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ARTIGO 116/LIVRO 2 – TEMA: ATO INFRACIONAL
 
Comentário de Miguel Moacyr Alves Lima
Minitério Público/Santa Catarina

 
1. Segundo o art. 927 do CC brasileiro, a prática de um ato ilícito impõe ao seu autor a obrigação de reparar o dano. Estão excluídos do conceito de ato ilícito, para efeitos de responsabilidade civil, os atos praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito e também a deterioração ou destruição de coisa alheia a fim de remover perigo iminente (art. 160, I e II, do CC brasileiro). Nesta última hipótese, o ato só será considerado legítimo (fundado em justa causa ) quando as circunstâncias tomarem a ação do agente absolutamente necessária, e desde que ele não exceda os limites do indispensável à remoção do perigo (parágrafo único do art. 160 do CC brasileiro).
No que concerne ao prejuízo causado por ato ilícito devido a menor, se este tiver menos de 16 anos, responderão pela preparação, exclusivamente, os pais e, se for o caso, o tutor ou o curador. Se o menor tiver entre 16 e 21 anos, a lei o equipara ao maior no que concerne às obrigações resultantes de atos ilícitos em que for culpado. Nesse caso, responderá solidariamente com seus pais, tutor ou curador pela reparação devida (arts. 156 e 1.521, I e 11,do CC).

Na aplicação desses preceitos a jurisprudência tem adotado posições mais favoráveis aos interesses das vítimas. Em alguns julgados tem-se reconhecido a responsabilidade solidária do pai, mesmo que o menor seja emancipado ou habilitado para a direção de veículo automotor:

“O fato de o motorista culpado ser menor emancipado não afasta a responsabilidade do pai, a quem pertence o veículo causador do dano” (TJSP, 2aC. Civil, v. u., cf. RT 494/92).

“Aquele que entrega carro de sua propriedade a filho menor, ainda que habilitado, responde por evento em que seu filho seja responsável” (TJSP, 5aC. Civil, v. u., cf. RT 492/117).

Em outro precendente que merece destaque, a 8ª Câmara Civil do TJSP decidiu, por unanimidade, pela co-responsabilidade paterna, mesmo comprovando-se que o menor tinha deixado a casa paterna, passando a residir em local diverso: “Se o menor deixa a casa paterna, sem qualquer motivo, descura o pai de seu dever de guarda e vigilância, sendo responsável pelo ilícito civil praticado por aquele” (RT 590/154).

2. O artigo em questão instituiu a possibilidade de impor ao adolescente autor de ato infracional com “reflexos patrimoniais”, como medida sócio-educativa, a obrigação de reparar o dano causado à vítima, seja pela restituição da coisa subtraída, seja pelo respectivo ressarcimento, seja através de outra alternativa compensatória.

A medida tem um caráter facultativo e dependente das circunstâncias de cada caso concreto, conforme indicam as expressões “a autoridade poderá determinar, se for o caso…”.

Em breve regressão histórica, observamos que o Código de Menores de 1927 (Mello Matos), repetindo preceito do Dec. 16.272, de 20.12.1923, dispunha,no seu art. 68, § 4°, que: “São responsáveis pela reparação civil do dano causado pelo menor os pais ou a pessoa a quem incumba legalmente a vigilância, salvo se provarem que não houve de sua parte culpa ou negligência”. Por sua vez, o Código de Menores de 1979 (Lei 6.697/79) previa uma forma de simplificação do procedimento de composição do dano causado por menores autores de infração penal. Dizia que a autoridade judiciária, sempre que possível e se for o caso, tentará, em audiência com a presença do menor, a composição do dano por ele causado. A composição do dano se daria por acordo entre á vítima e o responsável legal pelo menor, homologado pelo juiz do processo instaurado para a apuração da infração penal, considerando-se o respectivo termo documento hábil para a execução, nos termos da lei processual civil. Com isso, evitava-se que a vítima tivesse de recorrer à ação de reparação de dano, resguardando-se o menor contra a maior repercussão social do seu ato e abreviando-se o tempo e os gastos da vítima na obtenção da reparação. Segundo Anísio Garcia Martins (O Direito do Menor,: São Paulo, Universitária de Direito, 1988,p. 136), esse procedimento era salutar e vantajoso, “pois a reparação consentida, no fragor dos acontecimentos, torna-se efetiva e compensadora, além de ter o efeito psicológico de viva impressão na consciência do menor, que sente de imediato as conseqüências negativas dos seus atos”.

O Estatuto inova no tratamento dado à matéria pelas leis (Códigos de Menores) que o antecederam. Prevê que a autoridade poderá ir além da mera tentativa de composição patrimonial, estabelecendo em seu favor a faculdade de determinar, isto é, de decidir, que o adolescente repare o dano decorrente de sua ação ilícita.

Se compararmos com o que acontece no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal, verificaremos que a “obrigação de reparar o dano” ganha, no Estatuto, característica especial, seja quanto à sua natureza, seja quanto à maneira de sua efetivação. Embora o ato ilícito imputado ao adolescente corresponda, ontologicamente, ao mesmo ato que no Direito Penal se considera crime ou contravenção penal,. não há de confundir-se o tratamento dado pelos dois sistemas jurídicos à obrigação de reparar o dano. Na esfera do Direito punitivo, essa obrigação é efeito extrapenal da sentença condenatória trânsita emjulgado. Por força do princípio da separação ou da independência dos juízos, adotado no País a partir da Lei 261, de 1841, não pode o juiz penal imiscuir-se na sua apreciação, e nem sequer lhe é permitida por lei a iniciativa de intermediar a composição do dano.

No caso do Estatuto, a obrigação de reparar o dano é medida sócio-educativa que pode ser aplicada ao adolescente autor de ato infracional e, por via de conseqüência, ao seu responsável legal (culpa in vigilando), inserida na alçada da mesma autoridade que examina o caso no âmbito do sistema de Justiça da Infância e da Juventude. Nesse caso, incide, por exceção, o modelo do juízo único para a apuração do ilícito e a reparação do dano dele decorrente. Com isso, aprimora-se a metodologia jurídico-processual adotada na lei anterior, favorecendo-se ainda mais para a vítima a recuperação das perdas e propiciando-se que, de imediato, o adolescente perceba os efeitos sociais e econômicos dos seus atos, aguçando-lhe o sentido de seus direitos e deveres. Trata-se, então, de aproveitar os “reflexos patrimoniais” do ato praticado pelo adolescente para nele desenvolver ou estimular o desenvolvimento de traços positivos do seu caráter.

3. A lei cuida da hipótese de ato infracional com reflexos patrimoniais. Não se restringe a prever a medida somente para os casos de atos infracionais que infrinjam diretamente os direitos de posse e propriedade, ou contra o patrimônio, como pensa Jason Albergaria (referido Autor afirma, à p. 123 de sua obra Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente,Rio, Aidê, 1991: “O art. 116 do Estatuto prevê a obrigação de reparar o dano nos delitos contra o patrimônio”). Para firmarmos esse entendimento, consideramos o fato de que o nosso sistema jurídico prevê a “satisfação do dano lato sensu” para ilícitos dirigidos diretamente contra o patrimônio, para aquelas situações em que o dano à esfera patrimonial ocorre por via indireta e, por fim, para as hipóteses de dano meramente moral (arts. 1.537 a 1.553 do CC). No primeiro caso, temos a restitutio in integrum (restituição plena), forma mais singela de satisfação, que ocorre quando houve privação, por subtração, usurpação ou esbulho, de um bem corpóreo (ex.: furto, apropriação indébita) cuja integridade tenha subsistido. Sendo impossível a restituição, em vista de deterioração ou impossibilidade na recuperação da coisa, incide o ressarcimento, que, nos termos da lei civil, deve ser o mais completo possível (dano emergente, lucros cessantes etc.). Em terceiro lugar, cabe ainda o ressarcimento quando o prejuízo é reflexo ou indireto sobre o patrimônio da vítima (ex.: o fato de alguém, pela dor decorrente de uma injúria grave, deixar de cumprir uma tarefa ou atividade que lhe proporcionaria vantagem econômica, como a participação em um conclave cultural, artística ou esportivo mediante pagamento).

Ao nosso ver, o que importa para o Estatuto da Criança e do Adolescente é que, em razão do ato infracional, a vítima tenha sofrido reflexos prejudiciais na esfera econômica. Constatada tal circunstância, justifica-se a aplicação da medida em questão.

4. Quanto ao aspecto da incidência e da competência para a sua aplicação, sustentamos a tese de que a obrigação de reparar o dano poderá ser aplicada na fase pré-processual, pelo órgão do Ministério Público, conjugada com a concessão do beneficio da remissão, ou pela autoridade judiciária ao sentenciar, julgando a representação formulada contra o adolescente. Nesse sentido, discordamos da posição de Paulo Lúcio Nogueira, para quem “a medida de obrigação de reparar o dano deve ser imposta em procedimento contraditório, pois cabe ao adolescente fazer a sua defesa devidamente assistido por advogado” (v. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, São Paulo, Saraiva, 1991,p. 148).

Nossa objeção considera, em primeiro lugar, o princípio da desjudicialização, que visa a reduzir ao máximo a atuação do Estado-juiz nas situações relativas a interesses de crianças e adolescentes, vedando ou evitando a intervenção do Poder Judiciário nos casos em que inexistam “conflitos de interesse (jurisdição contenciosa) ou fatos ou direitos a serem protegidos contra a possível formação de futuro litígio jurisdição voluntária)” (Antônio Fernando do Amaral e Silva, “A Justiça da Infância e da Juventude”, in Brasil. Criança. Urgente, 1ª ed., I/90, coleção “Pedagogia Social”, São Paulo, Columbus, 1989). Essa orientação de política jurídica inspirada nas “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores” – conhecidas como “Regras de Beijing” – preocupa-se em ampliar a participação de instâncias administrativas especializadas no atendimento da criança e do adolescente, dando ênfase à utilização preferencial de meios preventivos e educativos.

Aplicar o princípio da desjudicialização significa buscar novos critérios para compreender e abordar a questão menorista, encarando sob um prisma crítico-dialético as suas raízes sociais, econômicas e políticas; significa redefinir o papel reservado às instituições privadas ou estatais no contato com a criança e o adolescente cuja situação ou conduta exija orientação, acompanhamento, assistência material ou moral, correção, tratamento ou proteção; significa, também, no caso de infratores, esgotar em todos os sentidos os meios não jurisdicionais de recepção e encaminhamento. Como adverte Tappan (apud Jason Albergaria, ob. cit., pp. 122 e 123): “1. Sempre que puder ser evitado, o menor não deve ser exposto a julgamento pelo tribunal juvenil e aos seus meios de tratamento. 2. A exposição do menor ao tribunal é traumatizante e constitui experiência desnecessária ao menor. 3. Grave estigma deriva do status atribuído ao menor pelo tribunal, pois o tratamento afixará no menor um persistente rótulo ou etiqueta (apersisting label). 4. Desde que representa um risco cada julgado, o tribunal deve ser o último recurso, e o menor deve ser em primeiro lugar tratado por órgãos não judiciários”.

Em segundo lugar, por força do disposto nos arts. 180, II, e 127, in fine, do Estatuto, parece-nos que o termo “autoridade”, constante do art. 116, deve abranger também o Ministério Público, que, ao realizar a audiência de apresentação mencionada no art. 179, poderá, “se for o caso “, optar pela remissão, conjugada com a medida sócio-educativa de obrigação de reparar o dano decorrente do ato infracional.

Reforçando nossa posição, observamos que o Estatuto preceitua que o beneficio da remissão pode “incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação” (art. 127). Ao nosso ver, a autoridade” que tem legitimidade para conceder a remissão também a tem para aplicar “qualquer das medidas previstas em lei”, salvo as constantes da proibição do art. 127 do Estatuto. Dessa forma, concluímos que a medida do art. 116 do Estatuto poderá ser aplicada pelo Ministério Público ou pela autoridade judiciária.

Não se pense que não antevemos as dificuldades que o órgão do Ministério Público poderá encontrar, mormente nos casos de ressarcimento, para operar com a medida em exame. Mas, a despeito disso, deverá sempre empenhar-se na busca de solução que evite a remessa dos interessados às vias judiciais comuns.

Nos termos do art. 114 do Estatuto, a aplicação da medida em estudo exige existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese da remissão, nos termos do art. 127.

No que concerne à ressalva ao art. 127, será preciso cautela para se evitar que a expressão “a remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade” venha a funcionar como uma oportunidade para o exercício de um extremado discricionarismo por parte da autoridade competente. Reportamo-nos, com maior preocupação, ao que já dissemos na análise do art. 115: estão excluídas as situações que acarretem mera suspeita. Quando a medida vier acoplada ao beneficio da remissão, a autoridade deverá contar com a prova da materialidade, bem como com elementos de convicção, embora não concludentes, mas fortemente indicativos (indiciários) da autoria do ato infracional. Caso contrário, estaríamos diante de uma situação legal desconectada do princípio de justiça, ou de justa causa, e, portanto, estranha ao modelo jurídico-processual do Estatuto. Ao falar-se em princípio do contraditório não se pode conceber nenhuma forma de sanção, ainda que de caráter sócio-educativo, sem formação de culpa, ainda que não plena. Estaríamos embutindo no sistema do Estatuto da Criança e do Adolescente um viés autoritário de incontroláveis conseqüências. Estaríamos quebrando a lógica da proteção integral, em homenagem à lógica da tutela repressiva que o ideário básico da atual lei menorista rechaça de forma direta e aberta, como se vê de sua preocupação com a salvaguarda dos direitos e garantias individuais, dos direito se garantias processuais da criança e do adolescente no caso destes, ainda que infratores.

No seu parágrafo único o art. 116 prevê que a medida da obrigação de reparar o dano poderá ser substituída por outra adequada caso se evidencie a manifesta impossibilidade de sua aplicação.

5. Para encerrar este comentário, gostaríamos de ponderar os seguintes pontos:

a) Na aplicação do art. 116, a autoridade competente (Ministério Público, autoridade judiciária) deve dar preferência à solução mediada, evitando, dentro do possível, impor aos interessados o seu ponto de vista, em termos de decisão, de determinação. Atuando dessa forma, estará dando destaque à pedagogia da participação, tanto da vítima quanto do adolescente e seu responsável, favorecendo uma compreensão dos fatos que transcenda o “meramente jurídico” e o “meramente econômico”. Enfim, estará propiciando a todos, mas especialmente ao adolescente infrator, a oportunidade de experimentar uma vivência compartilhada, fortalecendo elementos e aspectos que podem conduzir a uma socialização ou ressocialização positiva, porque baseada na valorização de sua pessoa, de sua imagem, de sua opinião, de sua condição de “ser de relações” e “sujeito de direitos”.

b) Quando a solução mediada se mostrar inviável, a autoridade competente (Ministério Público, autoridade judiciária) deverá sempre ter em mente o caráter sócio-educativo da medida, estabelecendo formas de reparação, seja quanto à natureza, seja quanto à extensão, em que o potencial pedagógico seja mais ou menos visível aos interessados. Com isso, de um lado, estará atendendo ao interesse da vítima em ver o seu prejuízo reparado com presteza, e, de outro lado, estará sendo fiel ao novo paradigma de Direito Menorista em vigor no Brasil, que exige para o adolescente infrator uma recepção, um processamento e um julgamento adequados à sua condição de pessoa humana, e não de mero objeto, passivo e amorfo, de nossa intervenção, por mais bem-intencionada que ela possa parecer.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury 

ECA comentado: ARTIGO 116/LIVRO 2 – TEMA: Ato infracional
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