ARTIGO 155/LIVRO 2 – TEMA: PÁTRIO PODER
Comentário de Luiz Carlos de Azevedo
Universidade de São Paulo
1. Do pátrio poder
Embora abandonada a primitiva noção do pátrio poder, da maneira como a entendida o Direito Romano, segundo o qual o pater famílias dispunha de autoridade absoluta sobre aqueles que viviam sob sua dependência, muito tardou para que este instituto deixasse de ser reconhecido como um mero corolário dos direitos do pai, em decorrência da guarda e reapresentação, para se tornar um complexo de direitos e deveres destinados à proteção dos bens e interesses do filho menor.
Na verdade, aquela colocação tradicional, imaginada antes em utilidade e vantagem do pai, do que em benefício do filho, e que se prolongava até mesmo depois da maioridade deste último, já havia sido repudiada por Lafayette Rodrigues Pereira muitas décadas antes da promulgação do Código Civil (cf. Direitos da Família, Rio, 1869, § 112, nota 1, p. 225). Assim, havia ela de ceder ao impulso das novas idéias que transformaram a sociedade contemporânea, de modo que o pátrio poder passou a ser visto, atualmente, como o conjunto de direitos relativos à pessoa e bens do filho menor. Não se visa ao benefício de quem o exerce, mas à proteção da criança ou do adolescente, de sorte que já se sugeriu a alteração do próprio nome do instituto, de pátrio poder para pátrio dever (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil Direito de Família, V/242, Rio, 1987).
Com o mesmo intuito, a denominação poder-dever, que estaria numa posição intermediária entre o poder propriamente dito e o direito subjetivo (Orlando Gomes, Direito de Família, 1969, p. 284).
Mas não foi esta a única alteração ocorrida no conceito: também já não se aceita mais a primazia paterna, como antes aparecia nos dispositivos legais que cuidavam da matéria. O Código Civil alemão refere-se à elterliche Gewalt, ao poder que vem de ambos os pais; em igual teor o Código Civil italiano, ao substituir a expressão della pátria potestá por della potestá dei genitori (Livro I, tít. IX); o Código Civil francês, la puissance paternelle por l?autorité parentale (arts. 371 e ss. Da Lei 70-459); o Código Civil português, ao definir o conteúdo do poder parental, qual seja, aquele que compete aos pais, no interesse dos filhos (art. 1.878). Luiz da Cunha gonçalves, ao comentar os artigos do Código Civil revogado, referia-se à autoridade parental “do Francês parents” para salientar que também a mãe participava desse poder, em igualdade de condições com o pai ( Tratado de Direito Civil, II-I/424, São Paulo, 1955).
No Brasil, por força de tradição histórica romana (institutas de Justiça, 1, 11, 10) e lusitana (Ordenações Filipinas, Livro IV, títs. 81,4 e 87,7), a princípio o pátrio poder cabia exclusivamente ao pai, e só por exceção alguns de seus tributos podia ser exercidos pela mãe ou avós (cf. Lafayatte Rodrigues Pereira, ob. Cit., 227 e nota 1). Além disto, a superveniência da maioridade não retirava a dependência do filho para com o pai (Clóvis Beviláqua, Direito de Família,Rio, 1933, p. 392), tanto que a liberação do pátrio poder só se obtinha mediante as formas então previstas em lei. Reformas legislativas ocorridas em 1831 e, mais tarde, em 1890foram gradativamente modificando esta situação de todo inconciliável com a realidade da época, de modo que, com a promulgação do Código Civil, em 1916, o instituto já era visto como um instrumento de proteção tutelar, e não mais como um meio de resguardo dos interesses do pai, frente à pessoa do filho e do seu patrimônio.
Mas a autoridade paterna, em razão de ser o pai reconhecido como chefe da sociedade conjugal (art. 233) e chefe de família (art. 380), prevalecia sobre a mãe, a qual só na falta ou impedimento do primeiro é que vinha a exercer o pátrio poder.
Mais um passo foi dado quando da edição do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121, de 17.8.62), alterada que ficou a redação do art. 380 do CC de 1916, para declarar que, durante o casamento, o pátrio poder competia aos pais, exercendo-o marido com a colaboração da mulher. No sentido deste duplo exercício também prescreve os arts. 1.631 e 1634 do Código Civil de 2002.
Finalmente, o art. 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente veio revogar aquele dispositivo do Código Civil, pois já não mais se refere à colaboração, e sim ao exercício conjunto do pátrio poder, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, como decorrência ao dispositivo no art.226, § 5º, da CF: Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
No que diz respeito à perda ou suspensão do pátrio poder, remete o art. 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente ao procedimento contraditório se ocorrerem aqueles casos previstos na legislação civil (arts. 1.635 a 1.638 do CC de 2002) ou se os pais não se desincumbirem do dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores ou, ainda, se descumprirem as determinações judiciais atinentes a tal desempenho (art.22). Ressalva o art. 23 que a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder.
2. Interesse processual
Para propor ou contestar a ação é necessário ter interesse e legitimidade – diz o art. 3º do CPC.
Este interesse, de natureza tipicamente instrumental, não se confunde com o interesse substancial; isto é, quando se examinam os elementos da ação, verifca-se que o seu objeto o pedido do autor se divide em dois, na medida em que é imediato, compreendendo a providência jurisdicional reclamada, e mediato, correspondendo ao bem jurídico que se pretende alcançar por meio daquela providência.
O interesse de agir surge da necessidade de se obter, pelo processo, a proteção do interesse primário e substancial; e pressupõe tanto a ameaça ou lesão desse interesse como a idoneidade da providência solicitada, a qual se destinará a protegê-lo e resguardá-lo. Será de todo inútil examinar o pedido, com vistas ao seu acolhimento ou rejeição, se a providência, em si mesma, mostra-se inadequada ou inidônea a remover a lesão (Enrico Tullio Liebman, Manuale di Diritto Processuale Civile, I 22, Milão 1973). Assim, a falta de interesse de agir funciona como ato impeditivo para a averiguação e julgamento do mérito da ação (Luigi Monaciani, Azione e Legitimazione, Milão, 1951, p. 81).
E isto acontece porque o interesse de agir constitui condição de admissibilidade para o exercício da ação. E a sua existência expressa-se por dois modos: em primeiro lugar, o recurso ao órgão, já que não dispõe de outro meio para a satisfação de seu direito; e, em segundo lugar, é preciso que, dentre os vários remédios constantes do ordenamento jurídico processual, tenha o autor se servido daquele que era apropriado à provisão desejada (a respeito, Aldo Attardi, L “Interesse d” Agire, Pádua, 1955, p. 24; Cândido Rangel Dinamarco, Execução Civil, São Paulo, 1973, p. 141).
Faltando o interesse de agir, ou a legitimação, o autor será julgado carecedor da ação. E o processo será julgado extinto, sem julgamento do mérito.
3. Legitimidade
O pedido de perda ou suspensão do pátrio poder pode ser proposto pelo representante do Ministério Público ou por quem se achar investido de legitimidade e interesse para agir, assim se qualificando os ascendentes, colaterais ou parentes por afinidade do menor, bem como qualquer pessoa que reúna condições para o exercício da ação, como, p. ex., os pretendentes à tutela ou à adoção.
Importa considerar, para fins do juízo de admissibilidade, que se torna imprescindível o concurso do interesse primário, manifestado pelo requerente, tendo em vista o resguardo dos direitos fundamentais inerentes à pessoa da criança ou adolescente cujo pátrio poder não esteja sendo exercido com correção por quem devera praticá-lo; e o concurso do interesse secundário, no sentido de que só por meio do processo de perda ou suspensão do pátrio poder aquele primeiro intuito será alcançado.
Sujeito passivo da relação jurídica processual será aquele que, por condição natural ou por determinação judicial, detenha o pátrio poder, esteja ou não com a guarda da criança ou do adolescente.
Ao promover e acompanhar a ação de perda ou suspensão do pátrio poder, o representante do Ministério Público atua como parte (arts. 81 do CPC e 155 do Estatuto). Se ação é promovida por outro interessado, a participação do representante do Ministério Público, agora como fiscal da lei, será obrigatória (arts. 82, II, do CPC e 201, § 2º, e 202 do Estatuto), sob pena de nulidade (arts. 84 do CPC e 204 do Estatuto).
Tratando-se de procedimento de jurisdição contenciosa, o pedido e a resposta das partes deverão ser formulados ou contestados por advogado devidamente habilitado, o qual será intimado, na forma da lei, para os atos que se desenrolarem durante o andamento do processo (arts. 36 do CPC e 206 do Estatuto).
Não há procedimento de ofício do juiz par fins de perda ou suspensão do pátrio poder. Devem os interessados requerê-lo, nos casos e formas legais, para que a autoridade judiciária instaure o procedimento, com vistas á prestação de tutela jurisdicional (art. 2º do CPC).
De acordo com os arts. 3º e 4º do Assento 165 do TJSP, são competentes, no Estado de São Paulo, para conhecer dos pedidos de perda ou suspensão do pátrio poder as Varas Especiais da Infância e Juventude, as Varas da Família e Sucessões, bem como os juízos que tenham competência cumulativa, em matéria de família; em qualquer desses juízos, todavia, observar-se-á o procedimento determinado no Estatuto.
Por dizer respeito a filiação, o procedimento corre em segredo de justiça, providência que se estende a todos os feitos regulados no Estatuto (arts. 155 do CPC e 152 e 206 do Estatuto).
Cabíveis o litisconsórcio e a intervenção de terceiros, desde que legítima e juridicamente interessados no resultado da ação; na segunda figura, entretanto, isto só ocorrerá nos casos de assistência e oposição.
4. Perda e suspensão do pátrio poder
Constituem motivos para o ajuizamento do pedido de suspensão do pátrio poder: o abuso deste, a falta dos deveres que os pais competem, a dilapidação dos bens do filho, a condenação daqueles por crime cuja pena exceda de dois anos de prisão (art. 1.637, parágrafo único, do CC de 2002). O art. 1.638 do CC enumera os casos de perda do pátrio poder: castigo imoderado, prática de atos contrários à moral e os bons costumes, abandono do menor. Acrescenta o Estatuto como causas tanto de suspensão quanto de destituição do pátrio poder o desatendimento injustificado ao dever de sustento, guarda e educação (art. 22), bem como o descumprimento das determinações judiciais atinentes à proteção da criança ou adolescente, referidas em seus arts. 101, I a IV, e 129, I a VI.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury