Em entrevista, Daniel Mill fala sobre desafios da formação de professores para o uso das tecnologias digitais na educação.
Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Daniel Mill faz questão de pontuar que trabalha com o conceito de EduTec (Tecnologia na Educação) há três décadas, desde 1992. “Durante esse período, se houvesse mais preocupação com a formação de educadores para o uso de tecnologias educacionais, certamente a gente teria enfrentado a pandemia de uma maneira muito mais preparada para o ambiente digital”, afirma.
Em sua trajetória, Daniel Mill se aprofundou em temas como trabalho docente, tecnologias e Educação a Distância (EaD). Hoje, ele também lidera o Grupo Horizonte (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Inovação em Educação, Tecnologias e Linguagens), criado em 2007.
A seguir, o professor compartilha suas reflexões em relação aos desafios da construção de uma formação de professores para a compreensão, o domínio e o uso das tecnologias digitais no processo de ensino-aprendizagem, além de percepções sobre o legado da pandemia na educação e as possibilidades de consolidação de uma aprendizagem híbrida. Confira!
Fundação Telefônica: No cenário atual, qual é a importância da construção de uma formação de professores para a compreensão, o domínio e o uso das tecnologias digitais no processo de ensino-aprendizagem?
Daniel Mill: Trabalho com o conceito de EduTec desde 1992. Ou seja, há 30 anos tenho refletido sobre isso. Durante esse período, se houvesse mais preocupação com esse tema, certamente a gente teria enfrentado a pandemia de uma maneira muito mais preparada para o ambiente digital.
E digo mais: na pandemia, perdemos a oportunidade de fazer algo diferente justamente por conta de não termos dado, historicamente, a atenção que esse tema merece. Se tivéssemos dado formação docente em uso de tecnologias digitais nas últimas décadas, é muito provável que teríamos desenvolvido, ao longo desse processo, competências e saberes tanto nos professores quanto nos estudantes. Sem dúvida, isso evitaria que esse processo fosse tão traumático.
No geral, temos dificuldades de diferentes perspectivas no Brasil: a técnica, de saber usar as ferramentas; a do acesso aos equipamentos de qualidade; e a de saber dar uso pedagógico a tudo isso. Para utilizar a tecnologia na educação, não basta saber usar a tecnologia, mas sim construir uma capacidade de curadoria, de procurar material de qualidade, de saber transformar tudo isso em aprendizado. Como não formamos professores no uso pedagógico da informação, no fim das contas não tínhamos apenas um problema técnico, de levar conexão e computador para as escolas, mas mais ainda de os professores saberem como usar a tecnologia.
Os desafios estão postos, e agora temos a grande possibilidade de trabalharmos, com a herança da pandemia, de uma forma melhor, contextualizando mais a formação docente nesse tema e trazendo o professor e o aluno para o mundo digital, educando para as mídias e para a internet.
Fundação Telefônica: Em 2012, você publicou o livro “Docência Virtual: uma visão crítica”, mostrando como essa modalidade está submetida a condições mais precárias de trabalho. Uma década depois, com uma pandemia no meio, como você avalia as condições de trabalho do docente virtual hoje?
Daniel Mill: Vivemos um cenário preocupante. Venho buscando formas de entender o trabalhador da educação a distância. Quando se usa tecnologias digitais você intensifica o trabalho, trabalha muito mais em menos tempo. É fato que, quando se trabalha com EaD – e EduTec no presencial – o professor vai trabalhar a mais, mesmo quando não se é forçado a isso. Naturalmente, o professor trabalha mais do que precisa, pelo prazer em dar aula e pela necessidade de fazer isso bem feito. É uma profissão na qual é preciso se envolver mais intensamente, e isso pode gerar consequências do ponto de vista da saúde mental.
Com a crescente presença do teletrabalho, regulado na CLT em 2011, começamos a perceber na prática como isso impacta na docência, onde as consequências perversas são maiores. Percebemos que os professores ficam mais cansados; ao trabalhar em casa, dedicam mais tempo ao trabalho, e nem sempre são remunerados por isso; também precisam aprender mais para trabalhar melhor; e exige mais tempo para dar atenção personalizada a cada estudante. Isso tudo influencia no trabalho docente, e é importante o sindicato começar a perceber que o teletrabalho exige cuidados especiais, e a legislação deveria cuidar mais desses aspectos.
Fundação Telefônica: De que forma o processo de ensino-aprendizagem na educação virtual foi impactado pela pandemia? As mudanças foram para melhor ou pior?
Daniel Mill: Nas crises, todo mundo repensa os processos, e a herança dela pode ser uma força motriz para transformações. Contudo, há um paradoxo: por um lado as pessoas tiveram mais exposição às tecnologias, e isso gera algo de bom, inclusive as possibilidades de professores poderem seguir adiante usando mais as tecnologias em suas aulas, já que perceberam algumas vantagens do uso; mas, por outro lado, a superexposição compulsória, e não por opção, fez com que muitos percebessem que trabalha-se mais quando se usa tecnologia, e dá mais trabalho pedagógico.
Ou seja: para os professores que tinham preconceito ou não tinham conhecimento diante das tecnologias, há duas possibilidades: ou aproveita o que há de bom, ou dá muita ênfase ao que não funcionou e, automaticamente, chega a conclusão de que não foi uma experiência positiva, passando a bloquear essa possibilidade ainda mais a partir de agora.
Temos que preparar melhor os docentes para esse cenário, e para isso é necessário um maior apoio governamental e institucional, com mais tempo dedicado à formação.
A EaD deve ser um complemento de ensino presencial, e nunca defendi seu uso para o ensino básico – principalmente o infantil e o fundamental. A partir do ensino médio o seu uso é possível, mesclando experiências digitais com o presencial, o qual defendo como a forma histórica e consistente de educação. Afinal, a corporeidade da [educação] presencial é insubstituível.
Fundação Telefônica: Em um contexto onde a aprendizagem híbrida virou uma necessidade mais por obrigação do que por escolha, como a formação de professores deve abordar esse conceito e preparar os professores para o ensino virtual? Como a educação à distância deve convergir com o ensino presencial?
Daniel Mill: É preciso fundir as vantagens pedagógicas do ensino presencial com o virtual. Em termos de articulação dessas vantagens pedagógicas, surge o que temos dado o nome de aprendizagem híbrida, que nesse retorno ao ensino presencial vêm sendo tratada mais como uma mistura dos dois modelos, mas antes disso tratava-se de incrementar o presencial de modo a trazer outras estratégias pedagógicas e tecnológicas para enriquecer a formação, rompendo com a lógica de uma aula mais expositiva, do professor como dono do conhecimento.
A educação híbrida ainda não está prevista em lei, mas vejo com bons olhos a oportunidade de trazer para o presencial as vantagens da EaD. Dá pra fazer coisas bacanas envolvendo o ambiente virtual em sala de aula. Está em discussão no CNE meios de formalizar esse tipo de articulação, e podemos dar um tiro no pé se tratarmos a EaD apenas como uma forma das instituições ganharem mais dinheiro, demitindo professores, precarizando o trabalho e fazendo material didático que dure dez anos e não se preocupe com formação docente, com salas virtuais de mil alunos ao invés de, no máximo, 40.
Defendo a educação híbrida pois temos experiências boas para trazer de uma a outra – do EaD para o presencial e vice-versa -, e para tanto é necessário fazermos a mudança de mentalidade, pois isso vai facilitar o clima organizacional em prol de uma educação diferenciada e transformadora.
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