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ARTIGO 109/LIVRO 2 – TEMA: DIREITOS
Comentário de Péricles Prade

Advogado/São Paulo O art. 109 deve ser interpretado à luz do inc. LVIII do art. 5° da CF e representa a sétima garantia individual (adstrita à garantia da presunção de inocência), expressamente absorvida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, confortando-se às nuanças específicas do tratamento jurídico deste, mas criando uma ressalva – quanto à identificação criminal -que, segundo pensamos, merece reparos.

Antes, porém, de ser examinada a apontada exceção, cumpre fazer remissão à situação posta no regime anterior à atual Constituição.

Não havia disposição expressa, no texto constitucional, a respeito da impossibilidade de identificação criminal se houvesse identificação civil precedente. Entretanto, dispunha o Código de Processo Penal, em seu art.6°,VIII, que a autoridade policial, tomando conhecimento da infração, poderia “ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico,se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes” (grifamos).

A melhor doutrina e significativa jurisprudência se indispuseram contra essa regra jurídico-processual (cf.RT 472/346, 480/336, 482/357, 486/321,489/388,492/359,494/330, entre outras), entendendo que a exigência da identificação constitui vexame caracterizador de constrangimento ilegal. Mormente na hipótese de prévia identificação civil.

O saudoso criminalista Heleno Fragoso, p. ex., comentando as decisões monocráticas e colegiadas, em decorrência do disposto no art. 6°(inc.VIII) do CPP, foi incisivo ao censurar: “Quanto à identificação datiloscópica, temos outras observações a fazer. A providência a que alude o art. 6°,VIII, do CPP constitui medida vexatória imposta ao cidadão indiciado, que a lei presume inocente, não se justificando no caso em que já se acha ele identificado no lugar em que o fato ocorreu” (cf. Jurisprudência Criminal,4ª ed., Rio, Forense, p. 300). Daí por que, considerando abuso de poder a imposição, nessas circunstâncias, declara a pertinência do hábeas corput para afastá-la.
O STF, todavia, fez ouvidos moucos ao clamor doutrinário e à exata interpretação jurisprudencial, editando a célebre Súmula 568, hoje superada, no sentido de que “a identificação criminal não constitui constrangimento ilegal,ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente”(grifamos). A Assembléia Nacional Constituinte a sepultou, sensível às ponderações dos juristas, fazendo encartar na Constituição de 1988 (art.5°,LVIII), na parte referente aos direitos individuais, que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei” (grifamos).
Pois bem. A lei 8.069, de 13.7.90, dispondo sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, ressaltou uma dessas hipóteses, admitindo a identificação criminal (através do processo datisloscópico ou outro de natureza técnica com os mesmos objetivos) mesmo se o adolescente já tenha sido civilmente identificado.

A ressalva acopla-se à cláusula “para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada”. Conquanto a exija quando não é possível individualizar dois ou mais adolescentes, para aferir a autoria do ato infracional, apesar da identificação civil, a não ser mediante o confronto entre as respectivas identificações criminais, a par do pressuposto da dúvida fundada (aquela baseada em evidências ostensivas e para evitar erro policial e/ou judiciário), lamenta-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente, justamente, tenha inaugurado o rol das possíveis exceções à regra geral, previsto na parte final do inc. LVIII do art. 5° da CF. E note-se que, nos termos do art. 109, quando ocorrerem tais hipóteses, a identificação será compulsória com o gravame de constrição moral superior à época do inaplicável art. 6° (inc. VIII) do CPP, cuja providência era facultativa, como se deduz da interpretação literal do verbo “poderá”.

Não se pretende – e nem teria arrimo nos planos técnico e científico – obstar à identificação do adolescente, dada a indesmentível necessidade de se conhecer os atributos físicos do eventual infrator em relação à sua identidade, a fim de se ter certeza de que é ele mesmo e não se trata de outra pessoa.

O que se questiona é a exigência da humilhante identificação criminal se já houve a civil. Na verdade, desnecessária aquela ainda que haja dúvida, fundada ou não, acerca da identidade civil, ferindo-se, inconfutavelmente, o princípio universal da presunção de inocência, agora albergado  pela vigente Constituição (art. 5° LVII) de forma expressa.Há intimidade evidente entre os dois princípios. Mas nada se pode fazer diante da nova realidade jurídica, pois a exceção é constitucionalmente prevista e não é daquelas que deliram do sistema constitucional ou infraconstitucional (para usar uma expressão de Orozimbo Nonato quanto ao exame da prova no recurso extraordinário), ensejando declaração de inconstitucionalidade. A interpretação sistemática resguarda a confluência e o aparente conflito das mesmas.

Enfim, se a primeira parte do inc. LVIII do art. 5Qda CF é de eficácia plena e de aplicabilidade imediata, em sendo norma definidora e garantia fundamental (CF, art. 5°,LX, LVII, e § 1Q),a segunda parte, embutindo eficácia contida, atrelada ao advento de hipóteses previstas em lei, já se tomou operante – no tocante aos adolescentes, haja vista o estabelecido, em nível de exceção, no art.109, aqui comentado.
Resta, apenas, o consolo de que, se houver identificação criminal, mesmo no caso de identificação civil anterior, ou, então, se  ocorrer aquela compulsoriamente, sob o argumento de existência de dúvida fundada, para efeito de confrontação, sem que tais hipóteses tenham ocorrido, configurar-se-á o crime tipificado pelo art. 232 (ECA), punindo-se com detenção de seis meses a dois anos aqueles que submetem adolescentes (ou crianças) sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento, como violadores do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade (v. arts. 15 e 18) dessas criaturas merecedoras de especial atenção.

Este texto faz parte do livro
Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ARTIGO 109/LIVRO 2 – TEMA: DIREITOS

UNICEF/Brasília
Será preciso fazer um amplo trabalho de discussão, principalmente com a Polícia, para viabilizar a aplicação do art. 109 do Estatuto.A arbitrariedade dos policiais que fazem o policiamento ostensivo não tem-se restringido à criança e ao adolescente: também adultos são submetidos à prática vexatória de serem revistados, terem que apresentar documentos, a qualquer pretexto.
O fato de abrir a possibilidade de o policial exigir identificação para “efeito de confrontação, havendo dúvida fundada”, deve ser considerado como “exceção excepcionalíssima”.

É um absurdo proceder à identificação compulsória de crianças e adolescentes que não têm o que comer, nem vestir, nem onde morar, submetendo-os às situações mais humilhantes. Raríssimas vezes crianças bem-vestidas e nutridas foram abordadas por policiais ou qualquer autoridade para submetê-las a esse procedimento.

É preciso que a expressão “dúvida fundada” não seja confundida com preconceitos, protótipos ou juízos preconcebidos. Infelizmente, há uma certa subjetividade neste artigo que poderá abrir margem à arbitrariedade. Por isso, o Ministério Público, os Centros de Defesa e os Movimentos de Defesa precisam estar atentos à garantia dos direitos individuais.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ECA comentado: ARTIGO 109/LIVRO 2 – TEMA: Direitos
ECA comentado: ARTIGO 109/LIVRO 2 – TEMA: Direitos