ECA: ARTIGO 112 / LIVRO 2 – TEMA: DEFICIENTE
Comentário de Olympio Sotto Maior Ministério Público/Paraná
No art. 112, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente restam indicadas as medidas de caráter sócio-educativo (e também protetivo) aplicáveis aos adolescentes autores de atos infracionais.
Como se trata de rol taxativo (e não simplesmente exemplificativo), é vedada a imposição de medidas diversas daquelas enunciadas no artigo em tela.
Constituem-se na autoridade competente, referida em tal norma, o juiz e o promotor de justiça da infãncia e da juventude (este último somente no pertinente às medidas previstas nos incs. I, lI, m, IV e VII, quando se tratar de concessão de remissão com aplicação de medida).
Confrontadas as medidas sócio-educativas com aquelas estabelecidas pelo revogado Código de Menores (Lei 6.697/79, art. 14), exsurgem como novidades a de obrigar à reparação do dano, a de prestação de serviços à comunidade, além do conjunto das medidas protetivas constantes do art.101, I a VI, do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.
Entretanto, convém registrar de plano, comete equívoco quem imagina que a proposta da nova legislação, no referente ao enfrentamento da delinqüência infanto-juvenil, resume-se nas medidas ora em apreciação.
Ao tempo em que absorveu os princípios da doutrina da proteção integral, o legislador do Estatuto fez por reconhecer, automática e acertadamente, que a maneira mais eficaz (e justa) de se prevenir a criminalidade em questão consiste no superar a situação de marginalidade experimentada hoje pela maioria das crianças e adolescentes brasileiros.
A nova base da doutrina provocou, assim, a derrocada de mitos que proliferavam nesta área da infância e da juventude.
É que, embora apresentando-se com a roupagem de tutelar, instrumento de proteção e assistência, o Código dê Menores, na realidade, em nada contribuía para alterar na essência a condição de indignidade vivida pelas crianças e adolescentes brasileiros, vez que sequer os reconhecia como sujeitos dos mais elementares direitos. A Justiça de Menores, por seu turno, colaborava para fomentar a idéia falsa (e extremamente perversa) de serem os carimbados com o signo da situação irregular responsáveis pela sua própria marginalidade. Partindo-se do pressuposto irreal de que a todos são oferecidas iguais oportunidades de ascensão social, acabava permitindo difundir-se ideologicamente o raciocínio de ter havido opção pela vida marginal e delinqüencial. No que toca à criminalidade, procurava-se restringir ao campo individual (e psicológico) os questionamentos acerca dos motivos da não integração social de milhões de crianças e adolescentes (ou de sua não reintegração mesmo após a atuação da Justiça de Menores) e, por essa operação, imunizar de crítica a estrutura social injusta imperante no País.
A opção no sentido de a nova lei vir a servir de instrumento para assegurar às crianças e adolescentes a satisfação de suas necessidades básicas certamente trará efeitos positivos, via justiça social, no pertinente à diminuição da criminalidade infanto-juvenil (como bem já notou Roberto Lyra, “a verdadeira prevenção da criminalidade é a justa e efetiva distribuição do trabalho, da cultura, da saúde, é a participação de todos nos benefícios da sociedade, é a justiça social”).
Não se quer, evidentemente, estabelecer liame indissolúvel entre a pobreza e a delinqüência (aliás, deve-se reagir com rigor contra o etiquetamento de criminoso decorrente apenas da condição social do indivíduo, já que disto resulta o direcionamento dos processos de criminalização no sentido dos pobres), mas, sim, reconhecer que, para determinadas pessoas, as condições reais de vida se apresentam tão adversas (e insuperáveis pelos meios considerados legais e legítimos) que acabam impulsionando (especialmente tratando-se de adolescente) à prática de atos anti-sociais.
A prevenção da criminalidade e a recuperação do delinqüente se darão, como quer o Estatuto, com a efetivação das políticas sociais básicas, das políticas sociais assistenciais (em caráter supletivo) e dos programas de proteção especial (destinados às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e/ou social), vale dizer, com o Estado vindo a cumprir seu papel institucional e indelegável de atuar concretamente na área da promoção social.
Então, para o adolescente autor de ato infracional a proposta é de que, no contexto da proteção integral, receba ele medidas sócio-educativas (portanto, não punitivas), tendentes a interferir no seu processo de desenvolvimento objetivando melhor compreensão da realidade e efetiva integração social.
O educar para a vida social visa, na essência, ao alcance de realização pessoal e de participação comunitária, predicados inerentes à cidadania.
Assim, imagina-se que a excelência das medidas sócio-educativas se fará presente quando propiciar aos adolescentes oportunidade de deixarem de ser meras vítimas da sociedade injusta que vivemos para se constituírem em agentes transformadores desta mesma realidade.
Nesta ótica, não temos dúvida em afirmar que, do elenco das medidas sócio-educativas, a que se mostra com as melhores condições de êxito é a da liberdade assistida, porquanto se desenvolve direcionada a interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico, as suas potencialidades. O acompanhamento, auxílio e orientação, a promoção social do adolescente e de sua família, bem como a inserção no sistema educacional e do mercado de trabalho, certamente importarão o estabelecimento de projeto de vida capaz de produzir ruptura com a prática de delitos, reforçados que restarão os vínculos entre o adolescente, seu grupo de convivência e a comunidade.
E, no outro extremo deste mesmo olhar, vislumbra-se que a internação é a medida sócio-educativa com as piores condições para produzir resultados positivos. Com efeito, a partir da segregação e da inexistência de projeto de vida, os adolescentes internados acabam ainda mais distantes da possibilidade de um desenvolvimento sadio.Privados de liberdade, convivendo em ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos marginais (especialmente no que tange a responder com violência aos conflitos do cotidiano), a probabilidade (quase absoluta) é de que os adolescentes acabem absorvendo a chamada identidade do infrator, passando a se reconhecerem, sim, como de má índole, natureza perversa,alta periculosidade, enfim, como pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta indestrutivelmente ligada à delinqüência (os irrecuperáveis, como dizem deles). Desta forma, quando do desinternamento, certamente estaremos diante de cidadãos com categoria piorada, ainda mais predispostos a condutas violentas e anti-sociais. Daí a importância de se observar atentamente as novas regras legais referentes à internação, especialmente aquelas que dizem respeito à excepcionalidade da medida, sua brevidade e, a todo o tempo, o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (de ressaltar também o novo elenco de direitos pertinentes ao adolescente internado, conforme disposição do art. 124 do ECA).
Embora, obviamente, de maneira mitigada, idênticas observações críticas cabem à medida de inserção em regime de semiliberdade.
Já as medidas de advertência, obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade indicam nítida prevalência do caráter educativo ao punitivo. É que as técnicas educativas voltadas à autocrítica e à reparação do dano se mostram muito mais eficazes, vez que produzem no sujeito infrator a possibilidade de reafirmação dos valores ético-sociais, tratando-se-o como alguém que pode se transformar, que é capaz de aprender moralmente e de se modificar (as técnicas de conteúdo punitivo, segundo as teorias da aprendizagem, eliminam o comportamento somente no instante em que a punição ocorre, reaparecendo porém, e com toda força, tão logo os controles aversivos sejam retirados).
Finalmente, quanto às medidas protetivas (v. inc. VII do art. 112, c/c a previsão do art. 101, I a VI, ambos do ECA), basta registrar o conteúdo especificamente pedagógico das mesmas, destinadas ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
O § 1º do art. 112 estabelece, inicialmente, que a medida aplicada ao adolescente deve levar em conta sua capacidade de cumpri-la, ou seja, que apresente condições de exerqüilidade. É que a imposição de medida irrealizável, além do inerente desprestígio à própria Justiça da Infância e da Juventude, acabaria reforçando juízo negativo (e formulado com freqüência pelos adolescentes) de incapacidade ou inaptidão para as coisas da vida, provocador de inevitável rebaixamento da auto-estima. Ao invés de benefícios, a aplicação da medida traria prejuízos à formação da personalidade do adolescente. A parte final do parágrafo em tela, por outro lado, refere-se à necessária relação e proporcionalidade entre a medida aplicada e as circunstâncias e gravidade da infração. A decisão desproporcionada ou que não guarde qualquer relação com o fato infracional praticado tenderá a perder contato com o processo educativo que lhe dá razão de existir, restando, neste aspecto, inócua ou injusta. Neste sentido, ao tratar dos princípios norteadores da decisão judicial e das medidas, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (as Regras de Beijing) asseveram que “a resposta à infração será sempre proporcional não só às circunstâncias e à gravidade da infração mas também às circunstâncias e necessidades do menor, assim como às necessidades da sociedade” (v. regra 17.1), pois, segundo tal Carta internacional, a observância destes princípios significará importante contribuição à proteção dos direitos fundamentais dos adolescentes infratores, especialmente os pertinentes ao desenvolvimento e à educação da personalidade.
No § 2° do art. 112 a lei faz por vedar, de maneira enfática, a prestação de trabalho forçado. Não se tem dúvida de que o trabalho, como instrumento educacional e emancipatório, somente contribuirá para a formação do adolescente se contar com seu consentimento. Afora não conduzir à reflexão acerca do ato cometido, o trabalho forçado esbarra no que fazer quando da recusa por parte do adolescente, vez que, nesta mesma linha de absurdos, só restaria a inflição de castigos físicos. Na verdade, e como pá de cal, esta norma do Estatuto apenas especializa o que já é regra constitucional, arrolada dentre os direitos e garantias fundamentais (v. art. 5°, XLVII, “c”, da CF).
Por fim, o § 3° do art. 112 determina a obrigatoriedade de tratamento individual e especializado, inclusive em local adequado, aos adolescentes portadores de doença ou deficiência mental e que tenham adequado o comportamento a figura típica tida como ato infracional. Conforme enunciado no capítulo “Dos direitos fundamentais” do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, a criança e o adolescente portadores de deficiência devem receber atendimento especializado (v. art. 11, § 1°), o que, aliás, já havia sido estabelecido na Constituição Federal (v. art. 227, § 1°, II), restando a norma em apreço como reforço no sentido de que prefalado direito é extensivo ao adolescente portador de deficiência e autor de ato infracional. O não oferecimento ou a oferta irregular do tratamento individual e especializado (inclusive de local adequado às condições do adolescente) poderá dar ensejo à propositura de ação civil pública destinada à efetivação do multicitado direito. A insistência do legislador certamente objetiva não repetir, no que toca a adolescentes, os descaminhos dos manicômios judiciários.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury