ARTIGO 20/LIVRO 1 – TEMA: FILIAÇÃO
Comentário de Giságlio Cerqueira Filho
Pontifícia universidade Católica/Rio de Janeiro
Os direitos relativos à filiação têm uma história odiosa de discriminação.
Tais direitos referem-se ao conhecimento e reconhecimento das figuras de pai e mãe, especialmente o nome do pai, pela sua função de interdição simbólica que nos foi retratada por S. Freud na alusão ao teatro de Sófocles com a peça Édipo-rei,. Trata-se de uma via de mão dupla: do pai/ da mãe para o filho/a filha; do filho/da filha para o pai/ a mãe.
Podemos dizer que estes direitos estiveram por longos anos submetidos aos interesses da propriedade, vinculados à questão da herança e ao poder do homem sobre a mulher, estabelecido historicamente com a monogamia. Não se pode pensar o nome do pai independente do reconhecimento do filho por parte do pai. Tal pai, tal filho, e vice-versa.
O reconhecimento do filho/da filha pelo pai foi função histórica dos interesses da propriedade, de herança, do poder do macho e da monogamia. As contradições insolúveis impostas pelo adultério no que se refere aos direitos de paternidade e de filiação foram canhestramente resolvidas pelo Código Napoleônico, no seu art. 312: “L’enfant conçu pendant le mariage a pour pere le mari” (“O filho concebido durante o matrimônio tem por pai o marido”).
Daí para a discriminação seguinte foi um passo: as expressões filho legítimo (nascido durante o casamento) e filho natural (nascido fora do casamento) passaram a nomear sentimentos de ódio, rivalidade, desqualificação e discriminação. Os filhos por adoção carregavam dupla discriminação, porque excluídos da naturalidade e da legitimidade das relações entre homem e mulher.
Se recordamos tais designações discriminatórias e odiosas é para não mais reificá-las, pois sabemos que o desconhecimento da história nos condena a repeti-la como farsa sem que a tragédia tenha sido afastada.
Em boa hora o Estatuto da Criança e do Adolescente consagra direitos equânimes aos filhos e filhas havidos ou não da relação do casamento ou por adoção; proibindo-se quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. As mesmas adjetivações e qualificações simbólicas têm correspondência nos mesmos direitos relativos à filiação.
Podemos, mesmo, dizer que a constituição plena da subjetivação humana está diretamente relacionada ao (re)conhecimento e pronúncia do nome do pai; o que só pode ser feito a partir do lugar de filho. Lugar singular de filho conferido pela significância paterna.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
ARTIGO 20/LIVRO 1 – TEMA: FILIAÇÃO
Comentário de Sílvio Rodrigues
universidade de São Paulo
Obs. 1: O inciso em comentário é a cópia literal do § 6Q do art. 227 da CF de 1988. Ele constitui o ponto final de uma evolução do Direito Privado brasileiro em matéria de filiação. Embora me preocupe a questão de brevidade, não posso furtar-me da oportunidade de analisar, sucintamente, o histórico dessa evolução, a partir da entrada em vigor do Código Civil (1.1.1917) até o desenlace final em nossos dias.
Obs. 2: Ao ser promulgado o Código Civil, distinguiam-se os filhos legítimos e ilegítimos, sendo os primeiros nascidos de justas núpcias; os demais, fora do casamento. Dentre os ilegítimos havia os naturais e os espúrios. Aqueles eram os filhos de pessoas não casadas entre si, mas que não estavam impedidos de fazê-lo, por inexistir entre elas qualquer impedimento absolutamente dirimente.
Obs. 3: Espúrios eram os concebidos no adultério, ou entre parentes em grau que os proibia de se casarem. Os primeiros eram chamados adulterinos, e incestuosos os segundos. O art.358 do CC de 1916 declarava que eles não podiam ser reconhecidos.
Obs. 4: O legislador tratava com uma certa complacência o filho natural, permitindo-lhe o reconhecimento espontâneo e o forçado (CC de 1916, art. 363). Aliás, no mais das vezes, herdava ele tudo que seu irmão legítimo herdasse (CC de 1916, art. 1.605). Entretanto, como vimos, o legislador discriminava impiedosamente contra o espúrio.
Obs. 5: Como é sabido, o reconhecimento, espontâneo ou forçado, do filho ilegítimo é a circunstância que estabelece, no campo do Direito, o parentesco entre o pai e sua prole. Sem o reconhecimento o filho não é considerado parente do pai, não está sujeito a pátrio poder, não tem direitos sucessórios, nem alimentícios etc. São, em face da lei, dois estranhos.
Obs. 6: A primeira tentativa de minorar a condição dos espúrios (provocada, inclusive, pela pressão da enorme quantidade de filhos de desquitados, por muitos considerados adulterinos) ocorreu com a Lei 4.732/42, ao depois substituída pela Lei 883/49.
Obs. 7: A Lei 883/49 trouxe várias inovações, entre as quais: a) permitiu o reconhecimento do adulterino, ou conferiu-lhe ação de investigação de paternidade após a dissolução do casamento de seu progenitor adúltero; b) concedeu-lhe metade da herança do que coubesse a seus irmãos não espúrios; c) facultou-lhe, desde logo, a propositura de ação de investigação de sua paternidade contra o progenitor adúltero apenas para o fim de obter alimentos. Neste caso, o processo correria em segredo de justiça e alimentos provisórios só seriam concedidos após sentença favorável ao adulterino na instância inicial.
Obs. 8: A Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) abriu enormemente as portas da igualdade, ao proclamar a igualdade de filiação para efeito sucessório. Dizia o texto: “Qualquer que seja a natureza da filiação, o direito à sucessão será reconhecido em igualdade de condições”.
Note-se que a igualdade, abrangendo todos os espúrios, inclusive os incestuosos, se restringia ao campo sucessório. E mais. Dúvida importante remanesceu a respeito de haver ou não a Lei do Divórcio abrangido os filhos adotivos. A tese negativa sempre me pareceu a preferível, porque a Lei 6.515/77, que, em seu derradeiro dispositivo, revogou (mencionando-os) cerca de 15 artigos do Código Civil de 1916, silenciou a respeito do art. 377 desse diploma. Ora, tal art. 377 justamente proclamava o não envolvimento de sucessão hereditária quando o adotante, no momento da adoção, já tivesse filhos legítimos. Acredito, assim, que a Lei do Divórcio não alterara esse dispositivo.
Obs. 9: O passo final na longa caminhada para a igualdade dos filhos de qualquer natureza ocorreu com o advento da CF de 1988, art. 227, § 6°. O texto em comentário é repetição literal desse dispositivo constitucional.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
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