ECA: ARTIGO 184 / LIVRO 2 – TEMA: ATO INFRACIONAL
Comentário de Paulo Afonso Garrido de Paula
Ministério Público/São Paulo
Muito embora, à primeira vista, deixe o caput do dispositivo supracitado transparecer que a representação não se encontra sujeita a qualquer juízo de admissibilidade, deflui do sistema adotado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que a mesma poderá ser recebida ou rejeitada.
Em primeiro lugar, a autoridade judiciária deverá atentar para os requisitos formais da representação. A descrição, ainda que sucinta, do ato infracional, com todas as suas circunstâncias, decorre de norma constitucional (CF. art. 227, § 3º, IV) e, verificada, possibilita o exercício do sagrado direito de defesa. A classificação, indicação do dispositivo legal violado, exigência contida no art. 182 do ECA, completa a própria descrição do ato infracional, mesmo porque, com o Estatuto, tem conteúdo jurídico determinado, de vez que definido como a conduta descrita como crime ou contravenção penal (art. 103). É de se ressaltar que a classificação precisa é secundária, pois, ao prevalecer orientação jurisprudencial relativa à denúncia, a defesa se dá em relação ao fato, e não ao tipo penal.
Verificado o preenchimento dos requisitos formais, incumbe à autoridade judiciária avaliar a presença das condições da ação (possibilidade jurídica do pedido, legitimatio ad causam e interesse de agir), ou seja, deve aferir a existência de justa causa para a instauração da ação sócio-educativa pública, nunca olvidando, contudo, que a representação independe de prova pré-constituída de autoria e material idade, ante a não previsão da figura do inquérito policial (ECA, art. 182, § 2º).
Superada a segunda fase, a preocupação seguinte concerne aos pressupostos processuais. Competência, impedimentos, coisa julgada, litispendência, legitimatio ad processum constituem-se em pressupostos para o estabelecimento de regular relação processual, de sorte que o processo nasça sem vícios, afastando-se o risco de nulidades capazes de comprometer toda a atividade.
Do juízo de admissibilidade deflui a decisão recebendo ou rejeitando a representação. Não tem a autoridade judiciária possibilidade de decidir de outro modo; ou recebe ou rejeita a representação. Se prevalecer orientação jurisprudencial concernente à denúncia, não pode o juiz, ab initio, desclassificar o ato infracional, remeter o feito a outro juízo ou requisitar diligências policiais investigatórias.
Da decisão que rejeita a representação cabe recurso de apelação. Isto porque o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao adotar o sistema recursal do Código de Processo Civil, com as adaptações constantes do art. 198, não distinguiu entre procedimentos de natureza civil (guarda, tutela, adoção, reparatória de danos etc.) e os de natureza penal (ato infracional e imposição de penalidade administrativa). Assim, muito embora, no processo penal, da decisão que rejeita a denúncia caiba recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, I), infere-se que a representação. assemelha-se, para fins recursais, à petição inicial do processo civil, cabendo, do seu indeferimento, recurso de apelação (CPC, art. 296).
Decisão quanto à internação provisóriaRecebida a representação, deve o juiz, de plano, decidir sobre a decretação ou manutenção da intimação provisória. Tem por fundamento a gravidade do ato infracional e sua repercussão social, das quais de flui a necessidade de garantir a segurança pessoal do adolescente ou a ordem pública. Além desses aspectos, o juiz deve fundamentar sua decisão em indícios suficientes de autoria e materialidade e demonstrar a necessidade de utilização desse recurso excepcional, reservado como último instrumento de solução para o conflito surgido com a realização da conduta descrita como crime ou contravenção penal.
Por outro lado, de vez que a apreensão em flagrante fica sujeita ao controle jurisdicional, deve ser considerada sua legalidade, observando-se, ainda, o preenchimento dos requisitos formais do auto de apreensão. Neste aspecto, anote-se que a autoridade policial lavrará auto de apreensão em flagrante quando se tratar de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa, valendo-se, no que couber, das disposições constantes dos arts. 301 a 310 do CPP, de vez que aos procedimentos regulados no Estatuto aplicam-se subsidiariamente as normas previstas na legislação processual pertinente (art. 152). Assim, p. ex., à luz do art. 302 do CPP, somente poderá ser autuado em flagrante o adolescente surpreendido no cometimento do ato infracional ou acabando de cometê-Io (flagrante próprio), quando seja perseguido logo após seu cometimento, em situação que leve à presunção de que seja autor do fato (flagrante impróprio), ou quando seja encontrado, logo após o ato infracional, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir a autoria (flagrante presumido).
Designação de audiência de apresentação
Recebida a representação, exarando a autoridade judiciária decisão quanto à decretação ou manutenção da internação provisória, deve o magistrado designar audiência de apresentação do adolescente, ato assemelhado ao interrogatório do réu no processo penal. Não fixa o Estatuto da Criança e do Adolescente prazo para a realização desta audiência, sendo necessário, contudo, atentar para o fato de que, estando o adolescente internado, a conclusão do procedimento não poderá ultrapassar 45 dias.
Citação e notificação
Diz a lei que o adolescente e seus pais ou responsável serão cientificados do teor da representação, e notificados a comparecer à audiência, acompanhados de advogado (ECA, art. 184, § 1º).
Cientificação, como sinônimo de citação, sendo certo que esta última expressão, que foi utilizada na redação do art. 111, I, do ECA, deve ser entendida, neste procedimento de apuração, como o ato pelo qual se chama o adolescente a juízo para defender-se da atribuição de ato infracional, dando-lhe pleno e formal conhecimento do teor da representação.
Serve, ainda, para designar o chamamento a juízo dos pais ou responsável pelo adolescente a quem se atribua ato infracional, de sorte a que possam intervir no procedimento de apuração, pessoalmente, mediante oitiva quando da primeira audiência (ECA, art. 186, caput), ou por intermédio de advogado, em todos os atos do processo (ECA, art. 206).
A citação do adolescente e de seus pais ou responsáveis é sempre pessoal, inexistindo a possibilidade de citação por edital ou com hora certa. Não sendo localizado o adolescente, determina a lei o sobrestamento do feito, expedindo-se mandado de busca e apreensão (art. 184, § 3º). Quanto aos pais, observar-se-á o disposto no § 2Q do dispositivo sob análise (nomeação de curador especial).
Os pais ou responsável são chamados a juízo para acompanhar o processo do filho ou tutelado, de modo a prestar-lhe toda a assistência possível. Trata-se de atendimento à recomendação contida na Res. ONU-40/33, de 29.11.85 – Regras de Beijing, que prescreve, em sua regra 7.1, a necessidade de respeitar as garantias processuais básicas em todas as etapas do processo, como a presunção de inocência, o direito de ser informado das acusações, o direito de não responder, o direito à assistência judiciária, o direito à presença dos pais ou tutores, o direito à confrontação com testemunhas e a interrogá-Ias e o direito de apelação ante uma autoridade superior. A presença dos pais ou responsáveis também é reclamada pelo art. 40 da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada no Brasil pelo Dec. Legislativo 28, de 14.9.90. Se não forem localizados, frise-se, é mister a nomeação de umcurador especial, de sorte a que o adolescente tenha a assistência de um adulto, devendo a nomeação recair preferencialmente em pessoa da família do adolescente, e, não sendo possível, em advogado, que ficará encarregado de sua defesa no processo (cf. Cury, Garrido e Marçura, ECA Anotado, Ed. RT, 1991, nota 8 ao art. 184). Frise-se, ainda, que responsável, neste dispositivo, deve ser entendido como responsável legal, ou seja, guardião, curador ou tutor previamente nomeados.
O mandado de citação deve ser instruído, para atendimento às disposições constantes dos arts. 227, § 311, IV, da CF e 111, t, do Estatuto, com cópia da representação, quando esta for deduzi da por petição escrita; se oral, produzida em sessão presidida pela autoridade judiciária (ECA, art.182, § 2º), servirá .de contrafé cópia do termo de audiência.
Além de citados, adolescente, pais ou responsável devem ser devidamente notificados a comparecer à audiência de apresentação, devidamente acompanhados de advogado. A notificação constitui, neste caso, ordem judicial de comparecimento à audiência, decorrendo do desatendimento injustificado a condução coercitiva do adolescente (ECA, art. 187). Quanto aos pais ou responsável, a conseqüência será de ordem processual: precluirá o direito de serem ouvidos pela autoridade judiciária.
Sem prejuízo da citação, estando o adolescente internado, será requisitada sua apresentação, para a audiência, junto à autoridade administrativa responsável pela medida. Trata-se de ordem judiciária, cujo descumprimento pode importar crime de desobediência. É mister observar que a requisição também se dá sem prejuízo da citação e notificação dos pais ou responsável.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury