As mulheres negras estão entre os piores índices de formação e empregabilidade, mas lideram iniciativas para superar a lacuna racial na área tecnológica
Que espaço ocupam as pessoas negras na tecnologia? Pense em grandes nomes do ramo e é possível que todos eles sejam homens brancos dos Estados Unidos ou da Europa. Globalmente, existe uma lacuna racial e geográfica em carreiras e profissões ligadas à tecnologia. O Brasil acompanha essa tendência mesmo tendo a maioria de sua população negra (56%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE). Pretos e pardos ainda são minoria no mercado de trabalho da tecnologia. Aqueles que conseguem superar o entrave do acesso ganham menos de 70% da renda média de uma pessoa branca com a mesma qualificação e dificilmente chegam a cargos de liderança e gerência.
No último ano, a taxa de desemprego cresceu entre pessoas negras na tecnologia, atingindo 29% dos trabalhadores. Apenas 45% desses profissionais trabalham com carteira assinada. Os dados são da pesquisa realizada pela comunidade Potências Negras, que discute formas de enegrecer a tecnologia no país. Foi realizada no decorrer de outubro deste ano com 1.427 profissionais da área: 69% pessoas autodeclaradas pretas e 21%, pardas. A maioria dos respondentes pertence às classes C, D e E, tem entre 26 e 45 anos e apresenta ensino superior ou pós-graduação. “A gente só consegue alcançar aquilo que podemos ver. Os dados nos dão diagnóstico e deixam visíveis os nossos desafios e oportunidades”, disse Ana Minuto, co-criadora do Potências Negras, durante apresentação dos resultados no evento online Potências Negras Tec 2022.
Mulheres negras são minoria entre os profissionais da área tecnológica, assim como acontece em outros setores da sociedade. Embora representem 28% da sociedade brasileira, 11% trabalham em empresas de tecnologia e apenas 3% estão matriculadas no curso de Engenharia da Computação, como aponta o Report 2022 – PretaLab. Apesar de serem as mais afetadas, ou talvez por causa disso, são elas também que lideram soluções de enfrentamento das desigualdades no setor. O PretaLab, por exemplo, é referência internacional. A organização social acaba de completar cinco anos de existência e conta com uma rede de mais de 600 mulheres. “As empresas, de forma geral, não são ambientes que pensam em desigualdade. Então, temos tentado ajudar esses espaços a se tornarem lugares antirracistas”, explicou em 2019 à Fundação Telefônica Vivo a fundadora do PretaLab, Silvana Bahia.
Pessoas negras na tecnologia e os ganhos para a sociedade
Além de PretaLab, há muitas iniciativas de sucesso lideradas por pessoas negras. Para citar algumas, a InfoPreta foi criada por Akin Abaz para oferecer atendimento técnico para computadores. A Alfabantu foi idealizada por Odara Dèlé para atuar na área de educação e tecnologia, fomentando o diálogo entre Brasil e África. O coletivo Digitais Pretas foi criado por Néllys Corrêa para fortalecer o trabalho de produtoras de conteúdo tec. Nina Silva é a fundadora do Movimento Black Money, focado em desenvolver um ecossistema de inovação para afroempreendedores. Ao conhecer a história de cada uma dessas iniciativas, é possível compreender que a inserção da população negra no mercado de tecnologia vai muito além da representatividade. É essencial para solucionar problemas que atingem os grupos mais afetados pela exclusão social e digital.
“A tecnologia não é neutra, ela reflete as questões e a moralidade de seus inventores. Qual é o nosso espírito? Qual a nossa moralidade? As nossas criações não precisam imitar os engenheiros brancos.” A provocação foi feita pela socióloga norte-americana Ruha Benjamin, professora do Departamento de Estudos Afroamericanos da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Em julho, ela participou de um diálogo com a premiada escritora brasileira Conceição Evaristo no evento Mulheres, Raça e Tecnologia, organizado pela Universidade de São Paulo (USP).
Ao citar o uso de cães-robôs para o patrulhamento da fronteira entre Estados Unidos e México, ela enfatiza que tecnologia não é sinônimo de progresso social e que pode ser desenhada para aprofundar cenários de desigualdade e exclusão de pessoas negras na tecnologia. “Nós não queremos consertar um sistema quebrado, queremos reimaginar completamente o sistema. E quando eu digo reimaginar, estou falando de forma literal, empregando ferramentas criativas para irmos contra o status quo sexista e racista”, disse a professora, que é autora de vários livros sobre o tema ainda não disponíveis em português. O principal deles é o Race after technology: abolitionist tools for the new Jim Code (Em tradução literal, Raça depois da Tecnologia: ferramentas abolicionistas para um novo ‘Código Jim’).
Nesse sentido, o caso do cineasta carioca Hugo Lima é emblemático. Sentindo na pele a dificuldade de acesso aos equipamentos para produção de material audiovisual, principalmente pelo alto custo, ele e a irmã, Nathali de Deus, criaram a startup WoTec, que desenvolve equipamentos de produção audiovisual a baixo custo para cineastas independentes das periferias do Rio de Janeiro. O detalhe está no design dos equipamentos: são coloridos para evitar que jovens negros que carreguem um tripé nas costas sejam confundidos por policiais com “criminosos armados”, uma realidade comum num país estruturado pelo racismo como o Brasil.
Criatividade para superar condições históricas
Em sua fala durante o evento da USP, Conceição Evaristo lembrou que a apropriação da tecnologia por jovens e mulheres negras sempre foi forma de resistência. “Para pensar sobre tecnologia e raça no Brasil, é preciso entender o processo histórico de como a comunidade afrobrasileira se apropriou de tecnologias mais antigas tardiamente e como esse processo ainda não é democrático. E a primeira tecnologia que ainda tem lacuna de acesso é a da alfabetização”. A escritora lembra que a Constituição de 1824, que vigorou até a Proclamação da República em 1889, impedia a população negra de frequentar a escola.
Autora de dezenas de livros, dentre eles o vencedor do Prêmio Jabuti Olhos d’Água (2015, Pallas Editora), Conceição Evaristo explica que a comunidade negra sempre atuou em rede para resistir ao processo de racismo e exclusão. “A Escola Pretextato, por exemplo, foi criada por pessoas negras para suprir a defasagem educacional e funcionou no Rio de Janeiro de 1853 a 1873. Há universidades que foram edificadas por afroamericanos, inclusive mulheres negras, mas essa história é pouco conhecida pela sociedade e ainda hoje estamos lutando por espaço nas universidades e nos centros de pesquisa brasileiros.”
Para Conceição, a memória e a poética são ferramentas utilizadas pela população negra para se apropriar das tecnologias. “São táticas que vamos reconhecer desde a nossa formação quilombola, onde foram criadas tecnologias de enfrentamento ao processo de escravização e à sobrevivência dos quilombos”. A autora destaca o Carnaval brasileiro como o grande símbolo dessa poética. Apesar de ter chegado ao Brasil como uma festa de elite, inspirada nos festejos da Península Ibérica, foi sendo transformado pela apropriação de comunidades populares do Rio de Janeiro no início do século XX. “É até hoje uma festa de resistência e articulação de valores, tensões e conflitos sociais não só para os sujeitos brasileiros, mas para toda a nossa nação”, define Conceição.