ARTIGO 106/LIVRO 2 – TEMA: DIREITO
Comentário de Péricles Prade
Advogado/São Paulo
Em lição memorável, ao comentar a Constituição de 1891, o mestre Ruy Barbosa demonstrou com riqueza conceitual a nítida separação entre direitos e garantias constitucionais, distinguindo “as disposições meramente declaratórias, que são as que exprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito” (cf. República: Teoria e Prática, textos doutrinários sobre direitos humanos e políticos consagrados na primeira Constituição da República, seleção e coordenação de Hílton Rocha, Câmara dos Deputados /Vozes, 1978, p. 124).
O constitucionalista José Afonso da Silva, vinculado aquele ensinamento, utilizando-o, sustentou que “os direitos são bens e vantagens conferidas pela norma, enquanto as garantias são meios destinados a fazer valer esses direitos, instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e vantagens” (cf. Curso de Direito Constitucional Positivo, 8º ed., São Paulo, Malheiros Editores, p. 360), agregando aquela lição que, às vezes, o direito fundamental se exprime pela norma de garantia, nela se subentendendo.
Essa última observação ajusta-se aos direitos individuais atraídos pelos arts. 106 e 109 do Estatuto da Criança e do Adolescente. É que, a rigor, neles se vislumbram, como veremos, garantias constitucionais individuais especiais, correspondendo a direitos de caráter instrumental e expressando regras de segurança em matéria penal, tutelantes da liberdade pessoal.
Como tais garantias incrustam direitos, o cap. II, sob análise, pode ser visto sob essa ótica, lembrando-se, contudo, que, dada a singularidade do Direito protetor da infância e da adolescência, as mesmas foram eleitas para cifrá-las as características e especificidades dessa tutela, atendidos os contornos típicos da prática do ato infracional, invocando-se-os na hipótese de privação da liberdade do adolescente. Sem prejuízo, por certo, da invocação de todo o elenco dos direitos e garantias individuais, por equiparação igualitária as demais pessoas (art. 5º, caput), se presentes as situações-tipo.
Nessa direção encaminhamos os comentários.
São atingidos por esse espectro conceptivo, portanto, as crianças e adolescentes, aliás destinatários, como brasileiros ou estrangeiros residentes no País, do art. 5º da CF – que lhes assegura direitos no caput e respectivos incisos.
A primeira das retromencionadas garantia-direitos (garantia jurisdicional penal do juiz competente) foi imantada pelo caput do art. 106 e constitui adequação em consonância com o inc. LXI do art. 5ºda CF (resguardado pelo princípio do juiz natural – art. 5º, LIII, da CF), dispondo que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (grifamos). Houve, no caput, evidente adaptação do texto transcrito, já que, em relação ao adolescente, por ser inimputável tratando-se de pessoa entre 12 e 18 anos (ECA, art. 29, não é preso em flagrante delito, ocorrendo, tão-só, flagrância de ato infracional, conquanto seja a correlata conduta anti-social descrita como crime ou contravenção. Demais disso, não se refere o artigo em comento a “preso” em flagrante, uma vez que inexiste voz de prisão, sendo apenas o adolescente conduzido a delegacia, sem nota de culpa e lavratura do auto (salvo no caso do art. 173), para os fins pertinentes e oportuno encaminhamento ao juiz competente. Se não há prisão em flagrante, o mesmo se dá com a prisão preventiva (arts. 301 e 3 11 do CPP), ininvocáveis em nível supletivo. Tudo porque se cinge ao ato físico de simples apreensão (ECA, art. 107), decorrente da inimputabilidade. Em suma: não são os adolescentes equiparados aos réus, adultos e imputáveis, sofrendo medidas sócio-educativas (ECA, art. 112), isto é, sem caráter de apenação.
Afora o estado de flagrância de ato infracional, quanto ao mais não há distinção marcante, podendo ser destacado, apenas, que, no caso da admissão de apreensão por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, devido a idade caracterizadora do adolescente e a inimputabilidade, não teria sentido, mesmo, incluir a parte final do inc.LXI do art. 5º da CF, em face da impossibilidade jurídica da ressalva, no caso, quanto a transgressão militar ou crime propriamente militar.
Deve ser lembrado, para a exata compreensão dessa garantia-direito, que a autoridade judiciária competente – para fundamentar a ordem escrita da apreensão – é o juiz da infância e da juventude, ou o magistrado que exerce essa função, na forma da lei de organização judiciária local (a teor do art. 146 do ECA), tanto que, se houver privação de liberdade de criança ou de adolescente sem a obediência desses pressupostos direitos constitucionais e legais, ou inobservando-se as formalidades, o responsável responde por crime (ECA, art. 230 e parágrafo único), apenado com detenção de dois meses a dois anos.
Como o caput do art. 106 se subsume a moldura constitucional (art.5º, LXV), deve-se levar em consideração que o,adolescente, salvo nas hipóteses elencadas, tem plena segurança no tocante a sua liberdade e direitos, sem sofrer constrangimentos. Tem, assim, a liberdade protegida contra a apreensão, excepcionando-se com exclusividade aquelas restrições,
por força da atuação legítima do Estado na defesa da sociedade que vê desrespeitadas as mais elementares normas de convivência. Por isso é que, encontrado o adolescente em flagrante de ato infracional, qualquer do povo “poderá” e as autoridades policiais e seus agentes “deverão” apreendê-lo, aplicando-se aqui, mutatis mutandis, o art. 301 do CPP.
Acentue-se, além disso, um aspecto relevante e enfatizado por Celso Bastos: “O texto constitucional anterior falava tão-somente em autoridade para referir-se ao agente capaz de ordenar a prisão. O texto atual deixa claro que a autoridade há de ser judiciária. Ficam excluídas, portanto, as prisões para averiguações. É dizer, aquela modalidade de constrição física consistente em ser o mero suspeito levado a delegacia, lá permanecendo preso até que as autoridades policiais levem a cabo a formação de sua convicção” (grifamos – cf. Comentários a Constituição do Brasil, 111291, São Paulo, Saraiva). Daí que, atendidos os parâmetros relativos a especificidade da matéria, plena razão têm Cury, Garrido e Marçura ao assinalarem que “a apreensão de adolescente somente poderá ocorrer em razão de flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (ECA, art. 106), sendo ilegal, portanto, a apreensão para averiguação, ou por motivo de perambulação” (grifamos – cf. Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado, Ed. RT, 199 1, p. 141).
Concluiu-se, nesse caso, observando que o art. 106 se refere a adolescente, e não a crianças. Ora, com referência a estas, posto que pratiquem atos considerados infracionais, não há apreensão em hipótese alguma, inexistindo privação de liberdade tanto em decorrência de flagrante quanto resultante de inconcebível ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, limitando-se esta, todavia, enquanto o Conselho Tutelar não for instalado (ECA, art. 262), a determinar, entre outras, as medidas arroladas nos incs. I a VI11 do art. 101 (ECA). Se ocorrer apreensão de criança, esta, por quem de direito (pai, responsável ou qualquer pessoa), poderá, através de advogado (ECA, art. 206), demonstrar a impossibilidade do constrangimento com base nos dispositivos suso-indicados, alegando não ser adolescente, inexistir ato infracional ou, ainda, se o tivesse praticado, argüir a ausência de flagrante ou ordem de autoridade judiciária. Viável, é claro, no caso de um absurdo dessa natureza, a impetração de habeas corpus, inclusive sem outorga de mandato para tal finalidade.
A segunda garantia-direito (identificação dos responsáveis pela apreensão), de perfil preventivo e sob o pálio da legalidade, está consagrada na primeira parte do art. 106 e corresponde ao inc. LXIV do art. 5º da CF (c/c os incs. LV e LXIII), dispondo que “o preso tem direito a identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial” (grifamos). Vê-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao trasladar o dispositivo constitucional, adaptando-o à realidade menorista, mudou a palavra “preso” por “adolescente” (a criança sequer é apreendida, daí a
exclusão) e “prisão” por “apreensão” (ele é apreendido), cortando, por inteiro, a frase “ou por seu interrogatório policial”. A inadaptação, quanto a essa ultima situação, não tem pertinência. A eliminação pura e simples não foi conveniente, dando a impressão da desnecessidade de identificação do responsável pela ouvida do adolescente. É que, sendo a apreensão proveniente
de ordem judicial, encaminha-se o adolescente, desde logo, à autoridade judiciária (ECA, art. 171) ou à entidade constante do mandado, diretamente, mas, quando apreendido em flagrante de ato infracional, remetido é i autoridade policial competente (ECA, art. 172), e, se houver violência ou
grave ameaça a pessoa, além da lavratura do auto, o alegado infrator será ouvido (ECA, ar?. 173) na oportunidade da oitiva das testemunhas. Ocorrendo essa hipótese, a autoridade policial que ouve deve ser identificada, quando não se confunda com a responsável pela apreensão, sendo irrelevante
tratar-se de interrogatório formal (ou informal) ou mera coleta simplificada de informações, tratando-se de sindicado, e não indiciado.
É fundamental a identificação, destarte, não só com referência aos responsáveis pela apreensão, mas alcançando, também, aquele que ouviu o adolescente na hipótese indicada, isto é, tanto a autoridade policial ou quem suas vezes fizer, visando a coibir abuso de poder, responsabilizando-se, diretamente, os que apreenderam de forma abusiva, afrontando a lei, por razões subalternas, através da provocação de danos físicos, materiais ou morais. Afinal, não pode o Estado, por sua vez, agir sob o manto do anonimato, sob pena de admitir-se a fuga real de sua responsabilidade civil e a volta ao trágico tempo dos capuzes encobrindo as faces ignóbeis dos torturadores.
Apesar de não constar do Estatuto da Criança e do Adolescente a cláusula da identificação do responsável pela ouvida na fase policial, o adolescente, se pretender responsabilizar o inquisidor elou o Estado (aquele por abuso de poder – Lei 4.898165 – e este no plano da responsabilidade civil), guardadas as peculiaridades, poderá exigir seja identificado o “ouvidor” policial, fazendo-o na fase judicial, materializando o princípio da ampla defesa, ou, mesmo, noutro ensejo, para. efeitos exclusivamente civis, inclusive mediante reconhecimento visual.
A terceira garantia-direito (informação acerca dos direitos), amparada também por uma garantia criminal preventiva, está expressa na parte final do parágrafo único do art. 106 e tem sua salvaguarda encartada no inc. LXIII do art. 5ºda CF.
Nota-se, ao cotejá-los, que, enquanto o Estatuto se giza à necessidade de o adolescente ser informado acerca de seus direitos, o texto constitucional vai além, a ponto de dizer encontrar-se entre eles o de permanecer calado, sendo-lhe, ainda, assegurada a assistência da família e de advogado.
A ausência das referências restantes, no Estatuto, é tolerável e justificável.
O adolescente, quando da apreensão, ao ser informado sobre seus direitos, obviamente o é no que tange ao de ficar calado, se a própria Constituição o explicitou em nível exemplificativo. Irrelevante se o responsável pela apreensão não o informou: poderá invocá-lo, sempre, em qualquer oportunidade em que for ouvido, sob a proteção da Carta Magna. Mesmo porque é ressabido ser o direito ao silêncio considerado um meio de defesa, e não de prova, salvo eventualmente.
Não nos parece que, por ter o adolescente no máximo 18 anos, devase-lhe restringir o direito constitucionalmente assegurado de permanecer calado, ao argumento de falta de maturidade para aferir a conveniência desse gesto. Ora, se a lei, no caso de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa, impõe a ouvida do adolescente, impedir o exercício do direito de permanecer calado traduz gritante inconstitucionalidade, tanto mais que o aspecto da maturidade não foi levado em consideração na hipótese contrária, ou seja, para o efeito de o apreendido transmitir detalhes em torno do ato a ele imputado, ao ensejo da inquirição. De mais a mais, repete-se, cuida-se de um dos “direitos” referidos na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Desse modo, o Estatuto, se entendesse o legislador pela legitimidade dessa restrição, expressamente excluiria o direito ou o texto seria redigido de tal arte que a interpretação gramatical conduzisse a essa ilação mesmo sob o risco de ser inquinado de inconstitucional o artigo respectivo.
Sequer o conhecido “princípio da prevalência absoluta do interesse do menor” pode ser trazido a ribalta. Não desprezando o interesse, o “direito de não responder” é incluído entre os direitos dos menores no subitem 7.1 das Regras Mínimas das Nações Unidas (Regras de Beijing, adotadas
pela ONU nos termos da Res. 40133, de 1985). Enfim, é internacionalmente admitido como elemento fundamental para a emergência de um juízo correto no altiplano do direito humano, implicante no respeito a liberdade de defesa considerada como a melhor e ligado de forma umbilical
a uma garantia processual que a complementa.
Quanto a assistência da família e a de advogado, previstas na Constituição Federal, não havia por que incluí-Ias no mencionado parágrafo se, na condição de garantias processuais típicas, foram asseguradas nos incs. III e IV do art. 111 (ECA), a par dos direitos quando privado o adolescente
de sua liberdade, em regime de internação (ECA, art. 124, III, VI, VII e VIII). De toda sorte, nada obsta a que, se tido como mais amplo o direito de assistência da família – na redação constitucional -, seja exigida na apreensão ou na internação, em termos de conforto material elou moral, tendo em vista a natureza humanitária desse direito, tanto mais se a prisão é mais gravosa em relação àquelas situações.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury