ECA: ARTIGO 88 / LIVRO 2 – TEMA: POLÍTICA DE ATENDIMENTO
Comentário de Edson Sêda
Advogado e Educador /São Paulo
Estabelecidas juridicamente as normas gerais para que se criem no País as linhas de ação de uma política de atendimento de direitos, fica claro que é da natureza jurídica do Estatuto ser um diploma legal que dispõe sobre realidades dinâmicas, a serem progressivamente construídas sob
orientação dessas normas gerais federais.
Para que, então, em seu dinamismo, as linhas de ação sejam progressivamente criadas, aperfeiçoadas e exigidas no dia-a-dia da aplicação fática do Direito, seu art. 88 dispõe sobre as diretrizes da política de atendimento de direitos a serem doravante exigíveis das autoridades constituídas. A saber:
I . Municipalização do atendimento
Quando o Estatuto fala em atendimento, deve-se entender como consta do § 7º do art. 227 da CF, ou seja, “atendimento dos direitos da criança e do adolescente”.
Esse parágrafo remete ao art. 204 da mesma CF. Este artigo, por sua vez, trata da formulação da política de assistência social, a qual, como já vimos no comentário ao art. 87, é política pública abrangente, destinada a todos que, eventualmente ou não, dela necessitem. Ou seja, a evolução do
Direito no Brasil envolve o aperfeiçoamento das políticas públicas, e, nesse sentido, a de assistência social está juridicamente condicionada pela exigência constitucional de perder, ainda que de forma dinâmica, progressiva, características restritivas e discriminatórias que a caracterizam no Brasil.
Deve, pois, assumir, ao longo do processo histórico, a nova feição que a torne promocional, desenvolvimentista e garantidora de direitos, como é do espírito da Carta Magna. A ninguém é dado exigir que a realidade fática se transforme instantaneamente, como num passe de mágica.
O Estatuto colabora para isso ao adotar como sua primeira diretriz a da municipalização do atendimento dos direitos.
Municipalizar, aqui, significa a União e o Estado abrirem mão de uma parcela do poder que detinham até então nessa matéria, como esclarece, de forma feliz, Pedro Demo. A contrario sensu, significa o Município assumir poderes até então privativos daquelas instâncias superiores da Federação brasileira.
Os fundamentos jurídicos dessa inversão de poderes encontram-se nos arts. 1º, 18 e 204 da CF. O Município é ente autônomo da Federação brasileira. A política social deve ser formulada através da descentralização político-administrativa, ficando a coordenação e as normas gerais para a União. A execução de programas bem como sua coordenação ficam para os Estados e os Municípios (no caso da criança e do adolescente, em face deste art. 88 do Estatuto, o Município tem o poder de escolher a forma que melhor lhe convém para essa execução). A formulação de políticas nessa área bem como o controle das ações delas decorrentes, em todos os níveis, devem ter a constitucionalmente obrigatória participação da população, através de entidades representativas.
Tudo isso é constitucionalmente exigível, seja pela via administrativa, seja pela via jurisdicional.
As demais diretrizes do art. 88 detalham como essa exigibilidade se dará em termos factuais.
2. Criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais
Os mandamentos constitucionais do art. 204 da Lei Maior estabelecem dois princípios fundamentais: 1) o princípio da descentralização político-administrativa, que atribui: a) à União, fixar normas gerais e coordenar administrativa e politicamente a descentralização; b) aos Estados e Municípios, coordenar e executar programas; 2) o princípio da participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
Levando-se em conta que a norma do § 7º do art. 227 manda que se considere o disposto no art. 204 para o atendimento dos direitos da criança e do adolescente, temos o Estatuto como a fonte jurídica das normas gerais a que se refere a letra “a”, acima.
As nornas gerais do Estatuto regulamentam, pois, o princípio da descentralização político-administrativa, através do novo princípio da municipalização, combinando-o com o princípio constitucional da participação, citado no item “2”, acima.
As ações da política de atendimento estarão sempre a serviço da municipalização, e esta existe para que o beneficiário final da norma – a criança e o adolescente -tenha nas políticas públicas o cumprimento dos direitos elencados no caput do art. 227.
O Estatuto não parte da idéia de que essas políticas atendam a esses beneficiários da norma constitucional “se quiserem”. Não! Parte de dois princípios:
1) o da participação – pelo qual o cidadão tem em suas mãos o poder constitucional de cobrar, pela via administrativa ou pela via judicial, que as políticas públicas cumpram com o seu dever;
2) o da exigibilidade — pelo qual essa cobrança, por essas duas vias, toma exigível que a autoridade em situação irregular (peticionada por um cidadão ou uma entidade representativa; requisitada pelo Conselho Tutelar ou sentenciada pela autoridade judiciária) corrija o rumo dessa política, seja pela via do caso a caso, seja através de medidas de ordem geral que alterem o rumo subseqüente da política falha ou inexistente.
No Direito anterior, a chamada política do bem-estar do menor emanava toda ela da esfera federal. No novo Direito inverte-se a pirâmides das normas, erigindo-se a intenção normativa municipal como prevalecente, ficando as normas federal e estadual a serviço do apoio e da implementação das políticas formuladas ao nível do Município, cuja sensibilidade é mais próxima da cidadania local.
Cumpre-se a Constituição quando o Estatuto traça normas gerais para que a política de atendimento dos direitos obedeça ao mandamento presente no art. 204 da Carta e a cidadania corrija todo tipo de não oferecimento ou oferta irregular de serviços públicos devidos a crianças e adolescentes.
Os Conselhos
A Constituição fala do controle das ações “em todos os níveis”. Vimos acima que, além da exigibilidade ao nível do “caso a caso”, temos a que se refere a própria política falha ou inexistente.
Falta comentarmos, agora, o mecanismo previsto pelo Estatuto para que as políticas se preocupem sempre com crianças e adolescentes, aplicando o princípio da absoluta prioridade.
Os Conselhos dos Direitos, um em cada um dos níveis municipal, estadual e federal, são a instância em que a população, através de organizações representativas, participará, oficialmente, da formulação da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente e do controle das
ações em todos os níveis.
A norma geral estatutária, ao prever que o “locus” privilegiado para essa participação é num conselho, cria a possibilidade de compor divergências naturais, disciplinando a forma, o meio e o modo pelo qual o poder constitucional de participação da formulação da política se exercerá
do lado não governamental.
A maneira do sistema de freios e contrapesos presente nos sistemas judiciários modernos, a norma geral federal, cuja fonte, repetimos, reside no art. 204 da CF, institui três princípios para essa forma participativa da formulação política: 1) o princípio da deliberação – ou seja, as esferas governamental
e não governamental adotarão, conjuntamente, deliberações acerca de como se aplicará o art. 227 da CF, no seu âmbito de atuação (municipal, estadual ou federal), tendo como normas gerais de sua conduta o Estatuto. O Conselho não pode deliberar sobre matéria privativa de outros âmbitos da Administração Pública. Juridicamente, só tem poderes para agir nos limites das normas estatutárias; 2) o principio do controle da ação – por este princípio, governo e sociedade também se unem para comparar as ações levadas a efeito em tomo da criança e do adolescente com as normas gerais presentes no Estatuto e verificar se há desvio. Havendo, deliberam formas, meios e modos para sua correção. Trata-se, portanto, de um moderno mecanismo social de retroalimentação, que busca a eficácia da norma; 3)o princípio da paridade – a junção de dois atores sociais coletivos, governante e governado, para deliberar sobre políticas e controlar ações delas decorrentes não teria o caráter de freio ao arbítrio, nem de contrapeso ao desvio da norma, se não se lograsse equilibrar a balança. A norma geral federal encontrou na paridade o mecanismo de equilíbrio. Cada lado entrará com o mesmo número de membros no Conselho. Dessa forma, mesmo sem evitar possíveis cooptações por um dos lados, como afirma Pedro Demo, a norma busca reduzir arbítrio e desvios. Se o colegiado, ainda assim, praticar desvio, continua intacta a exigibilidade de sua correção pelas vias do direito constitucional de petição pela cidadania e do de representação pelo Ministério Público. Como se vê, o sistema de freios e contrapesos do Estatuto carrega consigo um potencial intrínseco de elevada eficácia.
3. Criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa
Para que o Direito Positivo seja eficaz, há que se pensar sempre no desvio da norma e prever mecanismos fáticos para sua correção.
Com o mesmo grau de exigibilidade já referido no comentário ao artigo anterior, temos, aqui, a norma geral prevendo a criação e a manutenção de programas específicos exatamente para atender àqueles casos que fatalmente escaparão ao mais completo atendimento possível dos direitos
da criança e do adolescente no âmbito das políticas públicas.
É, portanto, exigível pelo cidadão ou entidades representativas, através do direito de petição; pelo Conselho Tutelar, através da requisição; pela autoridade judiciária, através de decisão fundamentada, que o serviço público (atendida a descentralização político-administrativa, que é de caráter constitucional) mantenha programas específicos sempre que eles se
tomem necessários.
Que programas são esses, veremos nos comentários ao cap. II
4. Manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente Generalidades
Estamos num País de profundas carências. O Direito Positivo constrói-se no mundo dos fatos e as carências humanas estão sempre na raiz de toda norma legislada. Não havia, pois, como a norma geral que disciplina a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente no Brasil abstrair dos recursos necessários à consecução de seus fins sociais.
A solução encontrada pelo legislador foi prever a manutenção de um fundo específico para essa política em cada um dos três níveis da Federação, sempre vinculado ao respectivo conselho.
Natureza do fundo
Trata-se de um fundo público cujos recursos serão necessariamente aplicados no âmbito da política de atendimento dos direitos, como deflui da própria topologia da norma que o institui.
Cotejando a diretriz que prevê o fundo com as linhas de ação a que se refere o art. 87, temos que as políticas sociais básicas se nutrirão dos recursos orçamentários que lhes são próprios, aí incluída a de assistência social, nas quais crianças e adolescentes têm direito à “destinação privilegiada de recursos públicos”, como consta do parágrafo único, “d”, do art.4ºdo Estatuto.
Assim sendo, os recursos recolhidos ao fundo destinar-se-ão aos aspectos prioritários ou emergenciais que, a critério do Conselho em deliberação específica, não possam ou não devam ser cobertos pelas previsões orçamentárias destinadas a execução normal das várias políticas públicas
em seus respectivos âmbitos.
A política de atendimento prevê ações que, historicamente, nunca fizeram parte dos programas dinamizados pelas políticas públicas brasileiras. E as prevê exatamente em razão dessa histórica ausência. A previsão dos fundos no âmbito das normas gerais federais decorre do princípio da
exigibilidade (v. comentário A segunda diretriz): a correção de desvios da norma, a ser feita caso a caso ou no âmbito da própria política pública, deve sempre contar com possível suporte financeiro, se necessário. Há exigibilidade também para a presença de recursos no fundo, a ser exercida seja através das petições previstas no inc. XXXIV do art. 5ºda CF; das requisições do Conselho Tutelar; ou através de sentença da autoridade judiciária.
5. Integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública eAssistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização
do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional
Os destinatários desta norma geral do Estatuto são Estados e Municípios. Visando ao resguardo dos direitos do adolescente a quem se atribua ato infracional, essa norma impõe uma integração que, historicamente, quase sempre deixou de ocorrer, entre nós.
O acusado de infração deve ter seu atendimento inicial agilizado, para que se reduzam as oportunidades de violação de direitos.
A política de atendimento não exige a integração de serviços no mesmo local; esta é preferencial, cabendo aos órgãos envolvidos, aí incluída a Municipalidade, representada por seu Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, decidir sobre a sua conveniência e oportunidade. É, entretanto, exigível a integração operacional, que se dará através da economia de meios, modos e formas de cumprir o roteiro previsto pelo Estatuto: apreensão do acusado; apresentação à autoridade policial; liberação aos pais ou apresentação ao Ministério Público; apresentação à autoridade judiciária; encaminhamento a entidade de atendimento.
6. Mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade
Trata-se de diretriz indispensável para que se cumpra integralmente o princípio constitucional da descentralização político-administrativa.
Como todas as demais, ela também é exigível via petição da cidadania, requisição do Conselho Tutelar e sentença judicial, nos termos já comentados.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
ARTIGO 88/LIVRO 2 – TEMA: POLÍTICA DE ATENDIMENTO
Comentário de Luís De La Mora
Pernambuco
As diretrizes da política de atendimento mudaram radicalmente o eixo e o centro de gravidade do processo decisório e operativo das ações.
A racionalidade do modelo anterior apoiava-se na centralização das decisões e do poder fiscalizador, bem como na concentração dos recursos na esfera federal, que os distribuía entre os diversos programas e Estados da Federação conforme critérios centralmente definidos.
O novo modelo, substituindo a verticalidade centralizadora pela horizontalidade, fundamenta-se na descentralização decisório-gerencial, na articulação interinstitucional e na participação popular paritária na tomada de decisões, na coordenação e controle das ações em todos os níveis.
Os Conselhos de Direitos constituem o principal instrumento deste novo modelo de gestão. Foram previstos para funcionar em todos os níveis, dotados de competência deliberativa na formulação das políticas e de controle das ações.
O seu correto funcionamento exige que a metade de seus membros represente organizações populares atuantes no âmbito da competência de cada Conselho. Mesmo reconhecendo a existência e legitimidade de outras formas de indicação, defendemos que as entidades governamentais indiquem seus representantes, com poder de representar verdadeiramente os legítimos detentores do Poder Público, com mandato coincidente com aquele da própria administração; ao passo que os representantes das organizações não governamentais sejam indicados, para um mandato com prazo determinado, pelas próprias entidades atuantes na área de abrangência do Conselho, através de qualquer tipo democrático de escolha que não exclua nem confira um direito de representação permanente a qualquer entidade
com atuação legitimamente reconhecida. A exclusão marginaliza, desagrega e descompromete. A participação permanente dificulta a renovação.
Para o pleno exercício do poder participativo, cada Conselho controla um Fundo (art. 260, 5 2*), constituído por recursos da União, dos Estados ou dos Municípios, segundo o caso; além das doações dedutíveis do imposto de renda (art. 260), das transferências intergovernamentais (art. 261) e, nos casos dos Fundos municipais, pelas multas previstas no Estatuto.
Neste contexto, a municipalização supera o conceito tradicional de “prefeiturização”. Ela aproxima o processo decisório do nível da execução, de tal maneira que em cada localidade sejam criados e mantidos programas em função de suas peculiaridades, garantindo o controle social da qualidade
das decisões tomadas e das ações executadas.
A articulação interinstitucional é fortalecida pela ação dos Conselhos de Direitos, uma vez que as decisões são tomadas e as ações são executadas com a participação de órgãos públicos e organizações não governamentais atuantes nas áreas das políticas sociais básicas, assistência social e defesa dos direitos.
Merece especial destaque a articulação operacional dos órgãos responsáveis pelo atendimento inicial ao adolescente a quem se atribui autoria de ato infracional como forma de agilizar seu atendimento, além de
possibilitar a estreita e permanente interação interinstitucional, facilitadora da formulação de políticas de atuação convergentes e complementares entre os diversos órgãos.
O adequado funcionamento do novo modelo exige a adoção de atitudes descentralizadoras, articuladoras e participativas. Para isto, os valores e representações sociais que sustentam tais atitudes devem ser consolidados, notadamente nas difíceis relações entre os aparelhos do Estado e a sociedade civil organizada. São muito frequentes as concepções estatizantes do tipo “as autoridades decidem, e o povo colabora”, ou, ainda, aquelas de origem anarquista: “o poder corrompe; logo, nada de aproximação com o governo”. A colaboração crítica que busca superar o clientelismo e o maniqueísmo é uma realidade a ser construída e ampliada através de um processo
pedagógico e político de mobilização pública.
Acreditamos que a implementação destas diretrizes possibilitará a efetiva melhoria das condições de atendimento a criança e ao adolescente, uma vez que, quando as decisões são. tomadas com a participação dos diversos segmentos da sociedade e de representantes do Poder Público, a solidariedade e a adesão interinstitucional são fortalecidas, conferindo uma maior legitimidade à decisão tomada.
Em segundo lugar, quando a problematizarão da realidade vivenciada pela criança e a adoção de medidas são realizadas por representantes de entidades diferentes, como são as componentes dos Conselhos de Direitos, as diversas concepções e modos de atuação, desde que articulados salutarmente pelo Conselho, conferem a decisão e a ação uma garantia de maior qualidade.
Finalmente, sendo a gestão da política responsabilidade de um órgão colegiado de co-gestão, onde a substituição de seus componentes não tem que ser necessariamente coincidente, existem possibilidades reais de uma maior continuidade das diretrizes ao longo do tempo, independentemente da mudança de parte de seus membros.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury