ARTIGO 234/LIVRO 2 – TEMA: Dos Crimes
Comentário de Wanderlino Nogueira
Consultor e Advogado/Bahia
O legislador brasileiro, aqui, foi movido pelo escopo genérico de dotar a garantia dos direitos especiais do cidadão-criança e cidadão-adolescente de mais um instrumento jurídico de defesa desses direitos, quando transgredidos, quando ameaçados ou violados: o instrumento jurídico-penal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente pretende ser mais que uma mera sistematização codificada de um ramo do Direito, o chamado “Direito Menoril”. É ele um sistema de promoção e defesa desses direitos, a partir de vários ramos do Direito, ordenados, estatuídos: Direito Civil, Penal, Processual, Procedimental e Administrativo, p. ex.
Assim, não pode ser admitida a crítica ao texto legal, vendo tal dispositivo (como os demais do capo I do tít. VII) como próprio da legislação penal.
O que define a norma protetiva do Estatuto não é seu conteúdo substantivo, mas sua sede: uma definição formal. Como de ordinário ocorre com outros ordenamentos estatutários sem maiores oposições: “Estatuto do Índio” (Lei 6.001), Estatuto da Terra (Lei 4.504), Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815) etc.
Essa garantia de direitos especiais, pelo Estatuto, se faz, em primeiro lugar, numa “linha de promoção de direitos”, proclamando-os e explicitando-os (arts. 7° a 69); efetivando-os através de políticas públicas estatais e comunitárias, formuladas em obediência a determinadas diretrizes e linhas específicas e de um conjunto de ações governamentais e não governamentais (arts. 86 a 97) e, finalmente, determinando o processo conseqüente de reordenamento institucional, do Poder Executivo (Conselhos de Direito e Tutelares, organismos públicos de atendimento direto, Polícia, Defensoria Pública, p. ex.), do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Em complemel1tação a essa linha, o Estatuto sistematiza outra de “defesa de direitos”, consubstanciada na instituição de “medidas de proteção” (arts. 98 a 102), na explicitação do “devido processo legal” para apuração de atos infracionais praticados pelo adolescentes (arts. 103 a 128) e na instituição também de um elenco de remédios jurídicos administrativos e judiciais de proteção a esses direitos (arts. 129 e 130, 208 a 224, 225 a 244, 245 a 258 etc.).
Dentro desse contexto, inafastável por força do art. 6° do Estatuto, se deverá interpretar este art. 234: uma maneira de sancionar, mais rigidamente, uma forma determinada de violação a um direito da criança e do adolescente – sua liberdade, dignidade e respeito. Seria este um tipo especial de prevaricação (art. 319 do CP), sem a complexidade daquele tipo penal e com pena exacerbada, exatamente no dobro. Para tanto se levam em conta, como justificativa, a “condição peculiar” da vítima, de “pessoa em desenvolvimento” (art. 6° do ECA), e a “absoluta prioridade” da efetivação de seus direitos (art. 4°, idem).
Posta essa consideração preliminar contextualizadora, a primeira tarefa cumpre seja a de se definir a chamada “autoridade competente”, como possível autor do delito. Será ela toda autoridade pública com poderes liberatórios, em caso de constatação do constrangimento ilegal, isto é, magistrados, promotores de justiça, delegados de polícia ou responsáveis por entidades de atendimento.
A hipótese de configuração da autoria desse delito por magistrado deve ser escoimada daquelas outras, onde, p. ex., a autoridade judiciária, no julgamento de um habeas corpus, denega-o. Onde, ainda, ela, em despacho, indefere um relaxamento de apreensão de criança; em ambos os casos, prestando jurisdição. O erro no julgamento só poderá ser punível quando ele se configurar como abuso ou exercício arbitrário de poder, isto é, “sem justa causa”. Aquela simples sentença denegatória ou despacho indeferitório não justificam, em si, o ajuizamento de ação penal, perante a instância superior competente, contra o magistrado prolator, salvo se, preliminarmente examinada a situação, através de recurso próprio, a instância revisional deu provimento a ele, reformando a decisão da instância inferior.
Essa decisão superior é que dará o caráter de abusividade, em princípio, da decisão omissiva do magistrado no não liberar a criança e o adolescente apreendidos.
Fora daí, estaríamos também instaurando perigoso precedente, a vulnerar a autonomia funcional do juiz, valor mais precioso que a própria autonomia administrativo-financeira do Judiciário e tão precioso quanto a liberdade do cidadão, pois sua garantia fundamental.
Por sua vez, quando se tratar de autoridade policial, este crime se consuma quando ela contesta, p. ex., com uma lavratura de auto de apreensão em flagrante inexistente, forja,do, experimental ou em descompasso com as normas processuais ou procedi mentais; com o conseqüente recolhimento do adolescente.
Ou quando ela se omite ao tomar conhecimento de que, em instalações policiais ou outras de constrição de liberdade, mesmo privadas, a qualquer título (p. ex., as “salas de segurança” de estabelecimentos comerciais), criança ou adolescente se encontra recolhido que não em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (art. 106 do ECA).
Assim também quando, no cumprimento do art. 174 do Estatuto após o comparecimento dos pais ou responsável do adolescente, não sendo hipótese de intimação sob a justificativa demonstrada em concreto de “garantia da segurança pessoal” do jovem ou de “manutenção da ordem pública” – a autoridade policial não liberar esse jovem, configurando o delito capitulado neste artigo.
Da mesma forma, incurso nas penas desse dispositivo legal estará também o promotor de justiça que, em se lhe apresentando adolescente apreendido e internado, constatando a ilegalidade desses atos, não liberá-lo, de imediato.
Todavia, discutível é a responsabilização penal do dirigente de entidade de atendimento que receber o adolescente apreendido, na forma do § 1° do art. 175, pois se trata ele de mero agente executor do encaminhamento feito por autoridade policial. Exceto se manifesta e notória a ilegalidade do encaminhamento (absoluta incompetência da autoridade policial, ausência de formalidade essencial, idade do apreendido inferior a 12 anos etc.). Nessas circunstâncias, deveria esse dirigente ter-se recusado a receber o adolescente (ou criança) encaminhado, com as comunicações necessárias a quem de direito e de imediato (plantões integrados, na forma do art. 88, V, do ECA), sob pena de ser considerado co-autor ou cúmplice (art. 29 do CP).
Finalmente, quando criança, em qualquer hipótese, esteja apreendida e recolhida, salvo as hipóteses de abrigamento (art. 101,III, do ECA), determinado pelo Conselho Tutelar ou pelo juiz competente, e disso tiver conhecimento, sem providências, qualquer dessas autoridades, obviamente se configurará o delito do art. 234.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury