ECA: ARTIGO 107 / LIVRO 2 – TEMA: ATO INFRACIONAL
Comentário de Júlio César , Édson Viana, Carmem Luz
A questão dos limites do poder do Estado sobre os indivíduos – crianças/ adolescentes/ adultos – é problema que remonta a longa data.
Nas teorias organicistas de Estado, o indivíduo, o eu, é sempre um ser destruidor em potencial. Os primeiros que ressaltaram que o indivíduo está no centro da ordenação do Estado foram os liberais clássicos – Tocqueville e S. Mill.
Para estes, os direitos individuais são quase que naturais invioláveis. Neste sentido, o Estado só tem razão de existir enquanto assegura a individualidade aos cidadãos. Sua ação coercitiva só é permitida até o ponto de impedir a autodestruição da sociedade. Posteriormente, N. Bobbio afirmaria com clareza os limites da expansão do Estado, diminuindo a individualidade do cidadão: quando este – o cidadão – age no sentido de implodir o corpo social.
No Brasil, a vigência do Estado Democrático de Direito é algo ainda incipiente. Mas vale ressaltar que, ideologicamente ou não vinculada ao pensamento liberal, a questão da inviolabilidade dos direitos individuais, originalmente presente com mais força nesta vertente, deve ser preservada com todo o cuidado por nós, cidadãos brasileiros, principalmente por estar se tratando de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, sujeitos de direitos e com prioridade absoluta.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao incorporar este dispositivo constitucional, o fez inspirado no espírito de amplo desrespeito vigente em nossa Nação com relação aos cidadãos que caem nas “malhas” de muitas autoridades. Por isso, a não observação desse direito implica penas de seis meses a dois anos de detenção. Respeitá-lo não significa incentivar a criminalidade; ao contrário, compreender e praticar a função do Estado em relação ao indivíduo mesmo quando violador de uma norma preestabelecida.
Ressaltamos, também, que este dispositivo impõe um dever à autoridade coatora. Essa obrigação deve ser vista além dos motivos acima expostos, como um processo pedagógico benéfico para o adolescente, seus familiares, para a sociedade e para o próprio Estado, porque envolve a participação de todos e dificulta o trabalho dos mal-intencionados em relação à apuração e aplicação da devida medida na proporcionalidade do ato cometido, ou mesmo, a remissão, caso se convencerem o Ministério Público e o Poder Judiciário.
Além do quê, a possibilidade da liberação imediata evita a institucionalização desnecessária, a permanência prolongada do adolescente em ambientes não benéficos para o seu desenvolvimento, e – por que não dizer? – elimina o estigma indelével do aparato “policial” nas atuais circunstâncias do Brasil, hoje.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
ARTIGO 107/LIVRO 2 – TEMA: ATO INFRACIONAL
Comentário de Péricles Prade
Advogado/São Paulo
O art. 107, em seu caput, ao convalidar a garantia-direito da comunicabilidade (de natureza criminal preventiva), ou seja, pertinente à comunicação da constrição da liberdade física e do local onde se encontra o constrito, virtualiza uma réplica do inc. LXIII do art. 5° da CF, mas não se limita a substituir os termos “prisão” por apreensão, “qualquer pessoa” por qualquer adolescente, “preso” por apreendido, em atenção à tecnicidade afeiçoada ao singular ramo do Direito que trata dos interesses das pessoas de idade inferior a 18 anos. Foi além, dando ao advérbio de modo “imediatamente” um sentido temporal ainda mais restrito, ao se utilizar da expressão incontinenti no que se refere à obrigação do autor da apreensão de comunicá-la (bem assim o local do recolhimento) à autoridade judiciária competente.
Louvável a inclusão da aludida expressão, pois, se o advérbio “imediatamente” é mais que logo, fato notório ter a praxe placitado um prazo de 24 horas para comunicação após o apoderamento físico. Tanto que, em tomo do assunto, Alcino Pinto Falcão esclarece: “tem-se entendido que, face à dificuldade material, é imediata a comunicação que for a juízo dentro de 24, horas após o flagrante” (grifamos – cf. Constituição Anotada, 2/ 169, Rio, Freitas Bastos). Essa é a realidade, apesar de José Cretella Júnior lecionar que o constituinte de 1987/1988, a exemplo das Constituições anteriores, usou o advérbio a fim de não ser admitida “apreciação axiológica ou valorativa por parte do detentor a partir do momento pontual da prisão” ( cf. Comentários á Constituição de1988/1988, Rio, Florense). A razão exagética está em José Celso de Mello Filho, ao alertar que “a praxe”, e não a lei, consagrou o prazo de 24 horas. Tal procedimento, no entanto, é além de abusivo, flagrantemente inconstitucional, eis que imediatamente significa o menor prazo possível. A comunicação há de ser feita com a máxima celeridade, a fim de não se prolongar coação eventualmente injusta ao estado de liberdade do indivíduo” (grifamos – cf. “Tutela judicial de liberdade”, RT 526/297). Assim, para não dar margem a hesitações, a utilização da palavra incontinenti (sinônimo de sem demora, sem intervalo, sem interrupção – cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1ª ed., Rio, Nova Fronteira, p. 755) deixa claro que a praxe é ininvocável, devendo o apreensor, no ato da apreensão do adolescente, comunicar à autoridade o fato e o local onde o mesmo se encontra recolhido. A tutela minorista exige que assim o seja para coibir a constrição por tempo dilargado e de molde a causar traumas de toda ordem e às vezes irreversíveis.
Quanto aos outros aspectos, não se afasta o caput do art. 107 do quadro constitucional (isto é, no plano da abusiva interpretação praxista). Temos, assim, que: a) a comunicação compreende não só a apreensão do adolescente mas, também, simultaneamente, o local onde se encontra recolhido; b) o destinatário é a autoridade judiciária competente ( o juiz da infância e da juventude ou o que exerce essa função, consoante a lei de organização judiciária local – ECA, art. 146); c) a comunicação é à autoridade judiciária competente, dado que somente esta tem o dever constitucional ( art.5°, LXV, da CF) de controlar a correção do ato, de liberar imediatamente o adolescente e de tomar as providências necessárias à responsabilização do(s) culpado(s) pela apreensão ilegal e abusiva (v. Lei 4.898/65), além de possibilitar ao ofendido elementos para o ressarcimento moral e material dos prejuízos causados; d) tem a comunicação por objetivo, ainda, cientificar a família do apreendido (ou a pessoa por ele indicada) acerca da apreensão e do seu paradeiro, visando, com isso, à assistência (material, moral e psicológica) e à constituição de advogado habilitado para a defesa técnica, em virtude da peculiar natureza da matéria.
O parágrafo único do art. 107 trata da quinta garantia-direito (garantia individual criminal preventiva de legalidade), ou seja, a imediata liberação à vista da ilegalidade da apreensão do adolescente, cuja matriz se centra no inc. LXV do art. 5° da CF, ao dispor que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.
Tanto a prisão ( abrangendo quaisquer modalidades), no caso de imputáveis, quanto a apreensão, em relação aos inimputáveis, para o efeito do relaxamento ou da liberação, têm como pressuposto a ocorrência de ilegalidade, consiste esta na desobediência dos requisitos legais autorizadores daquelas constrições à liberdade, constantes do Código de Processo Penal (art. 674) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (arts,103,106,112, VI, entre outros). Em ambas as circunstâncias, como se trata de constrangimento ilegal, se inocorrentes relaxamento, e/ou liberação caberá hapeas corpus para fazer cessar a violência/coação à liberdade de locomoção.
O inc. LXV deve ser abordado juntamente com o de n. LXII do art. 5° da CF, já que, como ensina Pontes de Miranda: “O juiz pode reputar que a comunicação está perfeitamente instruída, ou que não está. No primeiro caso, decidirá se legal, ou se ilegal, a prisão, ou detenção. No segundo, terá de, sendo-lhe ou não pedida, ou a outrem, a quem caiba competência, ordem de habeas corpus, relaxá-la, porque a comunicação omissa, defeituosa, não instruída, é infração ao texto constitucional” (cf. Comentários à Constituição de 1967, 5/225, São Paulo, Ed. RT). A lição é aplicável à interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente, às escâncaras, mudando-se tão-só o que deve ser mudado no respeitante ao Direito tutelar da criança e do adolescente.
Outros detalhes merecem relevo. Começa-se por perguntar quem, desde logo, deve examinar a possibilidade da liberação. Três são as situações, a saber: a) primeiro, o destinatário da norma é a autoridade policial competente, ocorrendo quando o adolescente é apreendido em flagrante de ato infracional (ECA, arts. 172 e 174), sendo este cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa (ECA, art. 173), ou sem gravidade de vulto à repercussão social (ECA, art. 107), justificando internação, comparecendo qualquer dos pais ou responsável; b) segundo, a liberação é examinada pelo Ministério Público, que, aliás, tem como competência precípua conceder remissão como forma de exclusão do adolescente do processo e promover o arquivamento (ECA, arts. 126, 180, I e II, e 201, II); c) terceiro, a autoridade judiciária competente (CF, art. 5°, LXV; ECA, arts. 107 e 189, parágrafo único), que deverá agir no momento exato em que é cientificada da apreensão e do local.
Tão impositiva é a obrigação do exame dessa possibilidade – se ilegal a apreensão – que as autoridades competentes (juiz, promotor de justiça e delegado de polícia) serão responsabilizadas, criminalmente, a teor do art. 234 do Estatuto, se, sem justa causa, não ordenarem a imediata liberação de criança ou adolescente, tão logo tenham conhecimento da ilegalidade, podendo, via de conseqüência, ser punidas com pena de detenção de seis meses a dois anos, a par da responsabilidade pessoal e do Estado na órbita civil.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury