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ECA: ARTIGO 225 / LIVRO 2 – TEMA: Dos Crimes

Comentário de Felício Pontes Junior
Rio de Janeiro

A aparente liberdade formal, atribuída ao legislador, de criar figuras criminais é limitada, sob pena de não haver adequação cultural da norma, pelo conflito fato-valor, onde o Direito se atualiza cotidianamente de for­ma espontânea e imediata.

A elaboração normativa assenta-se, portanto, na experiência concreta do Direito, seja para refletir e objetivar de forma certa e segura o que se apresenta na vida comum, seja para completar e até mesmo ordenar essa experiência, corrigindo-a de conformidade com os valores que não haviam sido percebidos, mas cuja necessidade se impõe em vista da exigência da sociedade, que, no caso em tela, já havia sido manifestada com a inclusão da prioridade absoluta como cânone constitucional (art. 227).

A ação humana está sujeita a dois aspectos distintos de valor: segun­do o resultado que produz e, independente do resultado, segundo o senti­do da atividade em si mesma. Ambas com significado para o Direito Pe­nal, que persegue amparar certos bens da sociedade – chamados bens jurí­dicos determinando, em caso de lesão, conseqüências jurídicas (desva­lor do resultado) para assegurar a vigência dos valores ético-sociais.

Assim, as normas penais, no magistério de João Mestieri, são aquelas que definem “as infrações penais, as penas e medidas de segurança, e prin­cípios gerais referentes ao delito, ao delinqüente e à própria reação crimi­nal” (“A norma do Direito Criminal”, in A Norma Jurídica, Rio, Freitas Bastos, 1980, p. 149). Revelam ações paradigmáticas, cujas partes se in­tegram e apenas ganham significado no todo.

A evolução social cria novas relações que são regulamentadas atra­vés de novos diplomas legais e têm como corolário dispositivos de natureza penal para sancionar condutas mais graves, capazes de causar dano ou expor a perigo bens e interesses considerados mais relevantes. Ao legisla­dor estatutário competia construir objetivações normativas que estivessem em correspondência com o modo de ser e de sentir da sociedade hodiema. Impôs-se, assim, que condutas contra crianças e adolescentes viessem a ser consideradas como ilícitos penais.

As disposições penais analisadas nas linhas que se seguirão constituem normas especiais, as quais, em confronto com as demais normas penais extravagantes e codificadas, geram concurso aparente de tipos, que con­siste “na existência de dois ou mais tipos penais que aparentemente per­mitem a integração da matéria” (João Mestieri, Teoria Elementar do Di­reito Criminal, Rio, 1. Di Giorgio, 1990, p. 315. Há autores que preferem a expressão “concurso aparente de normas”). Ele é resolvido, in casu, pela especificação, vale dizer, pela existência “de um ou mais elementos dafat­tispecie que especializam a integração em um tipo específico e não em um outro genérico” (João Mestieri, Teoria Elementar. .. cit., p. 315). Isso é in­ferido da própria norma estatutária, ao afirmar que o “capítulo dispõe so­bre crimes contra crianças e adolescentes… sem prejuízo do disposto na legislação penal”.

O artigo em análise já estabelece as classes do delito, quanto à conduta do agente, em comissivos e omissivos puros. Naqueles o agente faz o que a norma penal proíbe. Nestes, omissivos puros, há abstenção daquilo que a norma penal manda que se faça. A doutrina, entretanto, vislumbra mais duas classes quanto à conduta: comissivo por omissão (ou omissivo im­próprio) e comissivo e omissivo. Naquele, “o agente, pelo não cumprimen­to de seu especial dever de ação, determina a aparição de resultado típico, cuja evitação juridicamente lhe incumbia”. É exemplificado pela mãe que deixa perecer o filho, privando-o do alimento necessário. Nos comissivos e omissivos, por seu turno, a própria nomenclatura já evidencia a ação e omissão presentes no comportamento delitivo. O art. 242 do CP exempli­fica essa conduta (João Mestieri, Teoria Elementar. cit., pp. 310 e 311).
Por fim, o ensinamento sempre oportuno da mestra Eliana Athayde:

“Embora discutível a ameaça penal como forma reguladora do comporta­mento social, é, ainda, na atual conjuntura, o meio disponível para o con­trole social” (palestra proferida no Seminário “De Menor à Criança”, Rio, UERJ, 19.9.90).
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ECA: ARTIGO 225 / LIVRO 2 – TEMA: Dos Crimes

Comentário de Mônica Sydow Hummel
Anistia Internacional/São Paulo

Independente das medidas que oferece a legislação penal, com res­peito aos crimes e infrações administrativas, o presente Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 225, refere-se às ações ou omissões praticadas contra ambos.

Centenas de pessoas, anos atrás, ante a prisão e condenação de jo­vens portugueses por conseqüência de um solitário brinde à liberdade, jul­garam e, por sua vez, condenaram o poder despótico que se fazia presente naquele país.

Cidadãos que compreendem “direitos fundamentais” como patrimô­nio da Humanidade.

Na esteira (de)corrente deste fato, cidadãos do mundo, seres huma­nos de múltiplas nacionalidades, assumem voluntariamente a tarefa de agentes evocadores do respeito à dignidade humana, em meio à precária carcaça autoritária de governos irresponsáveis.

A Anistia Internacional surge, então, de uma reação apolínea, e, para muitos, o sonho concretiza-se na vigília responsável.

Em setembro/90 a Anistia divulgou um relatório cuidadoso que versa sobre maus-tratos e mortes de meninos de rua na Guatemala. Mais uma vez ousava tocar numa chaga social, na realidade pétrea daquele país, que penhora dia-a-dia a possibilidade de desenvolver-se sem alto custo social.

Novembro de 1990. A mesma Anistia Internacional dirige sua atenção para as ruas das cidades brasileiras e apresenta ao mundo um panorama da agressividade urbana sobre crianças e adolescentes que, dessas ruas e praças, só herdaram a condição de impróprios. Ingenuidade.

A violência manifesta ém tais crianças de rua apresenta-se como um sinal de alerta, como que atraindo a nossa atenção para a violência a que todas as crianças e adolescentes estão expostos. Esta nos causa indignação, porque está aí, ao alcance do olhar mais despretensioso, mais preconceituo­so. Porém, crianças e jovens são vítimas da agressão inconseqüente tam­bém nos recintos fechados, zelados, até mesmo por seus familiares.

Assim como no Brasil, em muitos países a violência, a intransigência, seja na forma de delírio particular ou coletivo, apresenta-se como um fe­nômeno. Sobre este fenômeno, que é social, não se pode deixar cair o silêncio. Cestar a impunidade.

As organizações sérias, nacionais e internacionais, devem tirar do ano­nimato tal fenômeno, interromper o silêncio e promover o momentâneo espanto gerador da orientação ética e responsável da lei, bem como da iniciativa pública investida de vontade política.

Desta feita, a vigília enuncia-se nessa intenção, e visa não ao desem­penho do Poder Público, mas à realidade que paira arbitrariamente sobre as instituições sociais, sobre a vida humana.
As reações individuais ou coletivas à transgressão infantil procuram res­paldo na reação infantil ante a agressão social, a que estão expostas.

Está criado o círculo vicioso da agressividade. Crianças e jovens, carac­terizados por pseudovidas. Reagentes coletivos, disfarçados com o capelo de sábio. E, como fiel desta balança grosseira, em poucas vezes a Justiça orienta.

Freqüentemente, os cidadãos associam Justiça somente com o dever de punir quando da comprovação do delito, desconsiderando seu viés de educadora. E é justamente aí que a impunidade aniquila a possibilidade de esta orientar a sociedade e suas instituições públicas, na direção do exercí­cio pleno da cidadania.

Vale perguntar até que ponto contribuímos, todos, na valorização ex­cessiva da individualização. A coexistência madura entre indivíduos, en­quanto exercício salutar de humanização e aprimoramento, perde em ex­tensão para a individualização refletida, p. ex., no “quem pode mais”, “ti­rar o melhor proveito e vantagem em tudo”, “bato e arrebento”. Os efeitos da individualização são evasivos, do mesmo modo que a claridade prove­niente de uma lâmpada é anulada pela luz do dia.

O exercício da cidadania não ‘se dá através do ser solitário.

A exemplo das sociedades feudais, a individualização é máxima den­tre os privilegiados e valorizada dentre os desfavorecidos, a partir da “aven­tura”, que não deixa de ser expressão da individualidade. E .- por que não? – deleite da experiência de vida na rua.

Neste sentido, acolhemos a afiimação de Michel Foucault, que diz ser o indivíduo sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológi­ca” da sociedade.

A cidadania produz. Produz realidade, produz expectativas igualitá­rias, rituais de verdade. Coloca as questões sociais nos pratos da balança eqüitativa.

Quiçá possamos, todos, entender que temos em mãos um significati­vo avanço, se bem implementado o Estatuto. Temos a obrigação de acatá­10, cientes da nossa responsabilidade para com as crianças, que são cida­dãos nem sempre conscientes de seus direitos e tarefas. Não temos o direi­to de desdenhar a atual situação em que se encontram milhões de crian­ças: da desconsideração à gestação, dos maus-tratos a que estão expostas também na família, do desprezo que segmentos sociais sistematicamente Ihes impõem.

Ante o crime e a infração, seja de crianças ou adultos, é necessária a reação organizada da sociedade. Organizada nos mecanismos reconheci­dos por esta, para intervir quando necessário. A educação, processo dinâ­mico e permanente, é constante intervenção. E é, também, confiar.

Lembramos, aqui, Cesare Beccaria quando afirma que a maneira mais segura, porém ao mesmo tempo mais difícil, de tornar os homens menos propensos à prática agressiva é aperfeiçoar a educação.

As organizações, que dirigem seus esforços para o respeito aos direitos humanos, não reivindicam concessões ou privilégios para as vítimas. Espe­ram que os Poderes Públicos apenas cumpram sua obrigação, sustentem seu compromisso em priorizar o ser humano e seu direito inalienável de ter “possibilidades”, inclusive a de se recuperar. –

Não buscam privilegiar a punição, em nome do combate à impunidade. Acreditam, ao contrário, que por trás do “silêncio” da impunidade ago­niza o que nos é caro: a vida humana. Por ela devemos aspirar e – por que não? – confiar.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ECA comentado: ARTIGO 225/LIVRO 2 – TEMA: Dos Crimes
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