lei 10.639 nas escolas da região. Nós criamos vários projetos, dentre eles a Coleção Literária Besouro, na qual a gente levava livros de autores e temática da cultura negra para discutir com os estudantes. Com esse projeto ganhei, em 2009, o Prêmio Jovem Brasileiro.

Quando criamos a editora, nossa preocupação foi pensar que os jovens adolescentes são também nosso público-alvo, mas eles ainda não têm independência financeira para comprar os livros. Surgiu a ideia de criar o Clube do Livro, que é um espaço para levar os livros para a escola e fazer essa ponte entre os estudantes e os autores. Nós queremos fazer essa disputa do mundo fantástico, no qual as crianças já estão, mas levando autores vivos, jovens e negros.

 

Fundação Telefônica Vivo: O Clube do Livro é direcionado aos estudantes do Fundamental Maior e do Ensino Médio. Quais atividades vocês realizam com o projeto?

Israel Neto: Temos dois caminhos. O primeiro é a difusão literária, como a que fizemos nas escolas de Três Coroas (RS). A Secretaria de Educação comprou e distribuiu o livro Ancestral aos estudantes. Eles tiveram um mês para ler antes que eu fosse até as escolas para discutir sobre a história e os processos do livro. Foi incrível fazer essa aproximação do afrofuturismo e da cultura negra com estudantes do Rio Grande do Sul!

Já nas atividades que realizamos em São Paulo (SP) uma vez por mês, levamos os livros e os autores, escolhemos alguns trechos para lermos todos juntos e depois fazemos uma roda de conversa com os estudantes. Conseguimos também patrocinadores que nos permitem distribuir os livros gratuitamente nas escolas. A nossa meta para o próximo ano é fazer uma nova captação para realizar essa atividade pelo menos duas vezes por mês.

 

Fundação Telefônica Vivo: Como tem sido o retorno dos jovens que participam do Clube do Livro?

Israel Neto: Eles trazem mais referências sobre mundo fantástico do que a gente, viu? Porém são referências que eles têm acesso, como nórdicas ou norte-americanas. O trabalho com o [livro] Crianças nas Sombras foi muito legal porque eles compartilharam as lendas urbanas que conheciam. É um tema que eles gostam muito. Já nos meus bate-papos sobre o Ancestral, muitos estudantes trouxeram outros fatos científicos para somar com os que eu apresento no livro. Alguns adolescentes negros trouxeram outras referências negras também. Então, o Clube do Livro é um espaço onde todo mundo se acha e consegue se sentir pertencente.

Agora mesmo eu recebi uma história gótica escrita por uma das alunas de Três Coroas. Esse contato com o leitor é o nosso diferencial para aproximar os jovens da literatura fantástica afrofuturista brasileira. É diferente daquela coisa de autor impoluto que vai para a serra escrever, que tem assessores ou que faz uma literatura difícil de assimilar. A gente foge de tudo isso, e isso nos conecta cada vez mais com o leitor.

 

Fundação Telefônica Vivo: Sabemos que os currículos das escolas ainda são muito eurocentrados e que esse é um dos motivos pelos quais muitos estudantes se sentem desconectados com a escola. O afrofuturismo pode contribuir para mudar esse cenário? Quais são os benefícios de incluir essa perspectiva nas escolas públicas?

Israel Neto: Eu acho que esse é um caminho que precisa amarrar educação pública e privada. Não adianta a gente fortalecer nossas comunidades aqui, que são majoritariamente negras, e o racismo rolar solto nas escolas particulares, né? Até porque vivemos em uma sociedade só e, como diz Nelson Mandela, ninguém nasce racista, aprende a ser. Então a ideia é conseguir disputar esse espaço em escolas de todos os tipos.

Mas, pensando nas crianças negras, há duas questões importantes. Primeiro é trazer uma nova representação do que é ser negro. Segundo, o afrofuturismo vai muito além da literatura escapista. Ele traz várias inteligências de povos antigos, da história de africanas e africanos no Brasil com diversas referências culturais que diferem das que estamos acostumados. Por exemplo, referências linguísticas dos iorubás, dos bantos, dos povos dongos, que são povos antigos que já estudavam as estrelas e os planetas.

Então a literatura afrofuturista faz com que os adolescentes tenham contato com a África a partir desse caminho de potências negras, e não da escravidão e do racismo. Sem dúvida nenhuma, é uma ferramenta que pode trazer mais inclusão, diversidade e compartilhamento de conhecimentos para as escolas.

 

Fundação Telefônica Vivo: Que dicas você dá aos professores que queiram agregar o afrofuturismo em suas aulas?

Israel Neto: Um bom começo é ler os livros do afrofuturismo. Infelizmente, não são muitos ainda. Além da Editora Kitembo, há algumas obras da Editora Malê e algumas traduções da Editora Morro Branco. A dica que eu dou é sempre procurar autores nacionais. Aqui na Kitembo, temos autores do Amapá ao Rio Grande do Sul, do Ceará a Brasília, do Rio de Janeiro à Bahia. Isso nos deixa em contato com outras africanidades.

Também indico aos professores que estudem as referências trazidas nos livros, justamente para construir uma forma de contar a história das Áfricas no mundo sem ter a lógica da escravidão como guia. Porque o afrofuturismo é justamente sobre essa conexão com as influências africanas no mundo de forma que a gente pense em sonhos, anseios e em tecnologias sociais de culturas que vieram antes da nossa e que podem nos ajudar a nos entendermos enquanto comunidade brasileira. Trazer tudo isso para a sala de aula e partilhar desse universo com os educandos vai, sem dúvida, enriquecer as formas de ensinar e aprender.

Com literatura fantástica, editora leva afrofuturismo para escolas públicas
Com literatura fantástica, editora leva afrofuturismo para escolas públicas