Comentário de Maria Amélia Azevedo
Coordenadora do NAV – Núcleo de Estudos Multidisciplinares sobre Violência Doméstica contra Criança e Adolescente PSA/IPUSP
Parece evidente que os arts. 82 e 250 do Estatuto objetivam assegurar à criança e ao adolescente de nosso País a indispensável proteção prevista no art. 5″ do próprio Estatuto e no art. 227 da CF,’ prevenindo “a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (art.70 do Estatuto). Formulados em termos proibitivos, os arts. 82 e 250 parecem assentar no princípio de que “a hospedagem de criança ou adolescente em hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere” constituiria – em si mesma – uma ocorrência perigosa à integridade física ou psicológica dos jovens, salvo se autorizados ou acompanhados pelos pais ou responsáveis.
Pois bem: esta última ressalva merece alguns reparos e comentários, como se verá a seguir.
Embora não esteja. explícito, parece mais ou menos óbvio que o que os dois dispositivos do Estatuto pretendem prevenir é a possibilidade de violência sexual contra crianças e adolescentes. No entanto, talvez por uma deformação histórica, compreensível à luz da análise da assim chamada “cultura sexual brasileira”. o Estatuto endossou, aqui, uma “leitura míope” da problemática do abuso sexual de crianças e adolescentes. Preferiu, portanto, assumir nas entrelinhas que o agressor sexual de crianças e adolescentes náo é o pai ou responsável, uma vez que estes podem, na ótica do Estatuto, autorizar ou acompanhar sem problemas seus filhos ainda crianças ou adolescentes a hotéis, motéis, pensões ou estabelecimentos congêneres. E, aí, o Estatuto presta um enorme desserviço às vítimas daquela violência sexual mais grave, mais secreta, mais terrível e traumatizante, que é a violência sexual doméstica provocada por pais ou responsáveis, especialmente sobre crianças e adolescentes do sexo feminino. Por quê? Porque garante ao mais terrível dos agressores, ao pai incestuoso, o álibi perfeito. E, assim, o círculo se fecha: com o beneplácito legal, protege-se o agressor, reforçando sua aura de respeitabilidade e a condição de subalternidade desamparada e vulnerável da vítima infantil. Para o “crime perfeito”,’um perfeito álibi, como brinde ao agressor. “Nada mais oportuno”, como consta neste breve relato de um episódio de abuso sexual incestuoso ocorrido recentemente em São Paulo, envolvendo uma adolescente de 15 anos e seu pai: “Dia … de maio de 1990. Conforme notificação feita pela mãe de L., esta e seu pai foram flagrados no Motel X, localizado à Av …. O pai tinha em seu poder fitas pornográficas – que costumava projetar antes de manter relações sexuais com L. – e vários ‘equipamentos sexuais’ que também costumava utilizar em suas relações com a jovem. “Apurou-se que costumeiramente o pai apanhava L. na escola, após a aula, obrigando-a a acompanhá-lo ao motel, onde sempre entrou sem problema algum”.
A prática de pais levarem filhas crianças ou adolescentes a hotéis, motéis etc. com a intenção explícita de violentá-las está longe de ser rara. A literatura internacional registra vários relatos nesse sentido, apontados exatamente por “sobreviventes do incesto”,” enquanto processo longo e doloroso de abuso-vitimização sexual doméstica.
Por outro lado, relatos nacionais e internacionais sobre redes de prostituição e pornografia infantis indicam que o cenário cada vez mais utilizado para tais práticas encontra-se em apartamentos alugados em grandes cidades, e não exatamente em hotéis, pensões etc. Também em muitos
casos de violência sexual doméstica o apartamento preparado cuidadosamente pelo agressor torna-se o locus privilegiado de abuso.
A lição que devemos tirar dessas reflexões é a de que os dois dispositivos analisados do Estatuto constituem uma verdadeira “faca de dois gumes”: com a intenção de prevenira ocorrência de violência sexual contra crianças e adolescentes, acabam por proteger os que a praticam, respaldados
exatamente no poder parenta1 que o Estatuto reforça … Talvez valha a pena concluir reafirmando mais uma vez o que nós todos sabemos, mas que às vezes ironicamente, acabamos por ignorar: os
pais nem sempre são cidadãos acima de qualquer suspeita …
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury