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ECA: ARTIGO 4 / LIVRO 1 – TEMA: DEVER DE TODOS

 

Comentário de Ilanud

 

Há uma relação direta entre o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente e o artigo 227 da Constituição Federal. Até certo ponto, o artigo do ECA é praticamente uma transcrição do dispositivo constitucional, ao qual se adiciona a responsabilidade da comunidade e o direito ao esporte, e se esboça, em seu parágrafo único, materializações para a garantia da prioridade absoluta.

Assim sendo, a virtude do artigo 4º reside no fato dele incorporar à doutrina da proteção integral o princípio constitucional da prioridade absoluta.

A ideia da proteção integral está evidentemente presente no caput do artigo 4o do ECA. Ele elenca um conjunto de deveres atribuídos à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao Poder Público para a garantia dos diversos direitos fundamentais da criança e do adolescente – direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais tratando-os como indivisíveis e interdependentes. A integralidade verifica-se, portanto, nesta diversidade de direitos protegidos de forma interligada.

O caput do artigo 4º também impõe uma co-responsabilidade entre a família, a comunidade, a sociedade e o Poder Público pela garantia dos direitos da criança e do adolescente. Trata-se de uma responsabilidade solidária na medida em que, a cada um destes protagonistas, atuando em dimensões distintas, cabe a promoção e proteção de todos os direitos assegurados em lei. Neste caso, a integralidade pode ser verificada através das ações amplas, diversificadas e interdependentes realizadas por estes protagonistas no que tange aos deveres que possuem para garantia dos direitos da população infanto-juvenil.

Tanto a Constituição como o ECA, determinam que ações em prol da Proteção Integral devem ser realizadas com prioridade absoluta. Esta sistematização justifica-se pela concepção legal e paradigmática de que a noção geral de prioridade absoluta se funda no respeito à peculiar condição de pessoa em desenvolvimento1.

Machado explica que como “não é possível dar conceituação rígida à prioridade absoluta no plano constitucional, os contornos dela necessariamente devem vir ditados por uma multifacetada legislação ordinária”2. Neste sentido, cumpriu ao ECA o papel de delinear estes contornos no parágrafo único do seu artigo 4o.

Deste modo, enquanto a Proteção Integral é traçada especialmente no caput do artigo 4º, a prioridade absoluta é a marca do seu parágrafo único. Há de se observar que a ‘primazia’, a ‘precedência’, a ‘preferência’ e a ‘destinação privilegiada’, arroladas como mecanismos de garantia à prioridade absoluta no referido parágrafo, não consubstanciam um rol taxativo, mas sim enunciativo. Este parágrafo ambiciona apenas estabelecer um panorama de como se deve atuar para atender à normativa da prioridade absoluta. Trata-se de um patamar mínimo, que exatamente por não ser exaustivo deixa em aberto outras possibilidades e situações em que admissível a priorização dos interesses da população infanto-juvenil, o que é extremamente interessante na medida em que expande as situações nas quais seja possível esta priorização.

Desta forma, por ordem do parágrafo único do artigo 4º, ficam responsáveis os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário pela observância da garantia de prioridade por ele estabelecida para a formulação e execução de políticas públicas de atenção à criança e ao adolescente.

A conjugação da doutrina da Proteção Integral com o princípio da prioridade absoluta suscitou algumas controvérsias com o advento do Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741 de 2003, cuja redação, inclusive, muito se assemelha ao ECA. O artigo 3º do Estatuto do Idoso prevê que:

Art. 3º – É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitário. (negritamos). Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: I  atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviço à população (…)

Ora, como equacionar então a prioridade absoluta prevista no artigo 4º do ECA com a prioridade absoluta do artigo 3º do Estatuto do Idoso? Afinal, a prioridade é de quem? Da criança e do adolescente ou do idoso?

Sobre este assunto, a Constituição Federal confere absoluta prioridade somente aos direitos das crianças e dos adolescentes (artigo 227). Ou seja, a Constituição não faz qualquer menção expressa à prioridade absoluta aos direitos dos idosos (artigo 230).

Como a prioridade absoluta dos idosos foi contemplada apenas em legislação infraconstitucional, uma interpretação literal dos artigos 227 e 230 da Constituição fundada na concepção hierarquizada das normas do ordenamento jurídico faz crer que prevalece a prioridade absoluta da criança e do adolescente em relação a dos idosos.

Por outro lado, uma interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais suscita outra visão. O princípio constitucional da dignidade humana, previsto no artigo 1º, inciso III do texto constitucional, poderia ser clamado para proteção da prioridade absoluta do idoso em nível constitucional.

Controvérsias jurídicas à parte, o importante é termos em mente que o artigo 4º do ECA incorpora, com muita propriedade, o princípio constitucional da prioridade absoluta à doutrina da proteção integral. É possível concluir, neste sentido, que a proteção integral e a prioridade absoluta são, da mesma forma que os direitos das crianças e dos adolescentes, indivisíveis e interdependentes dentro do ECA.

1 MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos. 1ª ed. São Paulo: Manole, 2003. p. 388.
2 Idem. p. 390.

ARTIGO 4/ LIVRO 1 – TEMA: DEVER DE TODOS

 

Comentário de Dalmo de Abreu Dallari

Jurista/São Paulo

A Constituição brasileira de 1988 inspirou-se nas mais avançadas conquistas de caráter humanista quando fixou a filosofia e os objetivos que devem servir de parâmetros à legislação brasileira sobre a criança e o adolescente. Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, aprovada pela ONU em 1948, fez referência expressa aos cuidados e à assistência especiais a que tem direito a criança, dispondo enfaticamente, no art. 25, que “todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”.

Tomando mais precisas e mais minuciosas as normas relativas aos direitos fundamentais da pessoa humana, a própria ONU aprovou, em 1966, os chamados Pactos de Direitos Humanos, compreendendo o Pacto de Direitos Econômicos e Sociais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos. Neste último encontram-se inúmeros dispositivos referentes à condição jurídica e ao tratamento que deve ser dispensado aos menores de idade, havendo especial menção à criança no art. 24, assim redigido: “Toda criança tem direito, sem discriminação alguma por motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião, origem nacional ou social, posição econômica ou nascimento, às medidas de proteção que sua condição de menor requer, tanto por parte de sua família como da sociedade e do Estado”.

Dois pontos devem ser, desde logo, postos em evidência nessas diretrizes de âmbito mundial, inspiradoras da legislação interna dos Estados: a exigência de absoluta igualdade de tratamento para todas as crianças, sem privilégios e discriminações, o que se aplica tanto ao oferecimento de proteção e garantias quanto à imposição de restrições e de medidas disciplinares; são igualmente responsáveis pela criança a família, a sociedade e o Estado, não cabendo a qualquer dessas entidades assumir com exclusividade as tarefas, nem ficando alguma delas isenta de responsabilidade.

Foi precisamente essa a orientação adotada pela Constituição brasileira de 1988, como está expresso, especialmente, no art. 227 e seus parágrafos, nos quais se estabelecem regras precisas sobre os direitos e deveres imediatamente relacionados com a criança e o adolescente. Aí já se encontra a afirmação da responsabilidade da família, da sociedade e do Estado pela garantia dos direitos da criança e do adolescente, bem como a enumeração desses direitos, nos seguintes termos: “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Esses direitos, segundo a Constituição, devem ser assegurados com prioridade, completando-se com a exigência de proteção de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Solidariedade humana: necessária e obrigatória

O art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, em primeiro lugar, que são deveres da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes e dar-lhes a proteção essencial.

As entidades aí referidas são as formas básicas de convivência. Ao acrescentar a comunidade à enumeração constante da Constituição, o legislador apenas destacou uma espécie de agrupamento que existe dentro da sociedade e que se caracteriza pela vinculação mais estreita entre seus membros, que adotam valores e costumes comuns. Foi bem inspirada essa referência expressa à comunidade, pois os grupos comunitários, mais do que o restante da sociedade, podem mais facilmente saber em que medida os direitos das crianças e dos adolescentes estão assegurados ou negados em seu meio, bem como os riscos a que eles estão sujeitos.

É a comunidade quem recebe os benefícios imediatos do bom tratamento dispensado às crianças e aos adolescentes, sendo também imediatamente prejudicada quando, por alguma razão que ela pode mais facilmente identificar, alguma criança ou algum adolescente adota comportamento prejudicial à boa convivência.

A responsabilidade da família, universalmente reconhecida como um dever moral, decorre da consangüinidade e do fato de ser o primeiro ambiente em que a criança toma contato com a vida social. Além disso, pela proximidade física, que geralmente se mantém, é a família quem, em primeiro lugar, pode conhecer as necessidades, deficiências e possibilidades da criança, estando, assim, apta a dar a primeira proteção. Também em relação ao adolescente, é na família, como regra geral, que ele tem maior intimidade e a possibilidade de revelar mais rapidamente suas deficiências e as agressões e ameaças que estiver sofrendo.

Por isso, é lógica e razoável a atribuição de responsabilidade à família. Esta é juridicamente responsável perante a criança e o adolescente, mas, ao mesmo tempo, tem responsabilidade também perante a comunidade e a sociedade. Se a família for omissa no cumprimento de seus deveres ou se agir de modo inadequado, poderá causar graves prejuízos à criança ou ao adolescente, bem como a todos os que se beneficiariam com seu bom comportamento e que poderão sofrer os males de um eventual desajuste psicológico ou social.

Ao mencionar o dever do Poder Público em relação à criança e ao adolescente, o Estatuto quer referir-se ao Estado, por todas as suas expressões. Evidentemente, não se poderia atribuir responsabilidade, por meio de lei, a uma entidade que não tivesse competência constitucional para tratar do assunto. Por esse motivo, é importante verificar o que dispõe a Constituição sobre competências em relação a crianças e adolescentes.

No art. 24 está prevista a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre “proteção à infância e à juventude” (inc. XIV). Esse dispositivo não se refere aos cuidados e à proteção da infância e da juventude, mas apenas à legislação, sendo oportuno esclarecer que não ficou excluída a possibilidade de leis municipais sobre a matéria, pois a própria Constituição, no art. 30, estabelece que compete aos municípios suplementar a legislação federal e estadual.

Na realidade, não existe qualquer disposição constitucional reservando à União, aos Estados ou aos Municípios a competência para a prestação de serviços visando, especificamente, à garantia dos direitos ou à proteção da infância e da juventude. E, pelo art. 23, que enumera as matérias para as quais a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal são conjuntamente competentes, encontram-se vários incisos que incluem os cuidados de crianças e adolescentes.

Em tal sentido podem ser referidos, especialmente, o inc. II, que manda cuidar da saúde e assistência pública, e o inc. V, mandando proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência. Merece destaque o inc. X, que dá a todos a competência comum para combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.

Assim, pois, todos esses setores da organização pública são responsáveis pela adoção de providência que ajudem as crianças e os adolescentes a terem acesso aos seus direitos, recebendo a necessária proteção.

Finalmente, cabe dizer alguma coisa sobre a responsabilidade da sociedade em geral, segundo a expressão do art. 4º do Estatuto.

A solidariedade humana é uma necessidade natural e um dever moral de todos os seres humanos. No quarto século antes de Cristo o filósofo grego Aristóteles escreveu que o homem é um “animal político”, querendo dizer, com isso, que o ser humano, por sua natureza, não vive sozinho, tendo sempre a necessidade da companhia dos semelhantes. Através dos séculos isso foi reafirmado por muitos pensadores, tendo sido ressaltado que, além das necessidades materiais, existem outras que são comuns a todos os seres humanos e que impedem as pessoas de se realizarem sozinhas, vivendo em completo isolamento.

Atualmente, com base na observação dos fatos e utilizando conhecimentos científicos, pode-se afirmar que a vida em sociedade é uma exigência da natureza humana. Com efeito, o ser humano é um animal que, após o seu nascimento, por muitos anos não consegue obter sozinho os alimentos de que necessita para sobreviver. E, no mundo de hoje, com a maioria das pessoas vivendo nas cidades, são muito raros os que produzem os alimentos que consomem, sendo necessária toda uma rede de produtores, transportadores e distribuidores para evitar que muitos morram de fome.

Outras necessidades materiais, como um lugar de habitação e trabalho abrigado dos rigores da natureza, vestimentas protetoras, meios de locomoção, tudo isso faz parte das necessidades materiais, que só podem ser atendidas mediante uma troca de bens e de serviços.

Ao lado disso, existem necessidades espirituais, intelectuais e afetivas que a pessoa humana só satisfaz na convivência com outras pessoas. Entre estas se inclui a necessidade de expor os pensamentos e de dialogar, que, com maior ou menor intensidade, é sentida por todas as pessoas.

Como fica evidente, todos dependem de muitos outros para sobreviver, e não há uma só pessoa que não receba muito, direta ou indiretamente, das demais. Os que são mais pobres recebem menos e os que vivem com maior conforto e gozam de padrão de vida mais elevado recebem muito mais, não havendo, entretanto, quem nada receba dos outros.

Aí está o fundamento da solidariedade e da responsabilidade. Como as crianças e os adolescentes são mais dependentes e mais vulneráveis a todas as formas de violência, é justo que toda a sociedade seja legalmente responsável por eles. Além de ser um dever moral, é da conveniência da sociedade assumir essa responsabilidade, para que a falta de apoio não seja fator de discriminações e desajustes, que, por sua vez, levarão à prática de atos anti-sociais.

A preferência e a prática dos direitos

O apoio e a proteção à infância e juventude devem figurar, obrigatoriamente, entre as prioridades dos governantes. Essa exigência constitucional demonstra o reconhecimento da necessidade de cuidar de modo especial das pessoas que, por sua fragilidade natural ou por estarem numa fase em que se completa sua formação, correm maiores riscos. A par disso, é importante assinalar que não ficou por conta de cada governante decidir se dará ou não apoio prioritário às crianças e aos adolescentes. Reconhecendo-se que eles são extremamente importantes para o futuro de qualquer povo, estabeleceu-se como obrigação legal de todos os governantes dispensar-lhes cuidados especiais.

Essa exigência também se aplica à família, à comunidade e à sociedade. Cada uma dessas entidades, no âmbito de suas respectivas atribuições e no uso de seus recursos, está legalmente obrigada a colocar entre seus objetivos preferenciais o cuidado das crianças e dos adolescentes. A prioridade aí prevista tem um objetivo prático, que é a concretização de direitos enumerados no próprio art. 42 do Estatuto, e que são os seguintes: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Como bem observou François Rémy, presidente do Comitê Francês para a UNICEF, deve-se assegurar às crianças e aos adolescentes não somente a vida, mas, também, a qualidade da vida. A rigor, todos os direitos aí especificados podem ser considerados como complementos do direito à vida, que não pode ser concebida apenas como a sobrevivência física, mas exige a possibilidade de pleno desenvolvimento físico, psíquico e intelectual, com satisfação das necessidades materiais, afetivas e espirituais. Além disso, é indispensável que inclua também a preparação da criança e do adolescente para a convivência pacífica e harmoniosa com os familiares e a comunidade, bem como para prover com liberdade e dignidade sua própria subsistência, ajudando, ainda, os que necessitarem de apoio.

Um ponto que deve ser rigorosamente observado é que se trata de assegurar direitos de crianças e adolescentes, incluindo, portanto, analfabetos e pessoas desinformadas e com pouca ou nenhuma possibilidade de iniciativa. Por esse motivo, não basta a atitude formal de publicar informações, criar serviços ou simplesmente ficar à espera de que os titulares dos direitos procurem gozar deles. Assim, p. ex., as escolas públicas de ensino básico não devem limitar-se ao oferecimento de vagas, mas precisam ir bem mais adiante, procurando saber se na área de sua responsabilidade existem crianças que não freqüentam escola e buscando conhecer os motivos das ausências dos alunos matriculados.

Outro ponto que deve ser observado é a necessidade de permanente cooperação entre as entidades responsáveis pela efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes. Assim, as famílias e comunidades não podem ficar simplesmente passivas, sob pretexto de que a satisfação de determinado direito depende da criação de um serviço pelo Poder Público. Este, por seu lado, não pode permanecer omisso, por considerar que compete à família ou à comunidade tomar a iniciativa para que seja assegurado algum dos direitos da infância e da juventude. Todas as entidades referidas no art. 4º do Estatuto são solidariamente responsáveis pela efetivação dos direitos ali enumerados e, de uma forma ou de outra, sempre poderão tomar alguma iniciativa para que aqueles direitos se concretizem.

Garantia de prioridade

Complementando as disposições constitucionais e as exigências do art. 4º do Estatuto, foi acrescentado a este um parágrafo, enumerando alguns dos procedimentos indispensáveis para a garantia de prioridade exigida pela Constituição. Essa enumeração não é exaustiva, não estando, aí, especificadas todas as situações em que deverá ser assegurada a preferência à infância e à juventude, nem todas as formas de assegurá-la. A enumeração contida nesse parágrafo representa o mínimo exigível e é indicativa de como se deverá dar efeito prático à determinação constitucional.

A primeira garantia de prioridade, entre as especificadas no parágrafo único do art. 4º, consiste na “primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias”. Evidentemente, quando a lei fala em primazia, está supondo hipóteses em que poderá haver opção entre proteger ou socorrer em primeiro lugar as crianças e adolescentes ou os adultos. Isso pode ocorrer, p. ex., numa situação de perigo como, também, nos casos de falta ou escassez de água, alimentos ou abrigo, ou então nas hipóteses de acidente ou calamidade. Em todos esses casos, e sempre que houver a possibilidade de opção, as crianças e os adolescentes devem ser protegidos e socorridos em primeiro lugar.

A segunda situação em que a lei expressamente determina que seja garantida a prioridade à criança e ao adolescente é aquela em que se deve dar “precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública”.

Serviços públicos, de modo geral, são aqueles prestados diretamente pelos órgãos públicos ou por delegação destes. Se algum serviço for prestado, simultaneamente e no mesmo local, a crianças ou adolescentes e também a adultos, os primeiros devem ser atendidos em primeiro lugar. Essa regra deve ser interpretada com bom senso, para que a garantia de precedência referida nesse dispositivo não se converta na afirmação de um privilégio absurdo e injustificável. Pode servir como exemplo a situação em que uma criança seja levada a um pronto-socorro, para ser tratada de um pequeno ferimento, lá chegando ao mesmo tempo em que chega um adulto em estado muito grave. Se houver apenas um médico no local, ninguém há de pretender que a criança receba a assistência em primeiro lugar.

A precedência estabelecida em favor da criança e do adolescente tem como fundamentos sua menor resistência em relação aos adultos e suas reduzidas possibilidades numa competição para o recebimento de serviços. Por força da leio próprio prestador de serviços deve assegurar aquela precedência, não permitindo que um adulto egoísta e mal-educado procure prevalecer-se de sua superioridade física.

Além de se referir à precedência no recebimento de serviços públicos, o Estatuto menciona também os “de relevância pública”. Esse qualificativo foi usado expressamente na Constituição, no art. 197, em relação às ações e aos serviços de saúde, podendo também ser assim considerados, por extensão, os que forem prestados ao povo para atendimento de necessidades essenciais, mesmo que o prestador seja um particular. O conceito jurídico de relevância pública só ficará bem claro depois de trabalhado pela doutrina e sedimentado pela jurisprudência, mas pode ser desde já invocado com base no sentido corrente da expressão.

A terceira precedência prevista expressamente no Estatuto é a atenção preferencial na formulação e na execução das políticas sociais públicas. Quem deve atender a essa exigência é, em primeiro lugar, o legislador, tanto o federal quanto o estadual e o municipal. Sendo todos competentes para legislar em matéria de saúde, podem fixar por meio de lei as linhas básicas dos respectivos sistemas de saúde, pois, embora a Constituição fale em “sistema único” de saúde, admite um setor público e outro privado, além de prever a competência comum da União, dos Estados e dos Municípios. Em conseqüência, cada esfera política deverá ter sua legislação própria, obedecidas as disposições constitucionais quanto às competências.

Tanto a formulação quanto a execução das políticas sociais públicas exigem uma ação regulamentadora e controladora por parte dos órgãos do Poder Executivo, a par da fixação de planos e da realização de serviços. No desempenho de todas essas atividades deverá ser, obrigatoriamente, dada precedência aos cuidados com a infância e a juventude. Será contrária à lei a decisão que não respeitar essa exigência, podendo, por isso, ter pedida sua anulação ou suspensão pelo Poder Judiciário, através de mandado de segurança, ação popular ou ação civil pública, dependendo das circunstâncias. De acordo com as particularidades de cada caso, a ação poderá ser proposta por qualquer cidadão, por pessoa ou entidade diretamente interessada ou, ainda, pelo Ministério Público.

Por último, o parágrafo único do art. 4º estabelece que a garantia de prioridade para crianças e adolescentes deve ser assegurada pela “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”.

Essa exigência legal é bem ampla e se impõe a todos os órgãos públicos competentes para legislar sobre a matéria, estabelecer regulamentos, exercer controle ou prestar serviços de qualquer espécie para promoção dos interesses e direitos de crianças e adolescentes. A partir da elaboração e votação dos projetos de lei orçamentária já estará presente essa exigência. Assim, também, a tradicional desculpa de “falta de verba” para a criação e manutenção de serviços não poderá mais ser invocada com muita facilidade quando se tratar de atividade ligada, de alguma forma, a crianças e adolescentes. Os responsáveis pelo órgão público questionado deverão comprovar que, na destinação dos recursos disponíveis, ainda que sejam poucos, foi observada a prioridade exigida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Aí estão as principais exigências que decorrem diretamente do art. 4º do Estatuto, com seu parágrafo único. Evidentemente, a lei não poderia prever todas as circunstâncias e descer a pormenores sobre cada uma delas. Mas a leitura atenta desses dispositivos fornece elementos suficientes para que se perceba seu espírito e sua abrangência. Em caso de dúvida sobre seu alcance, deverá ser feita a interpretação observando-se que se trata da afirmação e garantia de direitos fundamentais, razão pela qual cabe perfeitamente a aplicação por extensão ou analogia, nunca podendo ser admitida uma interpretação restritiva.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, organizado por M. Cury, A.F. Amaral e Silva e E. G. Mendez

  1. Fundamentos internacionais e constitucionais

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ECA comentado: ARTIGO 4/ LIVRO 1 – TEMA: Dever de todos
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