ARTIGO 259/LIVRO 2 – TEMA: União
Comentário de Luiz Carlos De Barros Figueiredo
Juiz da 2a Vara da Infância e da Juventude/Recife, Pernambuco
A política de atendimento contemplada no Estatuto da Criança e do Adolescente, e em especial as suas diretrizes, não guarda qualquer similitude com a denominada “Política do Bem-Estar do Menor” preconizada na Lei federal 4.513, de 1.12.64.
Com efeito, a visão centralizadora que permeava as decisões da época não poderia contemplar a municipalização do atendimento, decisões colegiadas, com participação paritária da sociedade civil organizada, nem uma integração operacional dos agentes públicos que atuam no enfrentamento da questão. Embora tivesse sido possível a geração de mecanismos específicos para servir de suporte financeiro às diversas ações desenvolvidas, o fato é que não foi concebida naquela época uma fórmula para tal fim.
O Estatuto desmonta a visão retrógrada que servia de suporte à referida lei e ao Código de Menores, pois a simples definição de novas linhas e diretrizes de política de atendimento, independentemente do elenco de direitos e fórmulas garantidoras do seu exercício a todas as crianças e adolescentes, implica uma total reformulação de todas as entidades de atendimento, sejam governamentais ou não.
Neste sentido, por óbvio, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor-FUNABEM estava absolutamente incapacitada, à luz da sua lei criadora e de seus regulamentos, para desempenhar o papel que o Estatuto espera de um órgão gerencial em nível nacional. É de se registrar que parcela ponderável e importante da insatisfação popular com as legislações anteriores brotou no próprio seio da FUNABEM, enquanto instituição, e também pelo seu qualificado quadro de técnicos, cientes de que ‘sob a égide de tais leis seria impossível a prática efetivamente transformadora da sociedade. Claro também que, dada a magnitude da mudança de linhas e diretrizes da política, não caberiam simples ajustes estruturais da instituição.
Assim sendo, em consonância com o caput do art. 259 do Estatuto, foi criada a Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência FCBIA, cujos objetivos se ajustavam às expectativas do novo ordenamento.
Lamentavelmente, a FCBIA foi extinta em 1995 no início do lU Mandado do Presidente Fernando Henrique Cardoso, junto com a Legião Brasileira de Assistência, a pretexto de vícios gerenciais e baixa efetividade operacional. Em tese, a maioria das suas atribuições seriam assimiladas pelo programa que se implantava, com denominação de “Comunidade Solidária”, o que não aconteceu. Da mesma forma, unidades setoriais dos diversos Ministérios também não melhoraram seus níveis de eficiência na área da Infância, exceto a Diretoria da Criança e do Adolescente da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça. O papel formulador, coordenador e articulador do CONANDA das políticas nesta área também deixa a desejar. Em síntese, o Governo federal não cumpre a regra constitucional da “prioridade absoluta”, nem ajustou sua estrutura nos moldes propugnados pelo caput do art. 259, o que sugere ajuizamento de Ações Judiciais próprias para sanar as omissões.
Em nível estadual, pelas mesmas razões antes expendidas, impõem se ajustes nos seus órgãos e programas, como previsto no parágrafo único.
Em respeito ao princípio federativo e à autonomia municipal, o Estatuto não definiu prazos para as adaptações em nível dos Estados e Municípios, inserindo norma meramente programática. Entretanto, quase todos os Estados já cuidaram de adaptar seus órgãos (FEBEMs) à nova realidade, não com mera mudança de nomes, mas de acordo com a redução ponderável do papel reservado aos Estados Federados, que, como executores, deverão se limitar à internação de autores de ato infracional e abrigo para casos excepcionais e incompatíveis pelo custo, especialização profissional e quantitativo de atendidos, para execução pelas Municipalidades, como, p. ex., as crianças e adolescentes portadores de deficiência mental.
Em que pese à municipalização ser uma das molas-mestras do Estatuto, lamentavelmente, até agora, não se observa, como regra geral, exceto nas grandes cidades, uma maior participação das Municipalidades, que, necessariamente, deverão adaptar (nos poucos casos que existem) ou criar órgãos para tal fim. Ao lado das entidades não governamentais, caberão ao Município, doravante, o abrigo, a profissionalização e todos os demais programas, de acordo com a nova política de atendimento. A criação e pleno funcionamento dos Conselhos preconizados no Estatuto, pela própria democratização das decisões e envolvimento da comunidade, deverá servir de meio garantidor para que estes órgãos, no nível municipal, sejam criados ou adaptados.
Nesses quase 9 (nove) anos de vigência do Estatuto esta tem sido uma questão fulcral, pois, por razões culturais são imensas as dificuldades de transposição de uma visão para uma priorização da ótica da municipalização.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
ARTIGO 259/LIVRO 2 – TEMA: União
Comentário de Benedito Rodrigues dos Santos
Pesquisador/São Paulo
o art. 259 do Estatuto da Criança e do Adolescente trata da competência em termos da iniciativa, dos instrumentos legais e prazo para implementar as diretrizes da política de atenção aos direitos da criança e do adolescente, fixadas nos arts. 88 e 134 a 139. O princípio que rege é o mesmo que fundamenta a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e Adolescente: o princípio federativo, que confere autonomia e articulação entre a União, Estados e Municípios. E, a despeito de o artigo ser omisso em relação a qual dos três poderes destas esferas caberá a iniciativa de propor o projeto de lei, o espírito dos legisladores e a conveniência política recomendam que seja o Executivo com participação da sociedade civil, através de suas organizações representativas, observando o princípio da co-gestão que emana do Estatuto.
É importante lembrar que, quando o Estatuto adota a doutrina de proteção integral, recomendada pela ONU, co-responsabiliza a família, a sociedade e o Estado (com papéis diferenciados) pela política de atenção aos direitos da criança e adolescente, através de um conjunto de ações governamentais e não governameptais; estabelece uma hierarquia das políticas sociais básicas; regulamenta os princípios da descentralização administrativa, da municipalização e da participação popular por meio da criação de Conselhos paritários e da manutenção de Fundos, está propondo uma mudança visceral na concepção e nas diretrizes da política até então vigente e na estrutura dos órgãos que a implementam.
Quando o art. 259 fala da criação ou adaptação dos órgãos do Estado para implementação das Diretrizes da Política de Atenção aos Direitos da Criança e do Adolescente, é importante ressaltar que a estrutura deve ser entendida como “meio” para consecução dos objetivos, e não como “fim em si mesma”.
Se em toda estrutura subjaz uma concepção e o nosso projeto é a implementação de uma política fundamentada na cidadania, a nova estrutura deve estar em sintonia com a política. Isto significa, concretamente:
– Desmontar, de forma planejada e urgente, a Política Nacional de Bem-Estar do Menor-PNBEM: que concebe a criança e o adolescente de forma fragmentada, discriminatória e estigmatizante; de caráter compensatório, assistencialista-paternalista e correcional-repressiva; cujo modelo é autoritário, elaborado e executado de cima para baixo; perverso, apoiado no ciclo da apreensão – recepção – triagem – deportação e confinamento; irrelevante, por não evitar a formação da identidade delinqüencia, e a cobertura, em termos numéricos é insignificante. Esta política já desapareceu da retórica dos discursos, mas está enraizada na cultura, nas políticas e no cotidiano das instituições.
– Extinguir o Sistema Nacional de Bem-Estar do Menor, que, apesar dos avanços já obtidos, ainda sobrevive na FCBIA, LBA, FEBEMs de vários Estados, e criar mecanismos de articulação dos recursos e das ações das várias instituições da área governamental das diversas esferas (Município, Estado, União) que atuem com crianças e adolescentes, buscando a otimização dos recursos, a superação do paralelismo de ações e do caráter descontínuo das políticas públicas.
– Implementar sério e corajoso reordenamento e reestruturação dos órgãos de governo, a fim de que se tornem instrumentos descentralizados e desburocratizados na consecução da Política de Direitos da Criança e Adolescente, inclusive adotando uma política de pessoal que leve em conta a adequação funcional e salários justos.
Creio que não se trata de construir um sistema novo ou um novo sistema; a preocupação não deve ser esta. A criação dos Conselhos de Direitos e Tutelares e dos Fundos e seu funcionamento de forma dinâmica e eficaz são instrumentos que detonam um processo diferente de conceber, planejar e executar a política de atenção à criança e adolescente, enfim, de assegurar seus direitos. Porém, não são instrumentos mágicos que solucionarão todos os problemas, não devem substituir as diversas formas de participação, expressão e manifestação da sociedade civil. No seu processo de construção é preciso estar atento à definição e distinção dos papéis entre governo e sociedade civil e submetê-Ios a avaliações diuturnas.
A sociedade conquistou instrumentos para a construção da cidadania de milhões de crianças e adolescentes excluídos dos benefícios do desenvolvimento, que, se tomados com seriedade, firmeza, vontade e determinação política na sua consecução do Projeto Cidadão-Criança, poderemos alcançar o Estado Democrático de Direito.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury