ECA: ARTIGO 104 / LIVRO 2 – TEMA: MENOR
Comentário de Napoleão X. do Amarante
Desembargador/Santa Catarina
Desde a vigência do Código Penal de 1940 vigora, na ordem jurídica nacional, o princípio geral e absoluto da inimputabilidade dos menores de 18 anos na esfera criminal e contravencional.
Anteriormente, a esse diploma outra era a diretriz estabelecida na legislação pátria em relação ao tema em apreço.
No Império, com o advento do Código Criminal de 1830, os menores de 14 anos somente eram considerados penalmente irresponsáveis se não houvesse prova no sentido de seu discemimento. Vale dizer que, quanto a eles, militava a presunção juris tantum da irresponsabilidade. Ilidida esta, pela demonstração da capacidade de entendimento do ato infracional, seriam os mesmos conduzidos a casas de correção, por tempo a ser determinado discricionariamente pelo juiz, que não poderia distendê-lo por lapso que viesse a ultrapassar a idade de 17 anos.
De outra parte, aos maiores de 14 e menores de 17 anos era dispensado tratamento peculiar, por estarem sujeitos, se ao julgador parecesse justo, a uma pena de 2/3 daquela que coubesse ao adulto.
Finalmente, o maior de 17 e menor de 21 anos constava sempre com o favor da atenuante da menoridade.
Em etapa subseqüente, com a vigência do Código Penal de 1890, os menores de 9 anos passaram a ser reputados, em termos de presunção juris et de jure, plenamente irresponsáveis. Aqueles que se encontrassem na faixa etária entre 9 e 14 anos tinham a seu favor a presunção relativa da responsabilidade, de tal modo que, demonstrada a compreensão do caráter ilícito do ato, eram recolhidos a estabelecimento disciplinar industrial, por tempo que não ultrapassasse a idade de 17 anos.
A pena de cumplicidade (2/3 daquela que coubesse ao adulto) perdeu o caráter de facultatividade para se tomar obrigatória.
Adite-se, por fim, que restou mantida a atenuante da menoridade.
No evoluir da vida republicana, em 1926, passou a vigorar o Código de Menores, por via do Decreto Legislativo de 1° de dezembro daquele ano, dispondo, no art. 57, que, nenhum menor de 18 anos, preso por qualquer motivo ou apreendido, seria recolhido à prisão comum.
No ano seguinte, por via do Dec. federal 17.043-A, foram editadas normas consolidadoras das leis de assistência e proteção a menores, que passaram a constituir o Código de Menores. Pelo art. 68, o menor de 14 anos indigitado autor ou cúmplice de fato qualificado como crime ou contravenção não seria submetido a processo penal de espécie alguma. As providências seriam diversas segundo fosse considerado ou não abandonado, pervertido ou na iminência de o ser. Vale dizer, se abandonado, pervertido ou em perigo de o ser, seria colocado em asilo, casa de educação, escola de preservação ou confiado a pessoa idônea, por tempo não superior à idade de 21 anos. Em caso contrário, e quando necessitasse de tratamento especial, ficaria sob a guarda de seus pais, tutor ou de outra pessoa.
Pelo art. 69, os agentes de crime ou contravenção entre 14 e 18 anos seriam submetidos a processo especial.
Por último, a idade de 18 a 21 anos continuava a constituir circunstância atenuante (art. 76).
O grande avanço, convém acentuar, somente veio a ocorrer, na temática da inimputabilidade, tendo por pressuposto exclusivamente a idade, com a edição do Código Penal de 1940, como já explicitado.
O princípio da inimputabilidade dos menores de 18 anos restou claramente delineado, a despeito da imprecisão termino lógica do legislador, que, ao invés de irresponsáveis, deveria ter empregado o termo inimputáveis. Isto porque irresponsabilidade e inimputabilidade expressam idéias com alcance diverso no âmbito do Direito. E tanto isso é verdade que a Constituição Federal de 1988, no art. 228, estabelece como penalmente inimputáveis os menores de 18 anos. Mas, antes desse estatuto político, com o advento da Lei 7.209, de 11.7.84, que introduziu modificações na Parte Geral do Código Penal de 1940, efetuou-se a corrigenda, in verbis: “Os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”.
Continua, pois, a ser o bastante a idade do menor, desde que inferior aos 18 anos, para tomá-lo penalmente inimputável, qualquer que seja sua atuação infracional. O critério é de política criminal, a estabelecer uma presunção absoluta de falta de discernimento do menor quando do cometimento da prática de sua ação ou omissão enquadrável no conceito de crime ou contravenção.
Enquanto na Exposição de Motivos do Código Penal de1940 esclarecia-se que o Projeto não cuidava dos imaturos (menores de 18 anos), senão para declará-los inteira e irrestritamente fora do Direito Penal, sujeitos apenas à pedagogia corretiva da legislação especial, na Exposição de Motivos da Lei 7.209, de 11.07.84, justificou-se a permanência do princípio nestes termos: “Manteve o Projeto a inimputabilidade pa6al ao menor de 18 anos. Trata-se de opção apoiada em critérios de Política Criminal. Os que preconizam a redução do limite, sob a justificativa da criminal idade crescente, que a cada dia recruta maior número de menores, não consideram a circunstância de que o menor, ser ainda incompleto, é naturalmente anti-social na medida em que não é socializado ou instruído. O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não à pena criminal. De resto, com a legislação de menores recentemente editada, dispõe o Estado dos instrumentos necessários ao afastamento do jovem delinqüente, menor de 18 anos, do convívio social, sem sua necessária submissão ao tratamento do delinqüente adulto, expondo-o à contaminação carcerária”.
Relembre-se, entretanto, que o Código Penal de 1969 (Dec.lei 1.004, de 21.10) procurou inovar nesse tema ao prescrever, no art. 33, que: “O menor de 18 anos é inimputável salvo se, já tendo completado 16 anos, revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com este entendimento. Neste caso, a pena aplicável é diminuída de 113 até a metade.
A inimputabilidade absoluta, a partir do preceito transcrito, só atinge os menores de 16 anos, porquanto aqueles que se encontrassem na faixa compreendida entre essa idade e a de 18 teriam a seu favor, apenas, a presunção relativa de inimputabilidade.
Essa orientação restou assim justificada, de acordo com a respectiva Exposição de Motivos:
“O limite da imputabilidade foi mantido, como regra geral, nos 18 anos. Excepcionalmente, pode ser declarado imputável o menor de 16 a 18 anos, se revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e governar a própria conduta.
“A tendência geral da legislação é a fixação penal dos 16 anos. O VI Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, reunido em Roma, em 1953, fixou em 16 anos o limite para a aplicação da pena (cf. VI Congres Internacional. Compte Rendu des Discussions, Milão, 1957, p. 310). Vários Códigos atuais fixam esse limite em 14 anos, como é o caso da lei alemã. Repetindo, de certa forma, o que já se disse, com toda procedência, parece certo que a possível redução do limite da imputabilidade a 16 anos aumenta a consciência da responsabilidade social dos jovens.
“Como a responsabilidade criminal dos jovens de 16 a 18 anos é excepcional, não pode caber dúvida de que deverá ser declarada pelo juiz de menores, se a lei processual não dispuser diversamente.
“Proclama-se, por outro lado, a necessidade imperiosa de submeter os menores e, inclusive, os jovens adultos delinqüentes a tratamento especial. Por isso mesmo, o Projeto declara que os menores de 21 anos cumprem pena separadamente dos condenados adultos (art. 37, § 52). Se o condenado for primário, o tempo de cumprimento da pena pode ser reduzido à metade.”
O Prof. Nuno Campos registra que o Código de 1969, com o estabelecimento do critério do discernimento, no referente aos menores entre 16 e 18 anos, sofreu graves críticas e, por isso mesmo, o art. 33 veio a ser modificado através da Lei 6.016, de 31.12.73, passando o menor de 18 a ser novamente inimputável (Menores Infratores, Florianópolis, UFSÇ 1979, p. 94).
Em nível de Projeto, antes do Código Penal de 1969, o Min. Nélson Hungria, em Anteprojeto, seu, de Código Penal, já delineava idêntica orientação, conforme o art. 32:
“O menor de 18 anos é penalmente irresponsável, salvo se, já tendo completado 16 anos, revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e governar a própria conduta. Neste caso, a pena aplicável é diminuída de 1/3 até a metade.
“Os menores entre 8 e 16 anos, bem como os menores de 18 e maiores de 16 não responsáveis, ficam sujeitos às medidas educativas, curativas e disciplinares determinadas em legislação especial.”
Contra essa diretriz insurgiu-se Aldo de Assis Dias, por entender que o problema de juventude transviada é um problema social humano, e não de reação penal por parte do Estado (O Menor em Face da Justiça, São Paulo, Lex, 1968, p. 212).
Para esse Autor deveria continuar prevalecendo, ainda, a velha lição daquele emérito Penalista ao comentar o art. 23 do CP de 1940, nestes termos: “Ao invés de assinalar o adolescente transviado com o ferrete de uma condenação penal, que arruinará, talvez irremediavelmente, sua existência inteira, é preferível, sem dúvida, tentar corrigi-lo por métodos pedagógicos, prevenindo a sua recaída no malefício. O delinqüente juvenil é, na grande maioria dos casos, um corolário do menor socialmente abandonado, e a sociedade, perdoando-o e procurando, no mesmo passo, reabilitá-lo para a vida, resgata o que é, em elevada proporção, sua própria culpa. Assim, tem sido, modernamente, uma assídua preocupação do Estado o amparo material e moral da infância e da adolescência., A defesa dos pequenos homens, notadamente contra seu abandono moral, assumiu o alto relevo, desde que se compreendeu que estava aí, em grande parte, a solução de um dos mais graves problemas sociais, qual seja: o da prevenção da delinqüência” (Comentários ao Código Penal, I/514, n. 108).
A questão relativa à definição da inimputabilidade não será objeto de maior consideração quando o fato infracional for praticado em data anterior ao dia em que o adolescente vai completar a idade de 18 anos. Neste caso, encontra-se abrangido, ainda, pela legislação especial, que lhe dispensa tratamento diverso daquele disciplinado pelo Direito Penal e Processual Penal. Verdade é que não será certa data da vida da pessoa uma solução consentânea com a realidade para estremar os limites da inimputabilidade dos da imputabilidade.
Não há uma explicação científica capaz de demonstrar que, em determinado momento, prefixado pelo legislador, cessou a falta de discernimento sobre a natureza de certos fatos para dar lugar, incontinenti, à imputabilidade do indivíduo. A Biologia e a Medicina não terão elementos para justificar, do ponto de vista científico, a passagem abrupta para este último estágio e o conseqüente desaparecimento do anterior, que colocava o adolescente fora da área de abrangência do Direito Criminal. Até mesmo sob a ótica da justiça não se concebe o mesmo critério de transição da inimputabilidade para a imputabilidade, apoiada apenas no pressuposto genérico de uma determinada idade. É que os adolescentes, vivendo em ambientes os mais diversos, com desigual acesso à educação, à cultura, ao trabalho e ás demais necessidades indispensáveis ao seu desenvolvimento físico, psíquico e espiritual, e, se não por isto, por outras razões, com níveis diferentes de discernimento , não poderiam, à luz desta realidade, merecer igual tratamento no plano da inimputbilidade.
Galdino Siqueira assim também pensa, quando acentua:
“Dada, ainda, a diversidade do momento aquisitivo da aptidão para discernir entre o bem e o mal, e por isso não se podendo estabelecer um limite fixo e invariável donde comece a imputabilidade penal, o legislador teria de seguir um dos dois alvitres ou deixar que esse limite seja fixado em cada passo pelo juiz, em face do indivíduo ou das circunstâncias do fato, ou, procedendo por presunções, estabelecer regras gerais, muito embora destoassem da realidade em determinados casos.
“Como no primeiro caso imperasse puro arbítrio, as legislações modernas adotaram o segundo alvitre” (Tratado de Direito Penal- Parte Geral, I/422, Rio, José Konfino Editor, 1947).
Por sua vez, Bento de Faria, apoiado na lição de Alberto Lutz, admitindo a possibilidade de verificar-se o desenvolvimento intelectual antes dessa idade, entende que a de 18 anos atende “não somente à maturidade ética exigente de certa experiência e certa sedimentação do conhecimento, das sensações e das emoções, .como, também, sem desprezo pela maturidade moral, onde não encontra superfície a dúvida, como regra, sobre o discernimento, a conveniência de melhor combater os fatores, individuais e sociais, da precocidade da criminalidade juvenil ou adolescente, passando do regime propriamente repressivo ao regime educativo” (Código Penal Brasileiro (Comentado), II/233, Rio, Record, 1961).
Mas, ao adotar a idade de 18 anos como fase inicial da imputabilidade, excluindo desta as pessoas situadas em faixa etária inferior àquela, teve o legislador a orientá-lo não só as considerações relacionadas com o discernimento mas, sobretudo, o critério da discricionariedade justificado por considerações biológicas e por uma política pragmática e criminal.
O parágrafo em análise, por outra parte, comporta, ainda, o exame das seguintes questões: a) o termo inicial da imputabilidade; b) a prova da idade própria da inimputabilidade; c) as conseqüências do reconhecimento da inimputabilidade no curso do processo criminal já instaurado; d) a imputabilidade por crimes permanentes ou continuados em ação ou omissão compreendida na fase anterior e posterior aos 18 anos de idade.
Acerca do primeiro ponto – termo inicial da imputabilidade – tanto a doutrina como a jurisprudência, conforme se infere da obra de Alberto Silva Franco, Célia Silva Franco, José Silva Júnior, Luiz Carlos Betanho, Nilton Messias de Almeida, Rui Stocco, Sebastião Oscar Feltrin, Vicente Celso da Rocha Gustitini e Wilson Ninno ( Códogo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, São Paulo, Ed.RT, 1987, pp. 90 e 91), apresentam-se divididas, existindo três correntes: a primeira reputa penalmente imputável o agente que pratica a infração penal no exato dia em que completar 18 anos, sem indagar-se da hora que o mesmo nasceu; a segunda só considera imputável o agente se o crime ou a contravenção vier ser praticada aos 18 anos, mas após a hora declarada como o de seu nascimento, por constar em relação a este o tempo certo ou aproximado do respectivo assento; e a terceira a orientar que a maioridade criminal somente deve ser reconhecida depois do décimo oitavo ano da pessoa.
Tal como redigido no Estatuto de Criança e do Adolescente, o preceito em referência pode permitir a continuação, pelo menos, das duas primeiras diretrizes, ainda que, nos Tribunais, venha preponderando a primeira.
Quanto à prova de idade, tem-se que, pelo próprio sistema jurídico nacional, deve ela decorrer de certidão do assento de nascimento. Esse documento constitui, sem sombra de dúvida, o meio fundamental, embora não seja o único, para sua demonstração. Goza o mesmo de presunção júris tantum de veracidade. E para elidi-la a prova precisa ser séria, forte e convincente.
De acordo com o artigo 54, da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015, de 31.12.73), o assento do nascimento deve conter o dia, mês, ano e lugar do nascimento e a hora certa, sendo possível determina-la ou aproxima-la.
A partir dessa preceituação, poder-se-ia concluir que a maioridade penal deveria ser estabelecida após a hora exata do décimo oitavo ano do nascimento daquele a que se atribui um determinado ato infracional, sob pena de ter-se como inócua a parte do dispositivo que determina essa providência. Cumpre, no entanto, obtemperar que, a despeito dessa preceituação, nem sempre atendida pelos oficiais do Registro Civil, mormente no passado, ou então, diante da possível inexatidão dessa informação pelo respectivo declarante, a melhor solução é considerar como imputável a pessoa desde a primeira hora do dia de seu nascimento ( Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial,pp. 90 e 91).
Com relação ao processo instaurado contra o adolescente, uma vez verificado o fato, a ação penal deve ser trancada, encaminhando-se o respectivo feito ao juízo da criança e do adolescente.
Quanto ao último item, se o fato se caracterizar crime continuado, a persistir, ainda, posteriormente ao termo final da inimputabilidade, passa a responder o agente pela pena correspondente. Se o ilícito for continuado, com o iter criminis a abranger tempo relativo à inimputabilidade e à imputabilidade, poderá ocorrer que, já nesta última esfera, tenha o magistrado que considerar a hipótese como delito de natureza simples, ou de natureza continuada, segundo a prova acerca dessas duas categorias infracionais.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury