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Daslainy Silva de Lima
Cafelândia – Paraná
No verão de fevereiro, Cafelândia, no Oeste Paranaense, fica ainda mais florida: cheia de crianças nas ruas indo para as escolas, carregando em si a busca ávida pelo conhecimento. As crianças vão eufóricas, como se ingressassem na escola pela primeira vez.Nesse ritmo, iniciam-se também as aulas no Centro Municipal de Educação Infantil João XXIII. Ao passar pela rua da escola, a maioria das crianças, nos primeiros dias letivos, vai acompanhada pelos pais ou responsáveis, vivendo o momento crucial da entrada na escola. É difícil distinguir (em alguns casos) se são as crianças ou os adultos quem mais choram, pois ambos os lados sabem que crescerão ao se deixarem!
Ao presenciar a concretização do direito da criança à educação, preconizado pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), é possível acreditar na construção de um mundo melhor, percebendo que as leis não são meros papéis e que podem balizar vidas e mudar destinos.
Neste cenário, José, com mochila maior que ele próprio, calção vermelho e camiseta branca, entra no mundo escolar idealizado com tanta energia que é quase impossível contê-la em seu pequenino corpo. Entre as demais crianças, ele, a princípio desconfiado, aproxima-se, sorri, interage, pula, grita e não pára, numa linguagem corporal que as crianças dominam completamente.
José preferia brincar livremente na rua, sem regras, horários, num realismo inquietante, marcado por vivências nada infantis
Os dias passam e aquilo que parecia até então euforia de criança, transforma-se em um comportamento contínuo, atrapalhando José. A professora chama sua atenção, o que parece potencializar sua agressividade gratuita e insistente. Seu olhar não tem brilho, a “escola é chata”, um misto de tristeza e defesa estampam-se em seu rosto.
Assim conheci o pequeno José, capaz de mobilizar toda a escola. Logo nos primeiros atendimentos psicológicos, uma pergunta me martelava a cabeça: como o espaço escolar, incubadora dos sonhos, cedia espaço a um território para exposição de sua dor e revolta?
Aos poucos, montei o mosaico da história de vida de José, conversei com sua avó, percebi como pano de fundo uma pobreza imaterial, enraizada em sua alma. Nos horários livres, em que não estava no Centro Municipal de Educação Infantil (a creche que freqüentava), José preferia brincar livremente na rua, sem regras, horários, num realismo inquietante, marcado por vivências nada infantis. Durante os atendimentos, ele me impressionava relatando fatos imaginários assustadores, nos quais revelava uma súplica para ligar dois mundos desconectados: o que ele vivera até ali e o que a escola oferecia. A cada novo contato, eu era quem mais aprendia.
Por isso, trabalhar em rede de apoio foi fundamental. Juntamente com a escola (professora, equipe pedagógica, equipe de apoio), Assistência Social, Conselho Tutelar, foram traçadas ações simples – ensinar e aprender brincando, encontrando aos poucos o caminho rumo ao cultivo dos sonhos de José. Na medida em que se avançava na compreensão do contexto familiar integral daquela criança, proporcionalmente ganhava-se maior jogo de cintura para driblar suas reações, construindo assim uma escola do tamanho das necessidades de José. Entretanto ele nos tiraria do prumo ainda mais uma vez…
Trabalhar em rede de apoio, juntamente com a escola (professora, equipe pedagógica), Assistência Social, Conselho Tutelar, foi fundamental
Numa manhã gelada do mês de maio, José chega atrasado à escola e a professora na porta de entrada espanta-se, não com seu atraso, mas com o que ele trouxe nos braços – Pingo. Em seguida, ele disparou: “Olha, eu não podia deixar ele no chão sozinho, no frio, sem nome. Foi largado, tá morrendo sozinho, mas pode deixar que eu resolvo”. Como suportar sua história se repetindo? Ele precisava intervir. José passa pelo saguão com o cãozinho nos braços, alimenta-o, e a professora, com sagacidade, ministra sua aula baseada na lição de vida dada pelo menino. Ao final da aula, José leva Pingo pra casa. Naquele instante, todos os educadores da escola tornam-se aprendizes e José é, enfim, compreendido.
Num duelo de conquista mútua, todos os educadores envolvidos no processo cultivam criativamente um espaço no coração de José, estabelecem limites com imensa doçura e firmeza, organizando esse espaço interno e incitando José à possibilidade de sonhar, com a cabeça e com o coração. O ano letivo foi concluído e, dessa vez, foi difícil para José partir para outra escola, separar-se da primeira professora e da escola de seus sonhos, em direção a outros desafios, a fim de se tornar cidadão.
Tenho certeza de que este não é o fim da história: ainda vejo José, em sua atual escola, alegre e falante, cheio de vida e sonhos. A educação, apoiada por instrumentos legais norteadores como o ECA, pode promover a proteção, inclusão e qualidade de vida, efetivando os direitos fundamentais das crianças. As escolas devem ser assim, fábricas de sonhos que precisam se tornar realidade, superando o abismo dos descaminhos sociais.