Saltar para o menu de navegação
Saltar para o menu de acessibilidade
Saltar para os conteúdos
Saltar para o rodapé

Créditos das fotos: Cenas do documentário “Mucamas”

Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

A mochila é pequena, adornada por desenhos infantis. Flutua pelas ruas, lentamente, evitando voltar para casa, porque não irá descansar. Parece mágica, mas não é: as panelas começam a fumegar e esquentar o almoço do irmão mais novo, o pó que antes cobria os móveis é sugado pelo pano, a roupa torcida levita limpa até o varal. A árvore do quintal não é escalada e nenhum livro é aberto. Durante o dia a casa se apruma sem nenhuma risada infantil quando, à noite, se escuta um ronco delicado. A menina, exausta e visível, adormece.

O trabalho infantil doméstico é o trabalho empurrado para debaixo do tapete, escondido nos lares de cidadãos de bem, mascarado em achismos como dizer que é tarefa feminina cuidar da casa. Seu manto de invisibilidade, trançado pela insensibilidade histórica de um país construído por mãos indígenas e africanas escravizadas, ainda se esparrama por mais de 213 mil crianças brasileiras, segundo dados da pesquisa Trabalho Infantil e Trabalho Doméstico no Brasil, lançado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) em março de 2016.

Os dedos que lavam louça têm gênero e raça: 94,2% das crianças e adolescentes que realizam trabalhos domésticos são meninas, enquanto 70,4% são negras. A menina que nas ilustrações de Debret abanava o leque para a sinhazinha branca é hoje a menina que sai de cidades pequenas para ir trabalhar em casas de família nos centros urbanos, sob promessas de uma vida melhor. Não é possível analisar a gravidade e persistência do trabalho infantil doméstico no Brasil sem resgatar um passado colonial e escravista que insiste em não morrer e se naturalizar.

A colônia que não morre

Se o destino fosse outro, Ullunga teria crescido entre os seus, em uma aldeia angolana, e lá deixado de ser criança. Por ocasião da primeira menstruação, os mais velhos da linhagem lembrariam ancestrais, bichos seriam sacrificados e ela quiçá permanecesse reclusa durante a regra. Era um rito de passagem que marcava a entrada na puberdade e o fim da infância (…) No entanto, Ullunga caiu na rede de tráfico de escravos que se dirigia para o Atlântico, e se sobreviveu à travessia oceânica, foi uma das poucas meninas a aportar (…) O ingresso ao mundo adulto se dava por outras passagens: em vez de rituais que exaltavam a fertilidade e a procriação, o paulatino adestramento do trabalho e da obediência ao senhor. Uma vez na América, Ullunga seria escrava”.
Crianças Escravas, Crianças dos Escravos – José Roberto de Goés e Manolo Florentino

Dúvidas frequentes
Ajudar nas atividades da casa é considerado trabalho infantil?
A princípio, não, se essas atividades não prejudicarem o desenvolvimento pleno das crianças ou adolescentes e até mesmo sua frequência escolar. Mas, se essas atividades atrapalharem o cotidiano da criança ou forem exploradas comercialmente, podem ser consideradas exploração de mão de obra infantil.

O trabalho doméstico é uma das atividades de maior risco?
Sim, essa atividade está na lista das piores formas de trabalho infantil e por isso só pode ser exercida por pessoas com mais de 18 anos. Além disso, o trabalho doméstico costuma oferecer um risco grande de outra violação, o trabalho em condição análoga à escravidão.

Na senzala e na catequese jesuíta não havia tempo para a infância: a criança era um adulto menor em tamanho, com as mesmas responsabilidades e pesares. O trabalho infantil no Brasil começa com a invasão e colonização portuguesa. As crianças indígenas eram arrancadas dos banhos de rio e da vida brincante para serem doutrinadas por padres portugueses. E com a adoção do regime escravagista, crianças de países africanos eram entocadas em navios negreiros junto com seus pais para serem exploradas em novas terras.

Desde a mais tenra idade, as crianças escravizadas experimentavam a desumanidade. Nas palavras do historiador André João Antonil, tal como a cana-de-açúcar onde suas mãos se ralavam, elas eram “batidas, torcidas, arrastadas, espremidas e fervidas”. Os meninos eram responsáveis por afazeres braçais e o trabalho nas plantações. Para as meninas, a exploração acontecia dentro de casa: faziam serviços domésticos, brincando com e sendo brinquedo para as crianças dos senhores.

Aos 12 anos, já eram consideradas adultas. Nesta idade, como escrevem os historiadores José Roberto de Goés e Manolo Florentino, meninos e meninas já usavam sua profissão como sobrenome: Chico Roça, João Pastor e Ana Mucama. Com a abolição tardia da escravatura, em 1888, sua situação trabalhista não melhorou, porque se algo foi aprendido durante os anos de exploração é que a mão de obra infantil era dócil, barata e com mais facilidade de adaptação. Os meninos foram levados por fazendeiros e artesãos e as meninas para as casas de família, na maioria das vezes sem qualquer remuneração.

Se foi através do suor e do sofrimento da população escravizada que o Brasil construiu o seu mercado de trabalho e os abismos sociais que persistem até hoje, não é de se estranhar que a primeira lei de proteção à infância referente ao direito do trabalho seja de 1891. E que, até meados dos anos 1980, ele fosse um ponto de tolerância da sociedade. Se a infância da criança foi um aspecto diluído e menos importante no tocante a formação do povo brasileiro, que dirá então da criança pobre e negra, que sempre trabalhou.

A menina zelosa: machismo e racismo no trabalho infantil doméstico

“Flávia, oito anos, cuida de sua irmã, de um ano. E ainda cuida da casa: limpa, lava e passa. O que ela gosta mesmo é de brincar com sua boneca ‘porque ela não faz xixi nem cocô quando eu dou mamadeira’”.
Pequenos Trabalhadores do Brasil, de Irma Rizzini

“Para entender o porquê da menina negra e pobre trabalhar como doméstica, se faz necessário pensar o conjunto da população negra no Brasil”, fala Viviana Santiago, especialista em gênero da PLAN Brasil. É da organização o levantamento Por Ser Menina no Brasil – Crescendo entre Direitos e Violência. “O fato de serem meninas se relaciona com a questão de gênero por detrás do trabalho infantil, ou seja, a vinculação delas ao trabalho doméstico como parte de seu destino. Serem meninas negras reitera as heranças do trabalho doméstico como resquício de práticas sociais que determinaram o lugar da mulher negra e, portanto, da menina negra na sociedade.”

É no seio doméstico que começa a desigualdade de gênero e a fala comum que a mulher é mais tolhida, corporal e mentalmente, para fazer serviços de casa. A distribuição dos afazeres domésticos entre irmãs e irmãos mostra isso claramente. Ainda segundo a pesquisa da PLAN, enquanto 81,4% das meninas arrumam sua própria cama, 76,8% lavam louça e 65,6% limpam a casa, apenas 11,6% dos seus irmãos ajeita a cama, 12,5% são responsáveis pela louca e uma parcela diminuta de 11,4% é quem arruma a casa. “Simplesmente por ela ser menina, ela é tratada como responsável pelas tarefas domésticas, o que tira delas parte de sua infância quanto ao direito de brincar, estudar e não assumir responsabilidades em substituição dos adultos.”

O trabalho infantil doméstico tem ocorrências muito distintas, algumas delas sutis, o que dificulta o seu combate. De acordo com a pesquisa Trabalho infantil doméstico no interior dos lares: as faces da invisibilidade, ele pode acontecer dentro do âmbito da própria família e da casa, configurando-se em duas espécies: a socialização, em que a criança ajuda em tarefas por uma naturalização de sua mão de obra no lar e a ajuda, em que, assumindo tarefas adultas como cuidar de crianças menores ou afazeres domésticos, ela libera os pais para que possam trabalhar e sustentar o lar. O último tipo de trabalho doméstico é o remunerado, quando acontece na casa de outrem, sob um valor prestação de serviços. Vale lembrar que qualquer trabalho doméstico antes 17 anos é proibido pela Constituição Brasileira, e está entre as piores formas de trabalho listadas pela Organização Internacional de Trabalho (OIT).

Sabe-se que, além de serem mulheres e negras, elas provem de famílias com renda social limitada. O rendimento médio por pessoa de uma família em que exista o trabalho infantil doméstico chega a ser metade de um salário mínimo (R$ 329). Reforça-se, então, a naturalização de discurso que é melhor a menina estar trabalhando do que na rua ou passando fome.

A procuradora do Trabalho Elisiane Santos, vice-coordenadora nacional da Coordinfância, (Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente), também aponta que a escolha de empregar uma trabalhadora doméstica de menor idade, por se pensar assim pagar menos, agrava a situação. “A prática de trazer meninas de outros estados, do interior das cidades, para trabalhar nas residências, objetivando, assim, não arcar com os custos de um trabalhador doméstico adulto, fundada numa suposta ajuda, num auxílio à população de classe baixa, reproduz uma cultura de exploração e violação de direitos, que, além de tudo, é discriminatória.”

As consequências desse trabalho para as meninas são os pilares de uma vida que dificilmente escapa do vórtice do trabalho doméstico. De primeiro, os riscos físicos de manusear fogões ou produtos químicos, além de outros utensílios do lar. Quando trabalham na casa de outrem, e às vezes infelizmente em seus próprios lares, estão sujeitas a opressões verbais e sexuais. Ainda que 80% delas estude, uma porcentagem gritante está fora da escola, e qualquer jornada de trabalho implica em redução de tempo para aprender e brincar, impactando no psicológico das meninas e em suas perspectivas.

Mucamas

“Ser mulher? Corajosa, muito forte, muito mais forte que os homens”.
Regina Oliveira, no documentário Mucamas.

Ipiaú é uma cidade pequena da Bahia. Quem nela nasce, nasce cheirando e respirando o cacau; a cultura da lavoura sempre foi responsável pela economia e oferta de trabalho da cidade. Com apenas 9 anos, Regina Oliveira, como muitas mulheres da sua família, começou a trabalhar na roça e cuidar de crianças. Regina queria ser professora, mas com 22 anos, veio para São Paulo trabalhar como empregada doméstica.

Tempos depois, a mesma Regina, envergonhada, não entendeu quando a filha, Elis Mezenes, convidou-a a participar de um documentário sobre sua trajetória. “Ela ficou sem graça, não achou que sua história tinha alguma importância”, conta Elis. Mas Mucamas, documentário produzido pelo coletivo Nós, Madalenas (do qual Elis faz parte como captadora e responsável pelo som) se propôs a dizer que sim, a história de Regina importava, e que a invisibilidade da mulher pobre e negra é o pano de fundo das narrativas de migração, privação e labuta das domésticas em São Paulo e no Brasil.

Além de Regina, quatro outras mulheres – Marildete Batista, Nilse Leandro, Jaidete Maria e Valdiedna França – contam suas vidas durante o filme. Se percebe entre elas traços comuns, além do fato de serem mães de algumas das realizadoras. Todas moram em regiões periféricas paulistas, e atendem como empregadas e diaristas em bairros de classe média e alta da cidade. São migrantes, deixaram cidades menores ou outros estados sobre a premissa de uma vida melhor. “Nas entrevistas, elas falam bastante sobre essa ilusão, de que por São Paulo ser uma capital a vida possa ser muito melhor, o que não é necessariamente verdade”, conta Elis. Os relatos de opressão trabalhista sofridas por essas mulheres, desde não ter alimentação até o não pagamento por seus serviços, permeiam os discursos.

Em uma realidade de desigualdades diminutas e oportunidades iguais, nenhuma dessas cinco mulheres trabalharia como empregada doméstica. Regina dividiria sua rotina sendo professora e bióloga, porque ama o mar. Valdiedna, com holofotes no rosto, atravessaria palcos e mais palcos de teatro como atriz. Os sonhos são os primeiros que morrem afogados no cotidiano de uma vida doméstica prematura. “Desenvolvemos a criatividade na infância, quanto estamos na escola, quando aprendemos. Isso é perdido na vida das empregadas domésticas. Se você perde a criatividade, você vira um adulto sem possibilidades”, complementa Elis.

A gana de sonhos dessas mulheres guerreiras foi passada via sangue para suas filhas e filhos. “Elas sabem que a nossa alternativa para não seguir o mesmo caminho é estudando, e o que fazem hoje é trabalhar, às vezes dobrado, para que possamos ter outro futuro.” Elis conta que a mãe pegou muito no seu pé e de seus irmãos para que continuassem estudando, e hoje, música, documentarista e fazendo cursinho para passar em Ciências Sociais, Elis faz brilhar os olhos da orgulhosa mãe.

O documentário deixa mensagens: é na luta pela visibilidade e dignidade das trabalhadoras que se percebe a importância de que a situação não se repita nas gerações futuras como única alternativa. “É um serviço importante, porque foi construído para ser importante, por toda uma herança histórica escravocrata”, conclui Elis. É preciso assegurar que essas mulheres tenham seus direitos trabalhistas cumpridos, mas, principalmente, que meninas tenham oportunidades múltiplas de trilhar caminhos.

Paredes grossas, meninas invisíveis

“Aos nove anos de idade, Joana foi levada do Maranhão para o Rio de Janeiro por uma família carioca de idade média (…) Na nova casa, era responsável por cuidar de duas crianças pequenas e demais afazeres domésticos. Apesar de ter sido pega como filha de criação, só vestia roupas usadas e não se sentia a vontade nas reuniões de família. Já mocinha, em torno dos 12 anos, temia ficar em casa somente com o patrão, pois era pressionada a se banhar no banheiro do casal para que ele pudesse vê-la. Alguma vezes, ele tentou agarrá-la. Por incentivo de amigas começou a estudar de noite. Com medo do patrão, largou a família aos 17 anos e foi trabalhar como doméstica em outra casa.”
Pequenos Trabalhadores do Brasil, de Irma Rizzini.

A naturalização do trabalho infantil doméstico é tamanha que ele foi contemplado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990. O artigo 248 permitia regularização da guarda do adolescente empregado na prestação dos serviços domésticos. Em 2008, quando o país aprovou a lista de piores formas de trabalho infantil, o artigo é revogado completamente. Ainda sim, o combate tem de transpassar o manto de invisibilidade e também a dificuldade de adentrar nos lares brasileiros e combater explorações que acontecem, muitas vezes, dentro do núcleo familiar.

A inviolabilidade do domicílio é um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal, e que pode levar alguém que explora o trabalho infantil a crer que seu crime está resguardado dentro de casa. Mas, segundo explicação da promotora Elisiane, esse é um erro crasso: “A inviolabilidade do lar não pode ser utilizada para acobertar violações de direito. Em caso de recusa, e havendo fundada suspeita de ocorrência de exploração, negligência ou violência contra a criança ou a adolescente, pode ser obtida autorização judicial para verificar a situação que ocorre dentro da residência”. Ainda de acordo com a promotora, a proteção integral é a prioridade absoluta em casos de trabalho infantil.

A invisibilidade é combatida quando setores da sociedade se articulam para mobilizar a população sobre os danos causados pelo trabalho infantil doméstico. Iniciativas como a campanha Trabalho Infantil – Você não Vê mais Existe, do Tribunal Superior de Trabalho, além de articulação e atuação de órgãos integrantes da rede de proteção da criança e do adolescente, como a própria FNPETI, são cruciais para a mudança de mentalidade da sociedade civil. “Muitas vezes uma orientação, esclarecimento aos pais ou pessoas que pretendem se utilizar do trabalho infantil doméstico pode ser o suficiente para impedir uma violação de direitos”, afirma Elisiane.

Entretanto, como o trabalho infantil doméstico pressupõe um recorte de gênero e de raça bastante específico, é de se pressupor que sua durabilidade esteja atrelada à continuação da desigualdade social e de gênero, tão fortes no Brasil. Se existe um esforço da sociedade civil para que o trabalho infantil doméstico deixe de se tornar invisível, é para, que uma vez às claras, ele possa ser extinto. Uma vez a herança colonial enterrada, o lugar da mulher sendo o que ela escolher em qualquer instância, nenhuma menina repetirá as histórias contadas acima: suas tarefas serão apenas brincar e aprender.

Entre paredes, debaixo do tapete: a invisibilidade do trabalho infantil doméstico
Entre paredes, debaixo do tapete: a invisibilidade do trabalho infantil doméstico