ECA: ARTIGO 57 / LIVRO 1 – TEMA: DIREITOS
Comentário de Maria Stela Santos Graziani
Pontifícia Universidade Católica/SP
“O poder Público estimulará pesquisas, experiências e novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental obrigatório.”
Este é o art. 57 do Estatuto da Criança e do Adolescente. “Artigo” pode ser concebido as diferentes maneiras e formas: como uma palavra que se junta aos substantivos para indicar o que se tomar em sentido determinado; o artigo pode ser definido (o, a, os, as) ou indefinido (um, uma, uns, umas); ou é parte integrante de uma lei ou código; ou período de uma carta, ou ainda, o principal artigo de um jornal, geralmente nas colunas iniciais da primeira página, etc.
Tomando seu significado definido (o, as, os, as), acrescido à sua junção aos substantivos, cremos que nomeia um ser, um sujeito concreto, definido e historicizado, de um lado. De outro, prescreve parte de uma lei ou código, que, como preceito, deriva do Poder (Legislativo, no caso), na relação constante e necessária entre fenômenos, que serão mirados a partir de uma coleção de regras e normas convencionalmente definidas de proceder numa dada sociedade. E, ainda, considerando como um “artigo” de jornal, de primeira página, de fundo, que precisa estar estampado nas primeiras páginas dos periódicos, da história de crianças e dos adolescentes do Brasil, que são obrigadas a trabalhar desde o primeiro berro, ao nascerem – aqui aflora a injustiça social mais clara e nítida da sociedade em que vivemos.
Embora saibamos que a escola representa uma possibilidade concreta à participação cultural e política em nossa sociedade, como, também, uma aspiração popular no sentido de melhoria social e material de vida, por que tem representado pouco ou quase nada para as crianças e adolescentes da classe popular?
O fracasso institucional escolar tem raízes históricas. Além das já mencionadas, ousamos elencar, dentre outras, o próprio acesso não democratizado à escola, a falta de qualidade do ensino, a inadequação na formação do educador, além da degradação das condições de seu trabalho – e não podemos esquecer da proposta “político-pedagógica” imposta e definida para sacramentar a incompetência, intelectual, emotiva e de aprendizagem, dos poucos que conseguem nela permanecer; materializada não só por currículo irreal, bem como por uma concepção metodológica, formal, mecanicista e aviltadora dos que participam do ato educativo.
Não podemos deixar de questionar, inclusive, os descaminhos estilhaçados do sistema educacional brasileiro, que traz em seu bojo os ranços e resquícios do autoritarismo, cujo modelo centralizador, legalista e tecnicista da educação “que privilegia o desenvolvimento econômico” exclui a participação política, realista e conseqüente da maioria da população, numa estreita relação com o agravamento da situação sócio-econômico da classe trabalhadora.
Levantadas sinteticamente as questões gerais que estão envolvidas no debate da educação brasileira, sem a pretensão de esgotá-las, analisemos algumas inquietações de ordem processual, do ponto de vista das crianças excluídas do ensino fundamental obrigatório e suas representações em relação à escola.
Reconstituir algumas das representações sobre a escola que as crianças têm é descobrir os sistemas de referência que foram se constituindo e que serviam e servem de guia para suas relações com o mundo, em particular com o mundo institucional escolar, ou seja, como lidam com este conflito, como o percebem, o sentem, como o questionam, criticam, e como expressam suas expectativas.
Ao ouvir meninos(as) de rua da cidade de São Paulo, num ambiente caloroso de amizade e alegria, apesar das contradições, deixam-nos em pasmo pedagógico quando nos questionam de maneira profunda e real, através e expressões, gestos e verbalizações, que nos remetem a reler, rever e redimensionar toda nossa prática educativa: “Não gosto da escola. Por que na escola só perguntam o que não sei? Nunca me perguntam o que eu sei”.
Nesta apresentação social da escola, em nossa inquietude surge uma questão fundamental amplamente discutida pelos educadores atualmente, que é trazida pelo educando com competência, paixão e muita ousadia. Que saber é este tentam me impor, sem considerar aquilo aprendi vivendo através de desafios e conflitos superados, que a existência me obrigou aprender, a inventar, para sobreviver?
A escola criticada por estas crianças é baseada numa realidade esvaziada e sem significado para elas: exige memorização e decorativismo de um conhecimento distante e sem problematização, não exigindo por parte do educando a criação e a recriação do conhecimento. Inexiste a experiência de troca, do diálogo, do fazer e do refazer e, principalmente, do ampliar o saber, a partir do conhecimento universal já acumulado. Por que não à receptividade e ao desafio do novo trazido pelas crianças? Que lugar o saber, a organização escolar, o currículo e a metodologia poderiam ocupar para a escola ser considerada também como um dos agentes de transformação na medida em que se propusesse a formar sujeitos críticos, criativos e participantes?
“Odeio ficar na escola: lá me obrigam a ficar sentado quase o dia todo, olhando para a professora e para a lousa, sem nada falar. E pior, em fila, um atrás do outro. Copiando, copiando as coisas. Fui expulso, só porque corri no corredor”.
Esta segunda representação social da escola alerta-nos para vários ângulos de uma questão profunda que vai além da fala corrente de que a escola poderia ser um dos locais por excelência da vivência participativa; traz também o hermetismo estático escolar a que estão expostas as crianças, contrapondo-as à sua plenitude energética e dinâmica, castrando toda sua cartografia corporal, própria de sua idade e desenvolvimento humano; inclui o enfadonho ritualismo rotineiro, domesticador e silencioso espaço que se caracteriza como lugar sisudo e quebrado e feio, sem vida e sem alegria.
Enquanto a participação da criança não for uma expressão concreta vivenciada na cotidianidade do existir escolar em ação, como presença ativa no processo de tomada de decisão, quebrando os valores hierarquizados das estruturas de poder cristalizadas, implícitas em todas as relações mantidas na essência do processo pedagógico, não podemos resgatar o sentido mais fecundo de ser um cidadão ativo, consciente e crítico no nível da ordem política de nossa sociedade. A escola poderia se constituir num espaço de exercício da democracia e da liberdade, do conhecimento como instrumento de compreensão, luta a transformação do real. Como um projeto político de educação e de escola poderia romper com estas amarras históricas? Como pensar uma concepção de educação que avance democraticamente como prática da liberdade e de direitos?
Acreditando ser possível a construção coletiva de uma escola que inclua as expectativas dos sujeitos históricos participantes, que decidirão os rumos da ação pedagógica em conjunto, no nível do Poder Público e da sociedade civil organizada, provavelmente estaremos delineando a mudança e a transformação que tanto almejamos como utopia, para as crianças e adolescentes do Brasil.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
ARTIGO 57/LIVRO 1 – TEMA: DIREITOS
Comentário de Hélio Xavier de Vasconcelos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
É fundamental, imprescindível mesmo, que o Poder Público estimule “pesquisas, experiências e novas propostas”, que reformulem mecanismos que são da mais alta importância para a permanência e a própria inserção de crianças e adolescentes que, por falta de um calendário adequado; de seriação mais compatível com o seu nível de escolaridade; um currículo mais sintonizado com as aspirações do educando e que possibilite seu ingresso no mercado de trabalho; metodologia, didática e avaliação que sejam frutos de um processo democrático e participativo, capaz, por isso mesmo, de despertar o interesse daqueles a quem se destina, são excluídos, logo na 1ª série, do ensino fundamental.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury