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ECA: ARTIGO 28 / LIVRO 1 – TEMA: FAMÍLIA

 

Comentário de Luiz Paulo Santos Aoki
Ministério Público/São Paulo

 

É preciso pensar;

Mais que pensar;

é preciso sentir;

Mais do que sentir,

é preciso agir;

Com Sabedoria quase que divina,

Quando se milita na Justiça da Infância e Juventude.

FAMÍLIA SUBSTITUTA

Breve retrospectiva

 

A história da família substituta é quase tão antiga quanto a humanidade, pois certamente brotou do próprio espírito de solidariedade existente latente nos seres humanos, de molde a suprir incontáveis ausências da família natural, gerando, daí, até mesmo fábulas,lenda se fantasiosas histórias que rechearam a imaginação de inúmeras gerações, como é o caso, p.ex.,dos irmãos romanos Rômulo e Remo, que foram criados por uma Loba; ou, então, a história do Lord inglês que foi criado por uma família de gorilas; ou, então, a deliciosa história de Mogli, o menino das selvas, criado por uma família de lobos selvagens;ou a milenar história de Moisés, posto nas águas do rio em que se banhava a filha do faraó e por ela tirado das águas e criado, tendo por ama de leite sua própria mãe.
Como se vê, a história do Homem e a sua imaginação cuidaram de guardar recordações pungentes acerca de inúmeros casos de família substituta.
Observamos, entretanto, em todos os casos narrados, uma tônica que pode ser detectada com facilidade, a olho nu, ou seja: uma perfeita adequação da criança à família que a recebe,e, mais do que a própria família, ela,criança,adota os costumes desta família receptara. Acrescente-se, ainda, que,em todos os casos, percebe-se uma acentuada relação afetiva entre a família substituta e a criança, em que pese às diferenças aparentemente intransponíveis, quais sejam, entre animais racionais e irracionais, ou de um escravo e um rei.
No entanto, mais do que fábula ou lenda, a realidade tem-nos mostrado, com muito vigor, que as circunstâncias atuais têm aumentado em muitas vezes as razões que levam uma família a assumir a substituição da família natural.
Tentaremos analisar, com o cuidado necessário, a previsão legal contida no Estatuto da Criança e do Adolescente nos seus arts. 28 a 32, que tratam da forma de colocação em família substituta e as diversas implicações daí decorrentes.

Etimologia

FAMÍLIA: “Derivado do latim, família, de famel (escravo, doméstico), é geralmente tido em sentido restrito, como a sociedade matrimonial, da qual o chefe é o marido, sendo mulher e filhos associados dela. Neste sentido, então, família compreende, simplesmente, os cônjuges e sua progênie. E se constitui, desde logo, pelo casamento.
“Mas, em sentido lato, família quer significar todo conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade (Clóvis Beviláqua). Representa-se, pois, pela totalidade de pessoas que descendem de um tronco ancestral comum, ou sejam provindas do mesmo sangue, correspondendo à genos dos romanos e ao genos dos gregos.
“É a comunhão familiar, onde se computam todos os membros de uma mesma família, mesmo daquelas que se estabeleçam pelos filhos, após a morte dos pais.
Na tecnologia do Direito Civil, entanto, exprime simplesmente a sociedade conjugal, atendida no seu caráter de legitimidade, que a distingue de todas as relações jurídicas desse gênero. E, assim, compreende somente a reunião de pessoas ligadas entre si pelo vínculo de consangüinidade, de afinidades ou de parentesco, até os limites prefixados em lei. Ou seja, o conjunto de pessoas vinculadas economicamente e su6metidas à autoridade de uma pessoa que as chefia e as representa.

“Família: entre os romanos, além do sentido de conjunto de pessoas submetidas ao poder de um cidadão independente (hamo suijuris), no qual se compreendiam todos os bens que às mesmas pertenciam, era sinônimo de patrimônio, propriamente aplicado aos bens deixados pelo de cujus.
“E, nesta razão, dava-se o nome de actio familiae erciscundae à ação de divisão de uma herança” (Vocabulário Jurídico, I, De Plácido e Silva, Rio, Forense, 1978).

Fundamento constitucional

 

Esta definição, porém, sofreu mutações, mormente com a promulgação da nova Constituição Federal de 1988, que ampliou o conceito jurídico de família, em seu art. 226, §§ 3ile 4il, além de estabelecer constitucionalmente a igualdade dos direitos e deveres dentro da sociedade conjugal, afastando a idéia de chefia única:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
“§ Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

4°. Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade familiar formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”

A partir daí, amplia-se o horizonte do jurista, permitindo-se-lhe enxergar como entidade familiar grupamentos menos organizados, como aqueles do Direito Romano.
E, mais ainda, estabeleceu a própria Constituição Federal, no que foi repetida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 4°, direitos e deveres inerentes a este agrupamento humano elevado à condição de família, conjuntamente com a sociedade e o Estado, para garantir, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais da criança e do adolescente, enumerando-os no seu art. 227.
Portanto, também a família substituta está submissa a estes deveres e, obviamente,aos direitos decorrentes de seu estado de família, que anotamos acima.
Feito este breve intróito, analisemos, agora, art. 28, que cuida da forma como se coloca a criança ou adolescente em uma família substituta.
Ora, se já definimos o termo família devemos compreender o termo substituta,ou seja, não aquela original, mas outra que dela assumiu o lugar, por razões que o próprio Estatuto dispensa inquirir.

O termo substituto foi bem definido por Clóvis Beviláqua como:
“É a instituição subsidiária e condicional, feita para o caso em que a primeira instituição não produza ou já tenha produzido o seu efeito.
Substituto: do latim substitutus, é o vocábulo empregado na linguagem correntia no mesmo sentido de substituinte: indica a coisa ou a pessoa que substitui em seu lugar uma outra coisa, ou uma outra pessoa.
“Na linguagem jurídica, outra não é a significação do vocábulo: substituto é o que participa ou realiza uma substituição, vindo ocupar ou se pondo no lugar do que foi substituído.
“O substituto pode ocupar o lugar do substituído em caráter efetivo ou em caráter temporário. Quando a substituição se opera em caráter efetivo, o substituto assume a posição do substituído, adquirindo as qualidades que lhe eram atribuídas. E, assim, cumprida a substituição, deixa de ser um substituto para ser o que era o substituído.
“Na substituição eventual, o substituto, assumindo a posição do substituído, não perde sua qualidade de substituto, a fim de que continue em condições de assumir ou ocupar o posto do substituído todas as vezes que este faltar ou estiver impedido” (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, IV/1.491 , Rio, Forense, 1978).
Portanto, ao assumir a posição de substituta, assume a família receptara da criança ou do adolescente todos os direitos e deveres inerentes àquela família original.
Deste modo, desde logo, a família substituta assume os deveres contidos no art. 227 da CF e repetidos no art. 4°do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por outro lado, quanto à pessoa dos filhos, assume também o direito de dirigir-lhes a criação e educação (art. 1.634, I, do CC de 2002); tê-las em sua companhia e guarda (art. 1.634, II);conceder-lhes ou negar-lhes o consentimento para casarem (art. 1.634, III); nomear-lhes tutor, por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não sobreviver, ou, sobrevivo, não puder exercitar o poder familiar (art. 1.634, IV); representá-las, até os 16 anos, nos atos da vida civil e assisti-las após essa idade nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento (art. 1.634, V); reclamá-las de quem ilegalmente os detenha (art. 1.634, VI); exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição (art. 1.634, VII). Na órbita patrimonial, compete-lhes, ainda, a administração dos bens dos filhos, bem como o usufruto dos referidos bens (arts. 1.689 a1.693 do CC de 2002).
É certo, porém, que, dependendo do tipo de colocação em família substituta (eventual, transitória ou permanente), que variará segundo a maior ou menor eventualidade daquele estado de substituição, advirão os efeitos quanto à maior ou menor capacidade de ingerência na vida da criança ou adolescente posto sob a proteção daquela família substituta.
Assim, se assume ela o caráter definitivo, através da adoção, na verdade, assume a posição da substituída, e, portanto, assume a totalidade de direitos desta (art. 1.634 do CC de 2002).
Entretanto, se assume temporariamente a posição da família substituída, também restritos estarão os direitos que poderá exercer. Assim, se posta a criança ou adolescente sob a guarda de uma família substituta, poderá esta exercer todos os direitos que não importem maior disposição além da própria assistência material e moral e a educação dos pupilos, só podendo, entretanto, excepcionalmente (art. 33, § 2°do ECA) conceder-lhes autorização para casar ou, mesmo, negar este consentimento desde que devidamente especificado pelo magistrado qual ato poderá ser praticado. Isto porque redundaria numa forma indireta de emancipação, poder do qual não se acha investida aquela família substituta eventual, que pode, outrossim, reclamá-las de quem ilegalmente reclamá-las de quem ilegalmente os detenha,e até mesmo se opor  aos próprios pais biológicos e legalmente reconhecidos (art. 33, caput). Por outro lado,à família detentora da guarda é vedado nomear-lhes tutor, quer por testamento ou outro documento autêntico, visto que não foi ainda afastado o pátrio poder dos pais originários.
A guarda transfere ao guardião, a título precário, os atributos constantes do art. 1.634, I, II, VI e VII, do CC de 2002, não implicando prévia suspensão ou destituição do pátrio poder e apenas exigindo procedimento contraditório quando houver discordância de qualquer dos genitores.
Quando o artigo menciona os termos “a colocação far-se-á”, embora de aparente tom imperativo,apenas descreve o modo como isto ocorre, pois admite que isto se dê quer espontaneamente- ou seja, a admissão natural,pura e simples, por outra família, de um elemento advindo de uma família alheia, parente próxima ou não – como,também, pela busca nos  cadastros existentes nos fóruns, onde se habilitam, à espera de uma criança, inúmeros casais desejosos de recebê-la no seio de sua família. Na verdade, aquela locução pretende explicar que o reconhecimento daquela situação de fato ganha corpo no âmbito jurídico mediante os institutos da guarda,tutela ou adoção, isto é, o reconhecimento legal e documentado daquela colocação (situação) far-se-á perante o Poder Judiciário, conferindo-lhe, agora, direito de oposição até mesmo contra os pais e terceiros, através dos institutos acima mencionados. É o que se depreende exatamente do conteúdo do art. 33, § 1° do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Estabelece, por outro lado, uma limitação ao poder jurisdicional, que fica adstrito a escolher entre aquelas opções de guarda, tutela ou adoção quando se pretender colocar uma criança em família substituta, não podendo criar outra situação jurídica, por mais interessante que lhe pareça, para resolver uma situação que se lhe apresente,garantindo, assim, ao pretenso candidato conheceras regras que norteiam cada instituto e dentro delas se comportar na defesa do seu direito. Lembramos este fato apenas para que se espanque eventual dúvida quanto à possibilidade de mesclar tais institutos ou criar, ao arrepio da lei, nova situação jurídica, que contenha mais ou menos direitos do que aqueles previstos nos mesmos institutos, como, p. ex., pretender-se dar uma adoção limitada, sem reflexos financeiro se sucessórios, ou admiti-la como reversível, tal como a adoção civil (art. 373 do CC de 1916), ou atribuir ao guardião o poder de consentir com o casamento daquele posto sob sua guarda, vez que tal atribuição, própria e exclusiva do detentor do pátrio poder,não é própria e concedida pelo instituto da guarda ao seu titular, como se vê da definição contida no capuf do art. 33 e seus três parágrafos.
Vicente Ráo, no seu primoroso livro O Direito e a Vida dos Direitos (v. I, t. I, n. 192), depois de lembrar que se discute se pode ou não o juiz, no desenvolvimento de sua função interpretativa, criar normas jurídicas e exercer, destarte, certa atividade criadora do direito, assevera como certo que “ao juiz nenhuma outra função incumbe além da de aplicar as leis existentes, que ele não pode alterar nem substituir”. Assim, aquele termo melhor se entende pela preposição “mediante” (“prep. por meio de, por intermédio de; com auxílio ou intervenção de”  Novo Dicionário Aurélio, 1ª  ed., Nova Fronteira, p. 90), que lhe segue, demonstrando a forma, o meio, o modo como se processa a colocação.
Deste modo, procede-se à colocação em família substituta, segundo a previsão legal do art. 28, sob a égide dos institutos da guarda, tutela ou adoção, que não nos cabe, aqui, analisar,  independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente.
Este advérbio explicita que é possível a colocação em família substituta em qualquer situação jurídica em que se encontre a criança ou adolescente, bem como que as normas sobre guarda, tutela e adoção aplicam-se a toda e qualquer criança ou adolescente (Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado, Cury, Garrido e Marçura, Ed. RT, 199I), retirando o asco que por vezes se nutria ao tratar-se de criança ou adolescente posto sob a guarda, tutela ou adoção, preconcebendo que este fosse herdado de família dissolvida, órfão abandonado, na chamada “situação irregular”, ou de pais tão irresponsáveis que lhes foi retirado o pátrio poder.
Mesmo porque é muito comum encontrar-se jovens postos sob a guarda de um casal tão-só pela circunstância eventual de se encontrarem estudando em outro país, diverso daquele de sua origem, através de um dos inúmeros intercâmbios culturais atualmente existentes, ou simplesmente porque, oriundos de uma região desprovida de escolas, hospitais ou até mesmo recursos para o trabalho, deslocam-se para centros que lhes ofereçam melhores condições de atendimento às suas expectativas, e, assim, colocam-se sob a guarda de famílias que os amparam, protegem, zelam e acolhem durante aquela permanência, sem que, com isso, se tenha qualquer daquelas situações grotescas acima citadas, mas muito pelo contrário.
A situação jurídica da criança a que se refere o artigo, obviamente, circunscreve-se ao teor do assunto ali tratado, e, por isto mesmo, deve ser analisada caso a caso, quer se pretenda a guarda, tutela ou adoção, vez que cada instituto possui requisitos próprios, estes, sim, com sua limitação definida em lei (art. 98 do ECA).
Pode-se, finalmente, entender que a Justiça da Infância e da Juventude é competente para conhecer de todos os pedidos de adoção de criança ou adolescente,estando limitada tão-somente, nos casos de guarda ou tutela, às hipóteses do art. 98 (art. 148, III e parágrafo único, “a”).
Frise-se, também, que tanto a criança como o adolescente, definidos assim no art. 2° do Estatuto, podem ser postos sob a guarda, tutela ou adoção, excluindo-se da apreciação sob a égide deste Estatuto a pessoa maior de18anos,exceção feita à situação contemplada pelo art. 40 do mesmo Estatuto, quando,então, somente se admitirá a adoção prevista no Código Civil (arts.368e sS.,com a modificação introduzida pelo art. 227, § 6°,da CF).
Termos desta Lei refere-se não só aos requisitos legais exigidos pelo instituto que se pretende utilizar mas, também, ao procedimento necessário para realizar tal colocação, o qual encontra-se regulado nos arts. 165 a 170do Estatuto.
Importante lembrar, todavia, que a colocação em família substituta é vista sempre em caráter de excepcionalidade e necessidade,como anota Olympio de Sá Sotto Maior Neto em palestra proferida no I Encontro Nacional de Promotores de Justiça Curadores de Mendres, ocorrido em agosto/ 89,por constituir direito de toda criança ou adolescente ser criado e educado no seio da família natural, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre de presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes (art. 19 do ECA).
O acrescer do termo necessidade ao termo legal excepcionalidade serve muito bem para advertir e precaver contra medidas desnecessárias, que “provoca a perda do sagrado direito ao exercício da paternidade e da maternidade pelos deserdados da fortuna”, como se referia o eminente magistrado Antônio Fernando do Amaral em sua obra “Anotações para uma análise crítica ao Código de Menores”, in Anais do 11Encontro da Associação de Juízes de Direito e Promotores de Justiça do Estado do Paraná(Curitiba, Gráfica da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná, 1987,p. 34).
Portanto, a colocação em lar substituto somente deve ser acolhida quando revestir-se de necessidade, sem perder de vista o contido no art. 23do Estatuto, que repele a idéia de perda ou suspensão do pátrio poder quando o motivo único for à falta ou carência de recursos materiais da família de origem, que deve, então, ser incluída em programas oficiais de auxílio, buscando a manutenção da criança em seu habitat natural.
Analisemos, agora, o § 1° do art. 28.
Sempre que possível, informa a freqüência com que deve ser adotada a providência de indagar à criança ou ao adolescente sobre sua opinião a respeito da família a que vai pertencer, isto é, toda vez que houver a possibilidade de eles se manifestarem, deverão sempre ser ouvidos, não se referindo esta possibilidade a atributo pertinente ao juízo ou à ocasião processual, mas à condição de a criança ou adolescente manifestar-se a respeito de ato que vai diretamente influenciá-los dali em diante.
Isto fica mais claro ainda por seguir-se o mandamento, e não a opção legal, traduzida no termo deverá, sinalizando que trata-se de ordem, obrigação, e não faculdade concedida ao juízo de colher a opinião daquele posto sob uma família substituta. Assim, desde que possível colher-se tal manifestação de vontade, esta deverá ser colhida, pois o mandamento é imperativo quando a criança ou adolescente tem condições de se expressar e, de qualquer modo, indicar sua preferência.
Se, nos casos usuais de guarda, normalmente pleiteados para obtenção de benefícios previdenciários ou para fins escolares ou trabalhistas, pode-se compreender que na prática não se colha tal manifestação, mais em razão da urgência da medida que só pelo teor de sua solicitação, percebe-se que visa a beneficiar a criança ou adolescente, e não lhe restringe direitos; ao contrário, em todos os casos de tutela e adoção isto se torna imprescindível, cuidando, entretanto, o magistrado de colocar a questão com o devido tato, mormente nos casos que envolvam a adoção de criança ou adolescente que ainda não tenham sido informados convenientemente de sua situação adotiva, o que, é óbvio, poderá causar-lhes traumas psíquicos irreparáveis.
Este mandamento torna-se indeclinável exatamente nos casos de adoção de adolescentes, como se vê do teor do art. 45, § 2°, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual impõe ao juiz obter o seu consentimento.
Assim, podendo a criança ou adolescente exprimir sua vontade, deve o juiz colhê-la e sopesar em sua decisão esta manifestação de vontade a respeito de ir para aquela família substituta, ou de ficar onde se encontra, ou, ainda, preferir outra família substituta, tudo em função de facilitar a adaptação da criança ou adolescente em seu novo lar. Isto já vinha sendo observado pelos nossos Tribunais, em inúmeros julgados, quando examinavam questões relacionadas à alteração de guarda de filhos: “Se a prova não convence no sentido de ser benéfica ao menor a alteração da guarda, há que ser respeitada a opção por ele próprio manifestada” (TJSP, Ap. 76.456, 3ªC., j. 24.3.87, rel. Des. Toledo César, RT 620/65).
No mesmo sentido alinha-se, entre tantos outros, o acórdão publicado na RT 611/98.
Muito embora isto não signifique que o magistrado fique adstrito àquela opinião, é óbvio que, para contrariá-la, terá agora que fundamentar sua decisão, de molde a justificara disposição diversa daquela manifestada pelo consultado.
Indica, sem dúvida, a sensibilidade de que deve ser dotado o julgador na área da infância e da juventude, e, mais do que possuir esta sensibilidade, agora, o dever de agir em fina sintonia com ela, tudo em prol do bem estar daquela criança ou adolescente posto sob seus olhos.
É o agir afinado com o sentimento de que é dotado aquele ser necessitado de providências judiciais, para ver restabelecido o seu integral direito, eventualmente tolhido pela ausência, omissão, falta ou abuso dos pais,da sociedade ou do Estado, ou pela sua própria conduta.
É o reconhecimento do direito da criança e do adolescente de expressar sua opinião a respeito daquilo que fatalmente os atingirá, pois, dependendo do entrosamento maior ou menor com a família substituta, poderá o julgadora ferir a conveniência da sua colocação naquele meio.
Possibilita, de outro modo, observar a ascendência da família substituta sobre a criança ou o adolescente, permitindo-lhe impingir maior ou menor vigilância, educação, obediência e respeito mútuo, evitando, de igual modo, colocar uma criança ou adolescente no seio de família onde os costumes ou a desorganização familiar contribuam para a deformação de sua personalidade, o que, se, por um lado, poderá ser motivo de muita satisfação ao adolescente já transviado nos padrões de comportamento, por certo evidenciará que não se trata de local mais adequado para emendá-lo. Isto é o que o termo devidamente enseja ao magistrado ponderar, pois cabe-lhe atribuir o valor devido àquela entrevista, de molde a melhor atender às necessidades de formação, amparo e cuidados com aquela criança e adolescente.
Atentamos para providencial lembrança de Antônio Fernando do Amaral e Silva em seu artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo> em 22.8.90, em que frisava: “A preocupação com a singeleza de certas regras do Direito do Menor, com o abandono de princípios fundamentais do Direito,submetido o intérprete e aplicador de suas normas apenas ao  melhor interesse, não é nova e nem exclusiva mente brasileira. Estrangeiros como Alenka Selhi, Collete Somerhaussen, Ubaldino Cavento Solari, Luiz Rodrigues Manzanera, entre outros, insistem em que as regras do devido processo legal devem ser invocadas para que a jurisdição não se converta em centro de poder ilimitado”.
Donde extraímos que, por constituir-se em obrigação legalmente prevista, deve sempre ser obedecida em todos os procedimentos de colocação em família substituta, ainda que, sob a inspiração do antigo Código do Menor,  se pretenda aplicar a nova legislação sob a égide do “melhor interesse”, muita vez ao arrepio da lei vigente, quando não de um mais acurado bom senso.
Observa-se que a oitiva da criança ou adolescente deve anteceder qualquer medida, ainda que provisória, para evitar-se sérios constrangimentos.
A respeito, com muita propriedade e invulgar desenvoltura, escreve Maria Lúcia V. Violante, psicóloga/psicanalista e professora da PUC/SP, in “O perfil psicossocial da criança e do jovem marginalizados”, publicado em Cadernos Fundap, Infância, Adolescência, Pobreza, Temas de um Brasil Menor, 18/47, São Paulo, 1990:
“Em um nível, a compreensão desses menores passa, necessariamente, por suas condições objetivas de vida: uma vida marcada por múltiplas privações materiais, nutricionais e às vezes afetivas; por rejeições – às vezes familiar e quase sempre social; por coerções extremas – às vezes no âmbito familiar e sempre no institucional; por representações e ações sociais que os fazem sentir-se pessoas sem valor. Tudo isso ocorre de modo complementar ou não nos âmbitos familiar e institucional e nas, ruas.
“Em outro nível, de acordo com a Psicanálise, todos nós nos constituímos como sujeitos através de experiências gratificantes; e frustrantes, em grau ótimo. Tais experiências contribuem para a organização do eu e para a nossa adaptação à realidade. Experiências excessivamente frustrantes – como separações, perdas significativas, rejeições, agressões físicas e psicológicas – contribuem para a constituição de um eu agressivo, ambivalente e precocemente defensivo, diz Klein (1982). Essa agressividade poderá ser externalizada em atos anti-sociais ou em comportamentos submissos, extremamente dóceis e até aplacadores, melancólicos e mesmo suicidas. Winnicott (1987) vê no comportamento delinqüencial juvenil um grito de SOS à sociedade; isto ocorre quando há não só uma perda do lar, uma perda afetiva, mas um verdadeiro desapossamento, diz ele.”
Importantíssimo, como se vê, que a ação judicial de colocação em família substituta não contribua uma vez mais com o “desapossamento” sutil, que se pode eventualmente estar impingindo à criança ou adolescente, os quais, se previamente consultados, poderão indicar a temperatura afetiva em que se encontram em relação à família que os acolhe.
Com o seu peculiaríssimo devotamento à causa da infância e da juventude, alertava com insistência o nosso eminente Procurador de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Curadoria da Infância e da Juventude do Estado de São Paulo, Dr. Munir Cury, durante palestra proferida no I Encontro Nacional de Curadores de Menores do Estado de São Paulo, em outubro/87, sobre a necessidade de especialização do magistrado e do promotor de justiça que atue na área da infância e juventude:
“A medida do que já se discorreu a respeito da formação do curador de menores deve ser também estendida aos juizes de menores.
“É altamente desejável que se imponha ao juiz, além de formação jurídica, a formação especializada.”

E lembra, ainda, que: “A organização inglesa exige de cada juiz de menores que tenha amor pelos jovens, simpatia por seus interesses, preocupação por suas dificuldades; e uma grande soma de bom senso'” (W. E.Cavenagh, Juvenile Courts, the Child and the Law).
E, após citar que na Guatemala exige-se que os juizes tenham idade superiora 35 anos e, de preferência, sejam chefes de família, e, no Peru, sejam casados e pais de família, tendo preferência os que tenham estudos especiais sobre menores e família, lembra também que no Brasil a especialização tem sido recomendada em vários Encontros Nacionais de Juízes de Menores e pela XI Semana de Estudos sobre Problemas de Menores, organizada pelo TJSP, nos seguintes termos: “Exigir, tanto quanto possível, a especialização de juízes, membros do Ministério Público, dos órgãos técnicos e administrativos que integrem os juizados de menores” (Munir Cury, Temas de Direito do Menor; O Ministério Público e a Justiça de Menores, Ed. RT, 1987, p. 18).
Entendemos importante este alerta, que cada vez encontra maior ressonância em todos os segmentos da sociedade, justamente para dotar aqueles que atuam na Justiça da Infância e Juventude de instrumentos mais adequados à percepção daquilo que podem e pretendem oferecer a esta infância e juventude que diariamente bate às portas dos fóruns; muitos temerosos pela imponência dos prédios e a figura do “homem de capa preta”, como denominam magistrados e promotores de justiça; alguns sem nem mesmo entender o que se passa à sua volta, e outros pretensiosos de arrostar toda e qualquer autoridade, mas todos necessitados de um cuidado especialíssimo, para reintegrarem-se como cidadãos inteiros à sociedade.
O § 2° do art. 28 relaciona exemplificativamente os itens que devem ser considerados na apreciação do pedido de guarda, tutela ou adoção.
Dissemos exemplificativamente pois é inconcebível que possa o magistrado cingir-se apenas a estes indicadores, ou seja, grau de parentesco e relação de afetividade ou afinidade, quando também outros dados podem e devem ser considerados, tais como condições morais, econômicas, sociais, financeiras, da família receptora, bem como a sua estabilidade, interesse e até mesmo a sua localização – p. ex., se a pretensa família guardiã residir em local afastado da cidade, dificultando sobremaneira a freqüência escolar da criança, ou se, embora dotada de outros requisitos, resida próximo a local perigoso ou de reputação duvidosa, demonstrando, assim, ser desaconselhável a permanência da criança ou adolescente com tal família.
Porém, deve ser observada a maior proximidade de parentesco, sem distinção ou preferência por qualquer lado, quer paterno ou materno, como há décadas prelecionava o Código Civil de 1916, reafirmado pelo CC de 2002: “Art. 1.731. Em falta de tutor nomeado pelos pais incumbe a tutela aos parentes consangüíneos do menor,por esta ordem: I – aos ascendentes, preferindo o de grau mais próximo ao mais remoto; II- aos colaterais até o terceiro grau, preferindo os mais próximos aos mais remotos, e, no mesmo grau, os mais velhos aos mais moços; em qualquer dos casos, o juiz escolherá entre eles o mais apto a exercer a tutela em beneficio do menor”.
Tal predileção, ainda que fundada em centenária observação, pode e deve ser desobedecida quando não se harmonizar com o segundo parâmetro oferecido pelo mesmo parágrafo, ou seja, a relação de afetividade ou afinidade entre a criança ou adolescente e a família substituta.
Entendemos, isto sim, que tais requisitos devem ser lembrados de forma harmônica, para que ofereçam resposta mais próxima daquela que melhor auxilie a criança ou o adolescente a se ajustar à sua nova família substituta.
Aliás, não é outra senão a preocupação do legislador ao explicar a finalidade deste comando legal: “a fim de evitar ou minorar as conseqüências da medida”.
De novo nota-se o acentuado direcionamento da visão legislativa em atentar para o ajuste perfeito, ou o mais perfeito possível, da criança ou adolescente posto sob família substituta, de modo a amenizar o clima que envolve a aplicação da medida.
Isto já vinha se acentuando dentro do Direito de Família em julgados, como: “… a modificação de guarda acarreta o surgimento abrupto de novas contingências para a criança, nem sempre precatada a enfrentá-las sem o desgaste do imprevisto. A sensibilidade infantil tem canais relativos distintos daqueles que informam a identidade psicológica do adulto. Sempre que possível, e salvo quando a mudança represente alternativa irrecusável, deve ser mantido o statu quo. Eventuais alterações de comportamento ulteriormente positivadas podem aconselhar intervenção judicial de distinto efeito, porque inexiste coisa julgada material no decisório prolatado em face de modificação de guarda” (RJTJESP – Lex 120/208).

 

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

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ECA comentado: ARTIGO 28 / LIVRO 1 – TEMA: Família
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