ECA: ARTIGO 233 / LIVRO 2 – TEMA: Dos Crimes
Comentário de Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior
Juiz de Direito em São Paulo – Associação “Juízes para a Democracia”
Instituto Brasileiro de Ciência Criminal(IBCCrim)
O artigo em foco foi revogado expressamente pelo artigo 4l! da Lei 9.455/97. Em face da referida lei, independentemente da idade da vítima – seja criança, adolescente ou maior -, a tortura, consubstanciada em quaisquer das condutas ali tipificadas, passou a ser fato punível com penas que variam de dois a oito anos, com possibilidade de aumento de um sexto até um terço em determinadas hipóteses.
A definição do crime de tortura era cobrada do legislador há muito tempo, sobretudo em razão de denúncias a respeito de seu uso frequente, pelas polícias, como método de investigação.
O problema já estava na preocupação dos humanizadores do Direito Penal, que, inspirados pelo iluminismo, chegaram à fórmula de que o Estado, de maneira impessoal, sem dar abrigo a sentimento de vingança ou a violação de direitos considerados inerentes à pessoa humana – e assim consagrados e positivados na legislação moderna de todas as nações civilizadas -, podia exercer a repressão autorizada preservando a dignidade do acusado e respeitando direitos inerentes à pessoa humana.
Foi Cesare Beccaria, jurista e filósofo italiano, em sua obra Dos delitos e das penas, marco inicial da Escola Clássica, publicada em 1764, quem produziu o primeiro libelo contra a tortura, provocando uma notável ruptura doutrinária, já que o Direito Penal, desde as eras mais remotas, havia sido dominado pela barbárie, que incluía o suplício do acusado e o abuso judicial como práticas normais, aceitas sem questionamento.
A propósito do assunto, diz o mestre:
“É uma barbárie que o uso consagrou na maioria dos governos fazer torturar um acusado enquanto se faz o processo, seja para que ele confesse a autoria do crime, seja para esclarecer as contradições em que tenha caído, seja para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado, porém dos quais poderia ‘ser culpado, seja finalmente porque sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia.
“( … )
“Direi mais que é monstruoso e absurdo exigir que um homem acusa-se a si mesmo, e procurar que a verdade nasça através dos tormentos, como se essa verdade estivesse nos músculos e nas fibras do infeliz! A lei que autoriza a tortura é a que afirma: ‘Homens, resisti à dor. A natureza dotouvos com um amor imbatível ao vosso ser, e o direito indeclinável de vos defenderdes; porém eu desejo criar em vós um sentimento totalmente diverso; quero inspirar-vos um ódio a vós mesmos; ordeno-vos que sejais vossos próprios acusadores e finalmente digais a verdade em meio a torturas que vos partirão os ossos e dilacerarão os vossos músculos … ‘
‘Tal meio infame de chegar à verdade é um monumento da bárbara legislação de nossos avôs, que honravam com o título de julgamento de Deus as provas de fogo, aquelas da água fervente e a sorte oscilante’ dos combates. Como se os elos dessa corrente eterna, a origem da qual reside no seio da Divindade, pudessem ser desunidos ou partir-se a cada momento, ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições humanas!” (Dos delitos e das penas, capítulo XII, tradução Torrieri Guimarães, ed. Hemus, 1974, pp. 31/32).
À mesma época, Pietro Verri, colaborador de Beccaria, também denunciou a absurda crença de que a confissão, obtida por meio da abominável prática – por ele condenada com veemência – constituía uma espécie de extorsão da verdade, eliminando dúvidas a respeito da culpa do acusado (Observações sobre a tortura, Martins Fontes, 1992).
A humanização do Direito Penal que teve início a partir da divulgação de tais idéias e se completou com a Escola Positiva, fruto da evolução das ciências naturais, suprimiu das legislações a consideração da tortura como prática legal.
Permaneceu ela, contudo, sendo praticada, em muitos lugares e situações, à margem da lei, com efeitos devastadores para a democracia. Daí o pleito de que, mais que ilegal, fosse definida como crime.
Modernamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, que constitui o alicerce do que se denomina hoje Direito Internacional dos Direitos Humanos, dispõe, em seu artigo V, que “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.
Com base em tal preceito, as nações incorporaram ao seu direito interno a proibição da tortura, que passou a ser punida criminalmente. Outrossim, diversos pactos internacionais foram firmados sobre o assunto.
O Brasil é signatário da Convenção contra a Tortura, adotada pela. ONU em 1984, que entrou em vigor em 1987, e que assegura a punição de tal ofensa. Também assumiu compromissos relativamente ao tema em virtude da Convenção de Cartagena (1985) e da Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada Pacto de San José da Costa Rica (1969).
Por outro lado, a Constituição da República, além de erigir como garantia individual que ninguém será submetido a tortura (artigo 5u, IlI), diz que a lei considerará tal prática crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (artigo 5u, XLIII).
Mas o fato é que só quase uma década depois da promulgação da Constituição de 1988 foi sancionada lei tipificando condutas que constituem tortura. Em 1997, premido por acontecimentos envolvendo policiais militares, na Favela Naval, em Diadema, que tiveram grande repercussão, o legislador resolveu aprovar um dos projetos que dormiam havia anos no Congresso Nacional.
A providência era cobrada do Brasil, em diversas oportunidades, no cenário internacional (J. A. Lindgren Alves, na obra Os direitos humanos como tema global, ed. Perspectiva, 1994, p. 58) e pela luta de entidades de defesa dos direitos humanos. A omissão do legislador pátrio quanto ao assunto era injustificável. Trata-se, afinal, no dizer de Dalmo Dallari, de “uma forma covarde de cometer violência física, psíquica e moral, fazendo sofrer a vítima, degradando o próprio torturador e agredindo valores que são de toda a humanidade” (Duzentos anos de condenação à tortura, prefácio à obra citada de Pietro Verri).
Mas tal cobrança de nada adiantou. Apenas a emoção causada pelo episódio referido, orientando positivamente a opinião pública a reprovar gravemente condutas daquela espécie, motivou o legislador a aprovar a Lei 9.455/97, sem maiores discussões, como uma espécie de resposta simbólica à população.
É certo que antes da Lei 9.455/97 já havia referência à tortura no artigo 233 do ECA, que pretendeu definir figura típica que se amoldasse àquele conceito, tendo como vítima a criança ou o adolescente.
Contudo, dúvidas foram desde logo levantadas sobre sua constitucionalidade, por falta de descrição exata da conduta incriminada – nos aspectos objetivo e subjetivo -, que não poderia ser identificada imprecisa e vagamente pela expressão “submeter
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a tortura”.
O assunto foi tema de importante julgamento no Supremo Tribunal Federal (HC 70.389-5, j. 23.06.94, Boletim IBCCrim Jurisprudência, set/ 94, p. 66) em que, por maioria de um voto, prevaleceu a posição, sustentada pelo ministro Celso de Mello – acompanhada pelos ministros Sepúlveda Pertence, Néri da Silveira, Carlos Velloso, Francisco Rezek e Paulo Brossard – de que era suficiente a tipificação contida no artigo 233 do ECA. O ministro Sydney Sanches (relator sorteado) e os ministros Marco Aurélio, limar Galvão, Moreira Alves e Octavio Gallotti, votaram pela inconstitucionalidade do dispositivo.
Parte da doutrina já havia, antes, manifestado entendimento de que o artigo 233 do ECA definia corretamente um fato típico.
Antonio Scarance Fernandes alinhado com a primeira corrente, teceu a seguinte consideração sobre o tema: “submeter a tortura é o mesmo que torturar. Há, portanto, uma ação, consistente em torturar, prevista no Estatuto e que constitui o crime de tortura. Assim como matar constitui a ação que tipifica o crime de homicídio. Se o tipo é indeterminado, aberto, não especificando os elementos da ação de torturar e, por isso, ofende a regra constitucional da legalidade é outro problema. Difícil, contudo, afirmar que inexiste a afirmação no Estatuto do crime de tortura, pois, se não foi esse o delito aí definido, qual então teria sido o crime aí elencado?” (“Aspectos da Lei dos Crimes Hediondos”, em Justiça Penal, Ed. RI, 1993, p. 82).
Nada obstante, diversos outros juristas, como Sylvia Steiner, manifestaram receio de que a posição assumida pelos votos vencedores pudesse ser perigoso precedente para a flexibilização do princípio da estrita reserva legal na tipificação de condutas penalmente relevantes (“O princípio da reserva legal e o crime de tortura na legislação brasileira”, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 13, janeiro-março/96, p. 163).
Alberto Silva Franco, comentando o tema, concluiu pela ofensa ao princípio da legalidade com os seguintes argumentos:
“O quebrantar a vontade de alguém, fazendo-o declarar o que não desejava dizer, não é suficiente, só por só, para identificar a tortura. É necessário explicitar quem pôs em prática tal procedimento, qual o momento em que houve o quebrantamento dessa vontade e qual a modalidade de ação executada, isto é, se constitui em inflação de ato doloroso, físico e mental. Cuida-se, portanto, de uma conduta necessitada de uma explicação maior para que se possa reconhecer um eventual ajuste típico_ E, sem essa descrição, não há modelo de crime, por ofensa ao princípio constitucional da legalidade. Não é porque o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente se refira, no art. 233, à expressão tortura que se deva, em conseqüência, concluir ter montado, na matéria, um tipo com esse nome jurídico. O que é a tortura? No que ela consiste? Quais as ações ou, até mesmo, as omissões que lhe dão corpo e realidade? Qual o dado de subjetividade que deve, necessariamente, fazer-se presente nessas ações ou omissões? O art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente é, a esse respeito, totalmente silente e admiti-Io como descrição adequada do delito de tortura, conforme exige o texto constitucional, equivale a um verdadeiro absurdo. Dizer o texto do ECA que constitui crime submeter criança ou adolescente à tortura, não explicitando no que consiste a ação de torturar, não significa reconhecer o crime de tortura: é dizer coisa nenhuma, é produzir, sem preocupação com o direito de liberdade do cidadão, um tipo vazio de conteúdo. E tipo, que não obedeça ao princípio da legalidade, é um tipo inexistente” (Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial, 5a ed., 1995, Ed. RT, p. 377).
Por isto, nada obstante tenha a revogação do artigo 233 do ECA sido recebida por parte da doutrina com críticas, sobretudo pelo tratamento mais brando que foi dado à questão, no que se refere à vítima criança ou adolescente, em termos de quantidade de pena (Maurício Antonio Ribeiro Lopes, “As crianças, a tortura, as leis e as salsichas”, em Boletim do IBCCrim n. 54, maio/97, p. 3; Oswaldo Henrique Duek Marques, “Breves considerações sobre a criminalização da tortura”, em Boletim do IBCCrim n. 56, julho/97, p. 6), verdade é que veio em boa hora por ter encerrado a polêmica gerada pela redação imprópria.
Aliás, não fosse a revogação expressa, o esforço interpretativo teria tratado de resolver o conflito aparente entre as normas da mesma forma.
Analisemos, em linhas breves, a Lei 9.455/97.
Seu artigo 1° descreve, em verdade, seis condutas típicas. As cinco primeiras são condutas comissivas: (1) constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa (inciso 1, letra “a”); (2) constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para provocar ação ou omissão de natureza criminosa (inciso I, letra “b”); (3) constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental em razão de discriminação racial ou religiosa (inciso I, letra “c”); (4) submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo (inciso lI); (5) submeter pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal (§ I li). A última é conduta omissiva: (6) omitir-se em face de uma das práticas mencionadas, quando tinha o dever de evitá-Ias ou apurá-Ias (§ 2°).
O sujeito passivo e o sujeito ativo podem, em regra, ser quaisquer pessoas. Os casos do inciso II do artigo 1°, e dos §§ 1° e 211 do mesmo artigo são de delito próprio: o sujeito ativo só pode ser, respectivamente: (1) quem tenha a vítima sob seu poder, guarda ou autoridade; (2) quem tenha poder sobre a pessoa presa ou sujeita a medida de segurança; (3) quem tenha o dever de evitar a conduta comissiva de outrem descrita na lei – ou seja, o garantidor a que se refere o artigo 13, § 2°, do Código Penal -, ou quem tenha o dever de apurar aquelas condutas – quem tenha dever de oficio – e se omite.
A propósito do assunto, Alberto Silva Franco aponta como “mais grave defeito do novo diploma legal” o fato de não ter sido o tipo básico de tortura estruturado como crime próprio. Segundo ele:
“A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, ao definir o termo tortura, além de referir-se à prática de ‘qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais sãos infligidos intencionalmente a uma pessoa’, com finalidades bem explicitadas, deixou claramente consignado que ‘tais dores e sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência’ (Flávia Piovesan in Direitos Humanos e o Direito Constitucíonallnternacional, pp. 375/376, Max Limonad – São Paulo, 1996). A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, datada de 1985, foi de uma explicitude maior, ao estabelecer, no art. 3°, que ‘serão responsáveis pelo delito de tortura: a) os empregados ou funcionários públicos que, atuando nesse caráter, ordenem sua execução ou instiguem ou induzam a ela, cometem-no diretamente ou, podendo impedi-Io, não o façam; b) as pessoas que, por instigação dos funcionários ou empregados públicos a que se refere a alínea a, ordenem sua execução, instiguem ou induzam a ela, cometem-no diretamente ou nele sejam cúmplices’ (Flávia Piovesan, ob. cit., p. 462). Em ambas as convenções internacionais, como já ficou anteriormente consignado, o Brasil, como País signatário, se comprometeu a punir a tortura no âmbito de sua jurisdição. Cuida-se, aqui, de tratados internacionais que versam sobre direitos humanos e as normas neles estabelecidas por força dos §§ I” e 2° do art. 5° da Constituição Federal, têm o status de norma constitucional. Como enfatiza Antonio Augusto Cançado Trindade, citado por Flávia Piovesan (ob. cit., pp. 103/104), ‘se para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar às suas disposições- vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais nele garantidos, consoante os arts. 5° (2) e 5° (I) da Constituição brasileira passam a integrar os direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno’. Há, por assim dizer, uma integração automática, no direito interno, e em nível constitucional, das normas internacionais que digam respeito aos direitos humanos, dispensada, deste modo, qualquer intermediação legislativa. Ora, a partir dessa interpretação, é evidente que o tipo de tortura, na legislação penal brasileira, não poderia destoar flagrantemente da definição contida nas convenções internacionais já referidas. Destarte, o conceito de tortura, como crime próprio, já faz parte do ordenamento jurídico brasileiro, em grau constitucional. É evidente que tal conceito não dispensa, por respeito ao princípio da reserva legal também de nível constitucional, da intermediação do legislador infraconstitucional para efeito de sua configuração típica. Mas esse legislador não poderá, sem lesionar norma de caráter constitucional, construir um tipo de tortura que não leve em conta o conceito já aprovado em convenções internacionais. Assim, lei ordinária que desfigure a tortura de forma a torná-Ia um delito comum e não próprio, está eivada de manifesta inconstitucionalidade, tal como ocorreria se o legislador ordinário entendesse que o delito de racismo comportaria a pena detentiva ou de multa ou que a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático constituiria fato criminoso prescritível ou, ainda, que os delitos hediondos e outros a eles assemelhados seriam suscetíveis de graça ou anistia” (“Tortura – Breves anotações sobre a Lei 9.455/97”, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 19, julho-setembro/97, p. 55).
Além de tal crítica, outras foram feitas pelo eminente penalista quanto à construção tipológica do delito em tela, na obra citada, como a falta de limites conceituais para as expressões “sofrimento físico” e “sofrimento mental”, partícipes da definição típica, pondo em risco o princípio da legalidade, e possibilidade de polêmicas quanto a conflito de normas e quanto à aplicação de preceitos processuais constantes da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos).
O objeto da proteção jurídica, em todas as condutas, é a integridade física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em cujo centro está a liberdade.
No dizer de Hélio Pellegrino: “O projeto da tortura implica uma negação total- e totalitária – da pessoa enquanto ser encarnado. O centro da pessoa humana é a liberdade. Esta, por sua vez, é a invenção que o sujeito faz de si mesmo, através da palavra que o exprime. Na tortura, o discurso que o torturador busca extrair do torturado é a negação absoluta de sua condição de sujeito livre. A tortura visa ao acesso da liberdade. A confissão que ela busca, através da intimidação e da violência, é a palavra aviltada de um sujeito que, nas mãos do torturador, se transforma em objeto. Ao quebrar-se frente à tortura, o torturado consuma – e assume – uma cisão que lhe rouba o uso e o gozo pacífico do seu corpo. A ausência de sofrimento corporal, ao preço da confissão que lhe foi extorquida, lhe custa a amargura de sentir-se traidor, traído pelo próprio corpo. Sua carne apaziguada testemunha e denuncia a negação de si mesmo enquanto pessoa. A tortura, quando vitoriosa opera no sentido de transformar sua vítima numa degradada espectadora de sua própria ruína” (“A tortura política”, em Jornal do Brasil, Caderno B, 18.04.85).
O tipo objetivo é sempre o sofrimento físico ou psíquico mediante emprego de violência (vis absoluta), que significa a força física sobre o corpo ou que afete a este ou a mente ou grave ameaça (vis compulsiva), identificada com a promessa de mau futuro.
O tipo subjetivo é o dolo, com especial fim de agir. Quer o agente, em todos os casos, é obter um determinado comportamento da vítima ou de terceira pessoa.
Em todas as modalidades comissivas o crime é formal, consumando-se com o sofrimento resultante do emprego da violência ou da ameaça, independentemente do resultado pretendido pelo torturador.
A tentativa é possível, nas figuras comissivas, quando o sofrimento não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente.
No caso do delito do § 2° do artigo IU, a tentativa é impossível, como em todos os delitos omissivos próprios.
A Lei 9.455/97 prevê qualificadoras (artigo 1°, § 3°) quando: (a) resultar lesão corporal de natureza grave; (b) resultar morte.
Prevê, também, causas de aumento da pena (artigo 1°, § 4°), de um sexto a um terço, se o crime é cometido: (a) por agente público; (b) contra criança, gestante, deficiente e adolescente; ( c) mediante seqüestro.
Observa-se, assim, que, afastando-se dos contornos dados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos ao tema, a qualidade de agente público, para o legislador brasileiro, deixou de ser essencial à figura típica da tortura para configurar causa de aumento de pena.
Finalmente, há que considerar que as palavras “criança” e “adolescente”, mencionadas no texto relativo às causas de aumento, têm significado objetivo em nossa legislação, dado, aliás, pelo ECA, em seu artigo 2°: criança é o menor até 12 anos incompletos; adolescente é o menor entre 12 e 18 anos.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury