ECA: ARTIGO 226 / LIVRO 2 – TEMA: Dos Crimes
Comentário de Felício Pontes Junior
Rio de Janeiro
Tratando-se de crimes praticados contra crianças e adolescentes no bojo de um diploma legal extravagante ou especial como o Estatuto, recorre-se, subsidiariamente, aos princípios gerais do Código Penal para aplicação e limite da norma incriminadora -, – v g., territorialidade, extinção de punibilidade etc. – com o intuito de completar o sistema penal. Ainda que o Estatuto silenciasse a esse respeito, haveria aplicação subsidiária dos princípios gerais, consoante o art. 12 do CP, naquilo que o Estatuto não dispusesse de modo diverso, pois “Iex specialis derrogat legem generalem” (“as disposições especiais preferem às gerais”). Conclui-se, assim, ser tecnicamente despicienda a primeira parte do artigo em estudo, pois o silêncio remeteria o aplicador da lei às regras gerais do Código Penal. Entretanto, a inclusão do dispositivo revela um processo salutar, lento e progressivo de clarificação do Direito, onde se tenta explicar ao máximo para a totalidade da formação social – e não apenas para os profissionais do Direito – o conteúdo dos textos legais; tendo como conseqüência, entre outras, a segurança jurídica nos conflitos de interesse (para pormenores incabíveis aqui, Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal, Rio, Revan, 1990).
Contudo, o Estatuto não apenas se vale subsidiariamente das regras gerais do Código Penal como, também, o auxilia na definição do termo criança – pessoa até 12 anos de idade incompletos (art. 2.0) – o que contribui sobremaneira para elidir os ensinamentos doutrinário e jurisprudencial desencontrados na consideração da circunstância agravante: “ter o agente cometido crime contra criança” (art. 61, II, “h”, do CP). Entretanto, indaga-se se essa agravante não pode ser estendida por toda a infanto-adolescência, já que no Estatuto não há distinção entre criança e adolescente quando estes figuram como sujeitos passivos de crimes.
Sob outro prisma do mesmo assunto, pergunta-se: a pena do agente que comete um dos crimes elencados no Estatuto contra criança está ‘sujeita também à circunstância agravante do art. 61, lI,”h” do CP? Em uma análise apressada, a resposta poderia ser afirmativa, já que o art. 226 do Estatuto requer expressamente a aplicação da Parte Geral do Código Penal. Entretanto, a circunstância, seja agravante ou atenuante, para ser levada em conta, não pode constituir o delito, ou seja, não pode ser parte integrante da norma incriminadora, sob pena de se considerar o mesmo fato duas vezes (João Mestieri, Teoria Elementar do Direito Criminal, Rio, J. Di Giorgio, 1990, p. 351). Exemplificando: havendo apreensão ilegal de criança (art. 230 do ECA), o juiz deverá fixar apenas a pena··base para o agente, sem considerar a circunstância agravante de ser a vítima criança, pois esta já é parte integrante do tipo, o que não exclui a possibilidade da ocorrência de qualquer outra circunstância, como ter o agente cometido o crime por motivo fútil (art. 62, lI, “a”, do CP). Conclui-se, assim, pela resposta negativa à questão supradita.
Ressalta-se, en passant, que, além das circunstâncias agravantes e atenuantes, na aplicação da pena, deve o juiz ater-se ao mandamento constitucional da individualização da pena (arts. 5.0, XLVI, da CF e 59 e ss. do CP), de extrema importância para a Justiça Penal (para pormenores incabíveis aqui, José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 8a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1992, p. 201, com remissão à obra de Paulino Jacques, Da Igualdade perante a Lei, 2a ed., Rio, Forense, 1957).
No que tange ao processo, como é de praxe, a lei especial remete ao Código de Processo Penal sua aplicação em relação aos crimes definidos naquela, e, mesmo que não houvesse dispositivo nesse sentido, buscar-seia a aplicação do Código de Processo Penal naquilo que a lei especial não regulasse de maneira diversa (cf. Hélio Tornaghi, Curso de Processo Penal, 5a ed., 1/24, São Paulo, Saraiva, 1988).
Vale lembrar que a competência por matéria é estabelecida pelas leis de organização judiciária dos entes federativos, ressalvada a hipótese do crime doloso contra a vida (art. 74, § lll, do CPP), não sendo de bom tom a modificação destas para que o Juizado da Infância e da Juventude, onde houver, venha a ser competente para a apuração e julgamento dos crimes contra a infanto-adolescência, pois desvirtuaria o espírito do juizado especializado proposto pelo Estatuto. Nada disso arranha, porém, a prerrogativa-dever do juiz da infância e da juventude – ou de qualquer magistrado – para requisitar a instauração de inquérito policial quando vier a ter conhecimento de crimes de ação pública (art. 5º, II, do CPP).
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury