ECA: ARTIGO 18 / LIVRO 1 – TEMA: DEVER DE TODOS
Comentário de Deodato Rivera
Cientista Político/Brasília
Na hierarquia dos direitos que regulamenta, o Estatuto situa o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade imediatamente após o direito à vida e à saúde e antes dos direitos à convivência familiar e comunitária, à educação, cultura, esporte e lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho.
Essa ordem nada tem de acidental. Ela visa a colocar os dois primeiros direitos fundamentais como direitos-fins, para os quais os demais são direitos-meios.
De fato, a trilogia liberdade-respeito-dignidade é o cerne da doutrina da proteção integral, espírito e meta do Estatuto, e nesses três elementos cabe à dignidade a primazia, por ser o coroamento da construção ética estatutária.
Com efeito, se por um lado, os direitos-meios perdem sentido com a violação dos direitos-fins (vida sem dignidade é subvida), por outro lado, a liberdade e o respeito não são fins em si mesmos, pois sua referência é a dignidade: a criança e o adolescente devem gozar de liberdade e ser respeitados porque encarnam o valor supremo da dignidade – porque são ontologicamente seres dignos.
Assim, o art. 18 fecha de maneira bastante feliz o capítulo-chave do tít. 11 do Livro I, pois indica esse caráter primordial da dignidade como consubstancial à criança e ao adolescente, pessoas humanas em toda a plenitude, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, finalidade absolutamente prioritária, que se torna, por isso, dever de todos preservar (e esse todos, aqui, refere-se ao imperativo constitucional do art. 227: família, sociedade e Estado).
Esse caráter primordial da dignidade e sua função central na constelação valorativa da doutrina da proteção integral podem também ser avaliados pela preeminência que esse valor ocupa na Convenção sobre os direitos da criança (ONU, 1989), cujo preâmbulo faz referência logo nos dois primeiros parágrafos, ao fato de que a Carta das Nações Unidas fundamenta a liberdade, a justiça e a paz no mundo “no reconhecimento da dignidade inerente… de todos os membros da família humana”, “na dignidade e no valor da pessoa humana”.
Aliás, a própria formulação desse art. 18 demonstra sua perfeita sintonia com o princípio da dignidade inerente, pois diz ser “dever de todos” velar pela dignidade, indicando, assim, uma realidade intrínseca que se deve proteger, não uma qualidade a ser construída de fora para dentro da criança ou do adolescente.
Já, a parte instrumental do artigo (“pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”) revela, também, tanto o caráter central desse capítulo com relação à doutrina e à hierarquia de direitos como o caráter central da dignidade nessa trilogia valorativa. Ela retoma a parte instrumental do seminal art. 227 da CF de 1988, que diz: “…além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Neste sentido, os adjetivos “desumano”, “aterrorizante”, “vexatório” e “constrangedor” visam a qualificar melhor o tratamento que viola o direito à dignidade, especificando as categorias constitucionais de “crueldade” e “opressão” (art. 227 da CF), que se situam em um nível mais elevado de abstração.
Assim, não é exagerado dizer que o legislador brasileiro situou neste art. 18 do Estatuto o ponto fulcral da doutrina da proteção integral, cujo fundamento está precisamente nessa “dignidade inerente” que as pessoas em desenvolvimento partilham com todas as demais pessoas humanas.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
ARTIGO 18/LIVRO 1 – TEMA: DEVER DE TODOS
Comentário de João Benedito de Azevedo Marques
Secretário de Assuntos Penetenciários/São Paulo
O dispositivo acima reproduz princípios constantes da Declaração Universal dos Direitos da Criança, das Regras Mínimas da ONU para a Administração da Justiça de Menores e da Convenção sobre os Direitos da Criança, sendo que não constava, expressamente, do antigo Código de Menores (Lei 6.697/79), que, entretanto, tinha uma regra interpretativa protetora de caráter geral, representada pelo art. 5°, que dispunha “Na aplicação desta Lei a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado”.
E forçoso reconhecer, contudo, que a regra do art. 18 é específica, repetindo a norma do art. 227 da CF, que reconheceu um direito à dignidade da criança e do adolescente e veio a preencher uma lacuna, protegendo o menor de “qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”, sendo, por isso, um notável avanço, pois demonstra claramente a preocupação do legislador quanto à necessidade de se defender o status dignitatis do menor.
Este direito à dignidade é expresso em vários dispositivos da nova lei, tais como os arts. 22, 53, 208, 232, 233, 240 e 241, entre outros (estas normas, de caráter sancionador ou não, visam sempre à proteção da pessoa da criança e do adolescente).
O desrespeito ao direito à dignidade da criança e do adolescente poderá dar margem a ações civis públicas, que serão propostas pelo Ministério Público, que tem a incumbência de zelar por estes direitos (art. 201, VIII), ou aos crimes previstos no Estatuto.
A sociedade brasileira, ao longo do tempo, nunca respeitou o direito à dignidade de milhões de crianças e adolescentes marginalizados, que são discriminados, social e economicamente, desde a gestação, passando pela infância e adolescência, continuando pela idade adulta e terminando, muitas vezes, na morte violenta ou decorrente de subnutrição.
Toda esta situação leva-nos a afirmar que o menor, antes de ser infrator ou abandonado, é vítima de uma sociedade de consumo, hipócrita, desumana e cruel.
Por isso, é preciso que os dispositivos constitucionais e os princípios protetores da nova lei sejam traduzidos numa nova sociedade, em que se respeite a dignidade da pessoa. E, para esta luta, importante papel caberá, sem dúvida, ao Ministério Público.
Esta é a razão pela qual há necessidade de se investir na criança e no adolescente, como bem lembra Veillard Cybulski, quando diz: “… a proteção do adolescente que é infrator, inadaptado ou em perigo moral representa um investimento análogo ao investimento com a educação. O capital fundamental de uma nação é a população adolescente, da qual depende a sua sobrevivência e prosperidade. Uma juventude sadia, instruída e bem educada, preparada para a idade adulta e integrada na vida da nação, é um investimento preferencial” (International Review of Crirlf,inal Policy, 1966).
Entre nós, o grande mestre Jason Albergaria ensina que: “… o investimento na educação da criança e do adolescente é de alta rentabilidade a longo prazo, porque determinará a promoção humana da criança e do adolescente e, conseqüentemente, o progresso ou avanço ético da própria sociedade” (Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente).
É importante salientar que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente. Esta função não se limita aos pais e aos responsáveis legais, estendendo-se a qualquer pessoa que tenha conhecimento de algum abuso ou desrespeito à dignidade da criança e do adolescente, devendo comunicá-la ao Ministério Público, que tem a obrigação legal de propor as medidas judiciais e extrajudiciais necessárias.
A intenção do legislador foi, na verdade, co-responsabilizar toda a sociedade por este direito da criança e do adolescente quando usou a expressão “é dever de todos…”.
O respeito a este direito está vinculado à sobrevivência do regime democrático.
A Democracia é uma forma de governo de participação e igualdade de direitos e é incompatível com a miséria absoluta, que ofende o status dignitatis da criança brasileira.
Se não houver mudanças sensíveis no atual quadro social e econômico, estaremos sendo co-autores de um verdadeiro genocídio praticado contra milhões de menores marginalizados, submetidos diariamente a tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, nas ruas, nas escolas, no trabalho e nas famílias.
O princípio contido na norma é programático, vela pela dignidade da criança e do adolescente, impedindo, por isso, qualquer tratamento antiético, nas formas discriminadas no art. 18, e implica a construção de um novo País.
A norma legal existe e sua aplicação depende da mobilização de toda a sociedade, da vontade política do governo e da atuação do Ministério Público, incumbido de zelar pelo efetivo cumprimento da mesma junto à Justiça da Infância e da Juventude.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury