Atingir um percentual de 54% de representatividade negra no corpo docente, discente e diretivo e revisar o currículo das escolas particulares são só algumas das reivindicações do grupo para combater o racismo estrutural dentro e fora das escolas
Quantas pessoas negras aparecem no seu álbum de fotos? A pergunta parece ser subjetiva, mas a resposta pode dizer muito sobre a configuração de uma sociedade. Mesmo representando metade da população brasileira, a presença de negros e negras não se reflete em todos os lugares, inclusive na escola.
Fruto de um processo histórico, o estrutural é reforçado pelo próprio sistema de ensino: O quadro de professores ainda é composto predominantemente por mulheres brancas, por exemplo. Já a taxa de evasão escolar ao longo da Educação Básica é maior entre a população negra.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), referente ao ano de 2019, 71,7% dos jovens brasileiros, entre 14 e 29 anos, que não completaram a Educação Básica são pretos ou pardos. O principal motivo de evasão, apontado por eles foi a neccessidade de trabalhar para complementar a renda (39,1%).
Se nas escolas públicas falta diversidade, o recorte de desigualdade econômica e social ajuda a explicar porque 1 em cada 10 escolas privadas de São Paulo não tem nenhum professor negro. Dessa forma, a manutenção do racismo se perpetua limitando o acesso à oportunidades de desenvolvimento para uma parcela da população que está longe de ser minoria.
“É na idade escolar que as crianças aprendem a reproduzir comportamentos racistas ou antirracistas. A ausência de negres em posições de liderança e um currículo eurocêntrico, ajudam alunes a interiorizar uma sensação de superioridade branca”, diz Caio Maia, 47, pai de três meninas e membro do Movimento por Escolas Antirracistas.
O grupo, formado por pais de alunos matriculados em escolas particulares, reúne mais de 60 instituições na cidade de São Paulo, com o objetivo de construir coletivamente um projeto pedagógico que garanta a presença de estudantes e professores negros, revise o currículo escolar, invista em formação continuada para os educadores e proponha um debate contínuo sobre racismo estrutural para a comunidade.
O racismo e o trabalho infantil
Levando em conta as estatísticas e as razões pelas quais pessoas negras evadem da escola, é possível traçar uma relação muito próxima com uma das violações mais graves na realidade brasileira: o trabalho infantil. O Mapa do Trabalho Infantil estima que 62,7% da mão de obra precoce no país seja realizada por crianças negras.
“Precisamos falar sobre a importância de uma educação antirracista para a efetivação da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, mas também como uma estratégia de enfrentamento às violações de direitos de crianças e adolescentes, entre elas o trabalho infantil”, afirma Doutora Elisiane Santos, procuradora do trabalho no Ministério Público de São Paulo e também integrante da Comissão Antirracista do Colégio Equipe.
Além do trabalho infantil ser uma causa socioeconômica da evasão escolar, é também uma consequência quando os estudantes não se enxergam representados pelo currículo e pelo ambiente escolar. Sendo assim, as crianças não conseguem ter um aproveitamento saudável e acabam por abandonar os estudos.
“Um dos principais motivos de evasão é a discriminação racial vivenciada dentro da escola. Existe essa questão da criança não encontrar na escola um lugar de pertencimento e acolhimento na construção da sua identidade. Por isso, é tão importante que a legislação e as política públicas garantam uma representatividade estrutural. Combater o racismo no Brasil é também lutar por uma infância livre de trabalho”, conclui a procuradora.
Por que as escolas particulares?
A motivação para a criação do movimento nas escolas com as mensalidades mais caras do Brasil começou em julho de 2020, em meio à efervescência política seguida da morte de George Floyd, homem negro assassinado por um policial branco nos EUA. Protestos ao redor do mundo trouxeram o racismo estrutural como pauta urgente na esfera pública.
Empresas, escolas, sociedade civil pareceram despertar para os efeitos e consequências do racismo. Mas por que o movimento se faz ainda mais necessário nas escolas particulares?
Segundo levantamento feito pela Folha de São Paulo, usando como base dados do Censo Escolar de 2019, apenas 8% dos professores que lecionam nos colégios participantes da Liga são negros. Já na rede pública, esse número sobre para 30%.
“A reivindicação é que as escolas cheguem a 54% de alunes, professores e diretores negres, e que promovam uma educação antirracista. Mas não basta apenas estabelecer cotas de contratação e oferecer bolsas de estudo, as escolas precisam criar um ambiente favorável à entrada desses alunes e profissionais, o que passa pela própria conscientização da comunidade escolar”, acrescenta Caio, que tem as filhas estudando no Vera Cruz.
A Liga Antirracista começou em São Paulo, mas já conta com a participação de escolas no Rio de Janeiro e Salvador (BA). O movimento é aberto para quem quiser participar e somar. Além da comissão principal, colégios como o Equipe, o Gracinha, o Bandeirantes e o próprio Vera Cruz criaram projetos e coletivos autônomos.
Representatividade e protagonismo importam
Dentre os coletivos independentes está a Comissão Antirracista do Colégio Equipe, que conta com 95 pessoas, entre pais e professores. O conselho se organiza através de subcomissões temáticas, que se reúnem semanalmente para responder às seguintes frentes: currículo, sensibilização, acesso de alunos negros, contratação de docentes, interação entre escolas e comunicação.
“O objetivo é construir uma política de educação antirracista. Não basta ter a diversidade como um selo, ela precisa refletir a representação estrutural de pessoas negras. Não podemos pensar em um microcosmo, é preciso que exista um diálogo constante com o sistema de ensino, com o território, com a sociedade civil e com a intelectualidade e o ativismo negro”, afirma Eugênio Lima, 52 anos, pai da Aurora e do Jorge.
Além de homem negro e membro do Conselho, Eugênio também é ex aluno do Colégio Equipe, DJ, ator e fundador de outros movimentos antirracistas como o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, a Frente 3 de Fevereiro e o coletivo de artistas negros Legítima Defesa. Para ele, o segredo para a desnaturalização do racismo parte de atitudes coletivas, mas tendo sempre em vista o protagonismo negro.
“Que as escolas particulares estejam despertando para essa luta é benéfico, mas ela não começa aqui. Trata-se de um processo gigante construído pelo movimento negro, desde o século XIX até agora. A gente quer ver mudança estrutural e não uma diversidade que seja uma outra maneira de adequar o pensamento hegemônico em favor da própria branquitude”, relembra o conselheiro.
Esse princípio é adotado em todas as ações organizadas pela Comissão, e embora ela seja composta majoritariamente por famílias brancas, a voz dos pais e responsáveis negros é destaque em todos os espaços de decisão.
Além do protagonismo, outra questão fundamental levantada tanto pelos coletivos autônomos quanto pela Liga Antirracista é a narrativa. Mesmo com a lei 10.639, que torna obrigatório o ensino de História afro-brasileira nas escolas, a abordagem adotada pela maioria dos currículos ainda é pouco afrocentrada.
A proposta é convocar a escola para uma construção que seja constante e permanente. Neste momento, a Comissão já conseguiu estruturar algumas ações como a ocupação da conta do Instagram do Equipe e o desenho de um Ciclo Antirracista — que contém aulas de reparação para o corpo docente e aulas magnas para os estudantes, contando com a presença de professores, ativistas, intelectuais e artistas que fazem parte da diáspora negra.
“A ideia não é monitorar a escola, mas mobilizá-la para que isso seja uma mudança exponencial até atingir o ponto de não retorno. Só assim poderemos migrar de uma discussão sobre os efeitos do racismo estrutural e atingir um patamar de focar em desenvolver a máxima potência. Isso é um compromisso coletivo e histórico”, conclui.