ARTIGO 212/LIVRO 2 – TEMA: INTERESSES INDIVIDUAIS, DIFUSOS E COLETIVOS
Comentário de ADA PELLEGRINI GRINOVER
Universidade de São Paulo
1. A efetividade do processo
O caput do dispositivo, como tantos outros, inspira-se no art. 83 do Código de Defesa do Consumidor, que tem a seguinte redação: “Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”. Embora o texto do Estatuto não seja tão incisivo quanto o de sua fonte, seu sentido é o mesmo: a efetividade da tutela jurídica processual de todos os direitos e interesses consagrados no Estatuto. Tanto assim que o artigo seguinte, que disciplina a ação que visa ao cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, nada mais é do que uma complementação do art. 201.
O dispositivo ora em exame significa, em última análise, que o sistema processual há de ser interpretado de modo a autorizar a conclusão de que nele existe sempre uma ação capaz de propiciar, por um provimento adequado, a tutela efetiva e concreta de todos os direitos materiais.
Aliás, o art. 75 do CC (“A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura”) poderia ‘ter recebido a mesma interpretação, não fosse a intransigência da doutrina processual, preocupada, à época, em afirmar a autonomia do processo. Como observou Barbosa Moreira (“Notas sobre o problema da efetividade do processo”, in Temas de Direito Processual, III Série, São Paulo, Saraiva, 1984, p. 32), bastaria substituir ao termo “direito” o de “afirmação de direito”, para retirar-se do dispositivo a conotação imanentista, devolvendo-lhe seu sentido maior.
Nessa linha interpretativa, aderente às novas tendências do Direito Processual, é evidente que o ordenamento deve propiciar as espécies de procedimentos e os tipos de provimentos adequados a assegurar efetivamente a tutela dos direitos materiais. O que, aliás, decorre do próprio princípio constitucional da proteção judiciária (art. 5º, XXXV, da CF), que não somente garante o acesso formal aos órgãos judiciários mas, também, assegura a tutela contra qualquer forma de denegação de justiça (Ada Pellegrini Grinover, As Garantias Constitucionais do Direito de Ação, São Paulo, Ed. RT, 1975, pp. 153-158 e passim; Kazuo Watanabe, Controle. Jurisdicional e Mandado de Segurança contra Atos Judiciais, São Paulo, Ed. RT, 1980, pp. 28-37).
É nesse sentido que deve ser interpretado o art. 212, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente. E, combinando-o com o art. 213, vê-se que o Estatuto consagra o instituto da ação mandamental, de eficácia bastante assemelhada à da injunction do sistema de common law, e à “ação inibitória” do Direito italiano: a ação mandamental, como as executivas “lato sensu “, não reclama um processo de execução ex intervallo, pois é o próprio juiz que, através de expedição de ordens, e até pela realização de atos materiais por ele mesmo, faz com que o comando da sentença seja efetivado de forma específica (v. Kazuo Watanabe, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado, Rio, Forense Universitária, 1991, pp. 524-526). Ver também infra, comentários ao art. 213.
2. Aplicação subsidiária do Código de Processo Civil
Melhor fora se a norma do § 1º do art. 212, que é de encerramento, tivesse sua sede no final do capo VII, como, aliás, o legislador fez quanto à aplicação subsidiária da Lei 7.347, de 24.7.85 (Lei da Ação Civil Pública), a que se refere exatamente o art. 224 do Estatuto.
E isso porque, como acima se viu, a correta interpretação da cabeça do dispositivo amplia o arsenal dos procedimentos e dos provimentos previstos no Código de Processo Civil, consoante, aliás, se pode verificar pela ação que tem por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer (art. 213 do próprio Estatuto) e pela aplicabilidade, às ações em defesa da criança e do adolescente, das disposições da Lei 7.347/85 (art. 224 do ECA).
A esse propósito, releva notar que o novo art. 21 da Lei 7.347/85, introduzido pelo art. 117 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11.11.90), determina a aplicabilidade de todas as normas processuais do referido Código à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, tutelados pela Lei da Ação Civil Pública. Assim, combinando-se o’ art. 224 do Estatuto da Criança e do Adolescente com o art. 21 da Lei 7.347/85, todas as disposições processuais do Código de Defesa do Consumidor encontram aplicação aos direitos e interesses da criança e do adolescente. Diga-se, mais: ainda que o Estatuto não contivesse a norma do art. 224, a Lei 7.347/85 – incluindo todas as disposições processuais do Código de Defesa do Consumidor – aplicar-se-ia automaticamente aos direitos e interesses tutelados pelo Estatuto, uma vez que o âmbito da lei da Ação Civil Pública foi estendido a qualquer outro interesse difuso e coletivo (novo inc. IV do art. 1° da Lei 7.347, acrescentado pelo art. 110 do Código de Defesa do Consumidor).
Por tudo isso, o disposto no § I º do art. 2 I 2 do Estatuto não tem o sentido restritivo que a leitura desavisada da norma poderia sugerir.
3. Ação manda mental e mandado de segurança
O § 2° do art. 212, infelizmente, nada acrescenta ao inc. LXIX do art. 5º da Cf, identificando-se a ação mandamental do Estatuto, em tudo e por tudo, com o mandado de segurança previsto na Constituição.
Na verdade, o legislador do Estatuto não quis ousar, como haviam feito os autores dos diversos projetos legislativos que culminaram no Código de Defesa do Consumidor: neste’, o art. 85 (que foi vetado) previa uma ação mandamental, regida pelas normas da lei do Mandado de Segurança, contra atos ilegais ou abusivos de pessoas físicas ou jurídicas que lesassem direito líquido e certo previsto no Código. Criava-se, com isso, uma nova ação mandamental contra a conduta de particulares, assemelhada ao mandado de segurança.
Não cabe, nesta sede, apontar as poderosas razões que justificam a adoção do mandado de segurança contra atos de particulares, ligadas à visão da necessidade de uma maior efetividade do processo (v. supra, comentário ao caput do art. 2 I 2). Nem interessa, agora, realçar que a doutrina processual mais avançada vem preconizando a urgente criação de ações mais ágeis para a tutela das relações jurídicas entre particulares, principalmente quando se trate de relações de natureza não patrimonial (Y. Barbosa Moreira, “Notas sobre o problema … ” cit., p. 41; Kazuo Watanabe, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. .. cit., pp. 530-532).
O que vale dizer é que, com o veto ao art. 85 do Código de Defesa do Consumidor e com a redação do art. 212, § 2º, do Estatuto, ainda não foi possível atingir esse desideratum.
O dispositivo do Estatuto é inócuo, limitando-se a repetir o que já existe na norma auto-aplicável da Constituição e sendo evidente que ao mandado de segurança se aplicam as disposições da Lei 1.533/51, com as alterações posteriores.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury