ECA: ARTIGO 198 / LIVRO 2 – TEMA: ATO INFRACONAL
Comentário de Nélson Nery Júnior
Ministério Público/São Paulo – PUC/SP
O sistema recursal do Código de Processo Civil aplica-se inteiramente aos procedimentos e processos da competência da Justiça da Infância e da Juventude, exceto no que estiver regulado no Estatuto de forma incompatível com o Código. Nesse caso prevalece a disposição especial do Estatuto sobre a geral do Código processual.
O art. 188 do CPC, que confere prazo em dobro para o Ministério Público e a Fazenda Pública recorrerem, é aplicável aos procedimentos do Estatuto, porque integram o “Sistema recursal”do Código de Processo Civil. Isto porque expressamente se referem à interposição de recurso por aquelas entidades com a prerrogativa do prazo em dobro, Como o caput do artigo ora comentado fala na aplicação o sistema recursal do código de Processo Civil, entendemos incidir essa regra (em sentido contrário Cury Garrido e Marçura, Estatuto… cit., anotação 7 ao art. 198, p. 106, com ‘o argumento de que faltaria disposição expressa no Estatuto autorizando a incidência dessa prerrogativa processual).
Da mesma forma são cabíveis o agravo retido e o recurso adesivo, que são nada mais do que formas de interposição de recursos no sistema do Código de processo civil Discutimos o problema na introdução acima, para onde remetemos o leitor.
Como uma forma de agilizar os procedimentos na Justiça da Infância e da Juventude e, também, como manifestação prática da garantia do acesso à Justiça, o Estatuto isenta de custas e emolumentos as ações e procedimentos ajuizados com base nele (art. 141, § 211), daí decorrendo, logicamente, a isenção das custas recursais (preparo) (Cury, Garrido e Marçura, Estatuto… cit., anotação 5 ao art. 198, p. 106). Esta é a razão pela qual o preparo não é requisito de admissibilidade dos recursos na Justiça da Infância e da Juventude, onde, por conseqüência, inexiste o fenômeno da deserção.
O inc. II do art. 198 do Estatuto unificou os prazos recursais, pretendendo facilitar o procedimento, mas, na verdade, apenas reduziu o prazo de interposição da apelação e dos embargos infringentes. Somente estes dois recursos deverão ser interpostos no prazo de 10 dias. Os embargos de declaração contra acórdão e o agravo serão interpostos no prazo de 5 dias (arts. 522 e 536 do CPC) e os embargos de declaração contra decisão Interlocutória no primeiro grau e sentença, em 48 horas (art. 465 do CPC).
Tanto o recurso ordinário constitucional quanto os recursos extraordinário e especial deverão ser interpostos no prazo de 15 dias, assinado pelos arts. 33 e 26 da Lei 8.038/90, respectivamente. Essas normas, por serem especiais, prevalecem sobre a regra geral sobre prazos recursais prevista no Estatuto.
Quanto à ordem dos processos no tribunal, o Estatuto repetiu a regra do art. 117 do revogado Código de Menores (Lei 6.697/79), conferindo preferência absoluta aos recursos oriundos da Justiça da Infância e da juventude sobre os outros que estejam afetos ao órgão competente para julgá-los, que, no Estado de São Paulo, é a Câmara Especial do Tribunal de Justiça (RT 643/46. No mesmo sentido Paulo Lúcio Nogueira, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, São Paulo, 1991, p. 263).
A dispensa de revisor, que, no sistema do Código de Processo Civil somente alcança as apelações e agravos no procedimento sumaríssimo os embargos de declaração (art. 551, caput e § 311),aqui ocorre em todo e qualquer caso, inclusive nos recursos para os Tribunais federais superiores (ordinário, extraordinário e especial). Tratando-se de recurso nos processos e procedimentos da Justiça da infância e da Juventude, não haverá revisor.
É preciso que se diga que o agravo, uma vez interposto, deve ser necessariamente recebido pelo juízo a quo, que o mandará processar. A regra do art. 528 do CPC é cogente, impondo o recebimento do agravo no primeiro grau de jurisdição. Não há discricionariedade para o magistrado, pois não lhe assiste opção de receber ou não receber o recurso, conforme entenda estarem ou não preenchidos os requisitos de admissibilidade estatuídos no Código de Processo Civil. Somente ao órgão competente para proferir, definitivamente, o juízo de admissibilidade do agravo (que é o tribunal ad quem) é que cabe não conhecer do recurso, se ausente um dos requisitos de admissibilidade exigidos para a interposição do agravo. Anote-se, ainda, que, como o preparo dos recursos não é mais exigido na Justiça da infância e da Juventude, não se apresenta o problema de o juiz poder aplicar a pena de deserção e negar seguimento ao agravo.
A indicação, pelo agravado, de peças a serem trasladadas deve ser simultânea ao oferecimento de contraminuta recursal, abreviando-se o tempo utilizado para isso no sistema do Código de Processo Civil. A medida é salutar e agiliza o procedimento do agravo.
Depois de deferida a formação do instrumento e aberta oportunidade ao agravado para oferecer contraminuta e indicar peças para o traslado, o inc. V do artigo sob análise, que tem como destinatário o escrivão ou diretor de secretaria, determina seja completado o instrumento e concertado o traslado no prazo de 48 horas. Ao escrivão é atribuída a tarefa de trasladar cópias das peças obrigatórias, que são a decisão recorrida, a certidão da intimação (para comprovar a tempestividade) e a procuração dos advogados do recorrente e recorrido (art. 523, parágrafo único, do CPC) – tarefa, essa, que deve ser controlada e fiscalizada pelo juiz a quo. Sendo do escrivão essa atribuição, não é lícito ao tribunal apenar o agravante com o não conhecimento do recurso por formação deficiente do instrumento. Faltando uma das peças de traslado obrigatório, o tribunal ad quem deve, de ofício, requisitar do cartório ou secretaria as peças obrigatórias faltantes para que se possa proferir o juízo de admissibilidade do recurso de agravo.
Pelo efeito devolutivo, o recurso devolve ao conhecimento do órgão ad quem, destinatário do recurso, todo o conhecimento da matéria impugnada e mais as questões de ordem Publica, que não Necessitam de arguição pelas partes ou interessados. para que delas tome conhecimento o tribunal. O órgão ad quem, por assim dizer, reexamina a matéria que lhe foi submetida pela interposição do recurso. Todos os recursos têm, por conseqüência, o efeito devolutivo, pois seu objetivo é justamente o reexame, pelo órgão destinatário, da matéria objeto da impugnação.
O que se suspende com o efeito suspensivo dado ao recurso é a eficácia do comando que emerge da decisão recorrida, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão. A execução da decisão recorrida fica sobrestada até o julgamento do recurso recebido n,o efeito suspensivo.
Relativamente aos efeitos em que são recebidos os recursos, dois são os regimes do Estatuto: a) para as ações individuais, onde a pretensão deduzida seja de direitos individuais, a regra é de que a apelação, o agravo, o recurso ordinário, o recurso especial e o recurso extraordinário sejam recebidos apenas no efeito devolutivo. Somente os embargos de declaração, os embargos infringentes, a apelação contra sentença que deferir adoção por estrangeiro e a apelação, sempre que houver perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, têm efeitos suspensivo e devolutivo; b) para as ações coletivas, vale dizer, ações civis públicas, onde a pretensão deduzida seja de direitos e interesses difusos ou coletivos, a regra é a mesma do item anterior, podendo o juiz, entretanto, conferir efeito suspensivo a todo e qualquer recurso, para evitar dano irreparável à parte (art. 215 do Estatuto).
Nas hipóteses de ação individual fundada no Estatuto, o juiz não pode conferir efeito suspensivo ao recurso que o não tem, cabendo-lhe, tão-somente, dar efeito suspensivo à apelação nas duas hipóteses legais: deferimento de adoção por estrangeiro e quando houver perigo de dano irreparável ou de difícil reparação. Ao passo que, tratando-se de ação coletiva, poderá fazê-lo em todos os recursos, desde que haja potencial idade de ano a parte. Para saber-se qual a natureza da pretensão deduzida em juízo, se individual, coletiva ou difusa, deve atentar-se não para a matéria (criança e adolescente, consumidor, meio ambiente etc.), mas, sim, para o pedido que é submetido ao crivo do Poder ,Judiciário. O pedido de adoção feito por casal estrangeiro, p. ex., caracteriza afirmação de direito individual, ao passo que o pedido do Ministério Público de condenação do Estado na prestação de obrigação de fazer – ensino obrigatório à criança (art. 208, I, do Estatuto) – indica afirmação de direito difuso. A ação do Ministério Público visando à melhoria das condições do ensino de determinado estabelecimento para as crianças e adolescentes que ali estudam, a seu turno, revela pretensão de direito coletivo, que beneficiaria apenas o grupo de crianças e adolescentes que se encontram matriculados naquele estabelecimento (para uma visão mais larga sobre os conceitos de direito individual, individual homogêneo, coletivo e difuso, definidos no art. 81 do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078, de 12.9.90 – v. Nélson Nery Jr., Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto cit., pp. 622-631. No mesmo sentido Kazuo Watanabe, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto cit., pp. 501 e 502 e 505-512; Ada Pellegrini Grinover, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto cit., pp. 538-545. V, ainda, Rodolfo de Camargo Mancuso, Comentários ao Código de Proteção do consumidor, São Paulo, 1991, pp. 272-279).
Como regra, o agravo deve ser recebido apenas no efeito devolutivo, conforme determina o art. 497 do CPC. A apelação tem, de ordinário, apenas efeito devolutivo, segundo a norma sob comentário. Os recursos especial e extraordinário comportam recebimento somente no efeito devolutivo, segundo expressa determinação do art. 27, § 2°,da Lei 8.038/90.
Quanto ao recurso ordinário constitucional, o art. 33 da Lei 8.038/90 manda que a ele sejam aplicadas as regras da apelação do Código de Processo Civil. Como a apelação, no sistema do Estatuto, tem como regra geral seu recebimento apenas no efeito devolutivo, entendemos deva aplicar- se essa regra ao recurso ordinário constitucional. Conseqüentemente, o recurso ordinário será recebido apenas no efeito devolutivo.
O duplo efeito – devolutivo e suspensivo – será atribuído aos recursos de embargos de declaração, embargos infringentes, apelação e recurso ordinário, estes dois últimos se presentes os requisitos exigidos para tanto, pela norma ora examinada. ‘;
Quando se tratar de apelação contra sentença que deferir adoção da criança ou adolescente por estrangeiro, o juiz deverá conferir-lhe efeito também suspensivo. A norma é cogente, não comportando outra interpretação que não a de que a apelação, nesse caso, tem, obrigatoriamente, o efeito suspensivo.
Interposto o recurso de apelação em hipótese diversa da acima examinada, o juiz também deverá conferir-lhe efeito suspensivo se houver perigo de dano irreparável ou de difícil reparação. Não se trata de poder dis-cricionário do juiz, como a primeira vista se poderia supor, mas, sim, de ato vinculado do magistrado á hipótese descrita pela lei.
Existe discricionariedade judicial sempre que a lei colocar a disposição do magistrados dois ou mais caminhos igualmente lícitos, para que opte por um deles. É o caso, p ex., do art. 228, parágrafo único, do estatuto, que tipifica crime culposo e confere ao juiz a possibilidade de aplicar pena privativa de liberdade ou de multa. Qualquer caminho que tome o juiz, desde que fundamente as razões de sua opção, é válido.
No caso sob exame não existe essa possibilidade de alternativa, pois a norma atribui à apelação efeito suspensivo sempre que houver perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.
Trata-se, isto, sim, de integração, pela autoridade judiciária, de conceito jurídico indeterminado, consubstanciado na avaliação da existênciado”perigo de dano irreparável ou de difícil reparação”. O magistrado podeinterpretar os fatos como não caracterizando perigo de dano irreparável enão conferir à apelação efeito suspensivo. Mas, se estiver presente essacircunstância, vale dizer, se demonstrada a existência do perigo de danoirreparável ou de difícil reparação, a imposição do efeito suspensivo à apelaçãoé de rigor (sobre a doutrina dos conceitos jurídicos indeterminados e do ato discricionário, v. Ernst Forsthoff, Lehrbuch des Verwaltungsrechts, Joa ed., I/85 e S9.,Munique, 1973, § 511).
O Estatuto trouxe sensível inovação ao sistema recursal ao permitir. Que o juiz possa retratar-se da sentença, ao examinar as razões de apelação. No regime do Código de Processo Civil o juízo de retratação existe apenas para o recurso de agravo, podendo o juiz reformar a decisão agravada. No sistema do Código, proferida a sentença, o juiz cumpre e acaba seu ofício Jurisdicional,não podendo modificá-la, salvo para correção de erros materiais ou de provimento de embargos de declaração (arts. 463 e 464 do CPC).
Não obstante a norma falar em “despacho” fundamentado, o ato do JUIZ que mantém ou reforma a decisão interlocutória ou a sentença não é despacho. Pode caracterizar-se como nova decisão interlocutória ou nova sentença, caso resolva questão incidente ou extinga o processo, respecti- vamente. Isto porque sempre haverá conteúdo decisório nesse novo ato Judicial, ainda que simplesmente mantenha a decisão anterior, pois, nesse caso, o magistrado, após apreciar as razões e contra-razões do recurso de relação ou agravo, convenceu-se do acerto da decisão recorrida e, decidindo o mérito do recurso (provisoriamente e de forma diferida), proferiu nova decisão, mantendo a recorrida.
A inovação do Estatuto está na possibilidade de subida dos autos principais, tratando-se de apelação, pois no sistema do Código de Menores revogado havia quem entendesse caber recurso de instrumento contra as sentenças, que ensejava a subida do instrumento, e não dos autos principais (Cury, Garrido e Marçura, Estatuto… cit., anotação 13 ao art. 198, p. 107. Admitindo apelação contra determinadas sentenças no regime do Código de Menores revogado, Ana Lúcia Mutti de Oliveira Sanseverino, “Recursos no Código de Menores” cit., pp. 77 e ss.).
A fim de que seja observado o princípio constitucional do contraditório, somente depois de aberta ao apelado a oportunidade de oferecer contra- razões de apelação é que o juiz poderá rever e reformar a sentença recorrida.
Recebido o recurso de apelação, o juiz mandará processá-lo, facultando ao recorrido que apresente resposta. A supressão dessa oportunidade ao recorrido acarreta ofensa ao dogma constitucional do contraditório, pois o juiz só poderá reformar a sentença apelada depois de ouvir também as contrarrazões do apelado. O prazo dado pela lei ao juiz para que profira a nova decisão é impróprio, pois seu desatendimento não acarreta nenhuma sanção de ordem processual, nem para o juiz, nem para as partes. Poderá, conforme o caso, configurar infração administrativa, e, se causar dano à parte, ensejar pedido de indenização em face da Administração Pública (art. 37, § 6J1,da CF).
Caso o juízo de retratação seja negativo, com o magistrado a quo mantendo a decisão ou sentença recorrida, os autos principais ou o instrumento deverão ser remetidos, sem mais delongas, em 24 horas, à superior instância. Essa remessa independe de pedido do recorrente, devendo ser realizada ex officio pelo escrivão ou diretor de secretaria.
Caso seja positivo o juízo de retratação, com a reforma da decisão ou sentença recorrida, somente se houver pedido expresso da parte ou do Ministério Público é que os autos principais ou o instrumento serão remetidos ao órgão ad quem. Esse pedido deverá ser feito pelo interessado no
prazo de cinco dias, contados da data da intimação da nova decisão. Para a contagem desse prazo utiliza-se a regra geral do art. 184 do CPC: exclui- se o dia da intimação e inclui-se o dia do final do prazo. Os prazos somente se iniciam em dia útil. Assim, se a intimação se deu numa sexta feira ou num sábado, o dies a quo do prazo é a segunda-feira, dia útil imediato
ao da intimação.
No caso de o apelante pedir, nas razões de recurso, a anulação do processo por vício insanável, p. ex., e obter sucesso com a prolação de juízo de retratação positivo, o juiz, ao anular a sentença, estará proferindo nova decisão de cunho interlocutório, pois não terá colocado termo ao processo, mas, sim, resolvido questão incidente, provocando a continuação do procedimento. Se o apelado requerer a subida do recurso ao tribunal, conforme exige o inciso ora comentado, estará, na verdade, interpondo novo recurso de agravo, devendo, destarte, ser formado instrumento com as peças indispensáveis e outras cujo traslado tenha sido requerido pelas partes, para que este efetivamente seja remetido ao tribunal ad quem, por que os autos principais deverão permanecer no juízo de primeiro grau, a fim de que o processo possa ter andamento normal.
Para que essa providência se materialize deve abrir-se oportunidade para que o novo agravante (ex-apelado) e o ex-apelante (ora agravado) indiquem as peças que entendam para a formação do instrumento do agravo.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury