O reconhecimento dos efeitos do racismo estrutural na evasão escolar de jovens negros é o primeiro passo para superar as desigualdades educacionais
Dos 10 milhões de jovens brasileiros entre 14 e 29 anos que deixaram de frequentar a escola sem ter completado a educação básica, mais de 70% são pretos e pardos (PNAD Educação 2019). O dado alarmante não é pontual. Historicamente, a evasão escolar de jovens negros tem sido um dos maiores entraves para a garantia do direito à educação. O problema se agravou com a pandemia da covid-19. Em 2020, 30% dos jovens negros não pretendiam voltar à escola, como apontou um relatório do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve).
“Eu prefiro falar em expulsão escolar, em vez de evasão”, provoca a educadora Luana Tolentino, autora do livro Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula (Mazza Edições). “Sair da escola não é uma escolha, é retrato de toda uma estrutura que historicamente tem trabalhado no sentido de negar o direito à educação a esse público. Tanto que essa é uma das pautas mais antigas do movimento social negro.”
Assim, o racismo que estrutura a sociedade entra pela porta da escola, operando diversos mecanismos que impedem que jovens negros cumpram uma trajetória de sucesso na educação. “É o tratamento discriminatório, os altos índices de reprovação escolar, a punição mais severa para esses grupos, além de uma baixa expectativa da comunidade escolar em relação aos jovens negros”, elenca Luana. Outro entrave é o currículo orientado por uma perspectiva eurocêntrica, que não deixa espaço para que jovens negros se enxerguem como sujeitos de direito e como parte da construção da história do país.
“É preciso reconhecer as violências e os abismos criados pelo racismo. A gente precisa entender que portas que estão sendo fechadas para a juventude negra e oportunidades estão sendo negadas. O racismo tem empurrado esses jovens para espaços de informalidade, subemprego e abandono”, afirma a educadora Luana Tolentino a respeito da evasão escolar de jovens negros.
Quando começa a evasão escolar de jovens negros
Em primeiro lugar, é preciso partir do entendimento de que o direito à educação deve estar atrelado à garantia de outros direitos sociais, como saúde, alimentação, moradia e trabalho. A juventude negra e periférica do Brasil é o grupo populacional que detém os piores índices de desenvolvimento socioeconômico (veja o infográfico abaixo) e, como consequência, tem lidado com um esvaziamento de sonhos e oportunidades.
Essa realidade está retratada de muitas formas na poesia do grupo Racionais MC’s, como no trecho da música A Vida é um Desafio, de 2002: “Quando pivete, meu sonho era ser jogador de futebol, vai vendo. Mas o sistema limita nossa vida de tal forma que eu tive que fazer uma escolha: sonhar ou sobreviver”. O documentário recente que conta a trajetória do grupo, um dos mais influentes da música brasileira, é também um lembrete de que a luta por acessos das juventudes negras é antiga.
Essa falta de perspectivas é também narrada no documentário Nunca Me Sonharam (Maria Farinha Filmes, 2017). Um desses relatos é o de Francisco Ronildo da Silva, que aos 18 anos abandonou a escola onde cursava o ensino médio, em Campos Sales, no Ceará: “Eu estava desanimado totalmente, achava que eu era só mais um, me achava incapaz. Não me sentia bem com os conteúdos, não conseguia me desenvolver. Aparentemente as pessoas também não estavam nem aí. Eu não tinha perspectiva de futuro.”
Construindo pontes para transpor abismos
Para combater o problema da evasão de jovens negros são necessárias mudanças estruturais, que também passam pelas práticas cotidianas da escola. São três frentes necessárias: indução e cumprimento de políticas públicas que promovem igualdade racial e de gênero, formação de professores e institucionalização da educação antirracista.
Daniel Teixeira, diretor do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), destaca que as determinações legais (Artigo 241 da Constituição Federal e Lei 10.639) ainda não foram suficientes para institucionalizar a questão racial nas políticas públicas, seja no desenho dos currículos de estados e municípios ou nas avaliações de desempenho. “As métricas de qualidade de sistemas de avaliação, como Saeb e Ideb, devem considerar a equidade racial para que tenhamos mudanças no chão da escola. Não podemos falar em educação de qualidade sem equidade. Isso é a base para que tenhamos um modelo de escola mais acolhedora e que dialogue com a cultura e as vivências da população negra”.
Como o racismo estrutural é reproduzido pela escola e pelo professor nas suas práticas pedagógicas, é necessário também que estados e municípios tragam a questão racial como foco de suas políticas de formação de professores. “Nosso desafio é investir na formação inicial e continuada de professores. O enfrentamento ao racismo tem ficado muito a cargo dos professores negros. O empenho e o compromisso desses professores têm sido primordial, mas esse é um problema que deve ser enfrentado por toda a sociedade, e não só pelos negros”, afirma Luana Tolentino.
Educação antirracista institucionalizada
Mesmo que de forma pontual, há vários exemplos de boas práticas de educação antirracista acontecendo pelo país: são mais de quatro mil presentes no acervo do CEERT. Há 8 anos, a instituição exalta as melhores práticas com o Prêmio Educar para a Equidade Racial e de Gênero. Em 2022, uma das finalistas foi a Escola Municipal Monsenhor Scarzello, localizada em Joinville, Santa Catarina. Com apenas cinco anos de existência, a escola está localizada numa comunidade de maioria branca e colonização alemã. Dentre os 750 estudantes de 4 a 12 anos, pouco mais de 10% são negros.
Uma atividade de confecção de bonecos abriu os olhos da gestão para o racismo que existia naquele território escolar, de forma explícita ou velada, nas casas dos alunos e na sala de aula. Para combatê-lo, a gestão incluiu a educação antirracista como um dos pilares do Projeto Político-Pedagógico da escola, focando na capacitação de professores, na realização de inúmeras atividades que valorizam o trabalho e as práticas de personalidades negras ou indígenas, além de pesquisas e rodas de conversa que fazem com que as crianças construam uma identidade positiva da negritude.
A coordenadora pedagógica da escola, Josiane Santanna, destaca que o professor é o principal agente da transformação quando toma consciência do racismo e abre olhos e escutas para combatê-lo no cotidiano. “A partir do momento em que as crianças e os jovens percebem que os professores estão sensíveis às suas dores e que a escola pode ser lugar de acolhimento, isso reverbera no rendimento escolar, na autoestima, no empoderamento e numa série de outros fatores que são primordiais dentro dessa perspectiva de educação antirracista.”