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Crédito: Ilustração de Pilar Hernandez

Por Cecília Garcia*, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
*Colaboraram Ana Luísa Vieira e Gabriela Rodrigues

Imagine uma rua. Talvez uma como as que descreve tão lindamente o escritor Odjanki ao falar de sua infância em Angola, onde as casas e brincadeiras parecem ser feitas de tempo. Imagine então uma rua vasta, com nove residências paralelas, unidas por um mesmo asfalto, estrada de terra ou até tijolos amarelos, o que sua imaginação permitir – essa rua define a língua que compartilham.

Ainda que sejam vizinhas de endereço e palavra, cada casa tem um microcosmo próprio: em uma, o chuveiro demora a esquentar. Em outra, é a mão da menina que faz a comida e varre o chão. Numa delas, não há escola para mandar as crianças, na outra, nenhuma criança nunca soube o que é trabalhar. Há até uma casa que dela nada se conhece. Pense que essa rua é a comunidade de países que falam oficialmente a língua portuguesa e que cada residência é uma nação: entre paredes, a complexidade de seus territórios, belezas e dificuldades. Que rua para ser percorrida, observada e debatida.

Olhos no retrovisor
Qual é a herança que os colonizadores deixaram para as suas ex-colônias? Clique aqui para conferir a íntegra da entrevista com Ricardo Alexino Ferreiraprofessor da USP e coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa dos Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro.

Neste 12 de junho, Dia Mundial do Combate ao Trabalho Infantil, o Promenino voltou seus olhos para uma parte do mundo em uníssono com o Brasil. Divididos entre os continentes africano, europeu, asiático e americano, os países que falam oficialmente português carregam uma herança mista de colonização e saberes de seus primeiros moradores. As ações do passado, um tempo onde crianças ainda não eram crianças, ainda reverberaram nas relações de trabalho, proteção social e infância.

A palavra mundial pode ser perigosa; comemorar algo globalmente só vale se ficar claro que todos os países, mesmo aqueles que dividem uma rua alfabética ou um passado de exploração, constituíram-se como lugares únicos. A criança de Moçambique certamente não se parece com a do outro lado do oceano em Timor-Leste, que tem menos semelhanças ainda com o Brasil. A própria definição do que é infância varia de sociedade para sociedade, e embora não deva haver vista grossa para o abuso e a exploração, devem-se ter pestanas abertas para evitar generalizações e colonialismos modernos.

O que não se pode por em dúvida é que alguns dos países de língua lusófona possuem índices altíssimos de exploração infantil. Se Angola, Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Timor-Leste, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Portugal dividem uma mesma rua, que se olhe atentamente por suas janelas.

Os infográficos retratados neste especial tocam na superfície de cada um deles. Há muito mais a ser visto, ouvido e falado sobre o trabalho infantil nesses países – sabe-se que a violação só pode ser combatida de dentro para fora, quando se respeita o ser humano único que habita cada um deles.

Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), formada por nove nações (Angola, Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Timor-Leste, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Portugal), surgiu em 1996 como “foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua e da cooperação entre os seus membros”. E elegeu 2016 como o “Ano da CPLP Contra o Trabalho Infantil”. É por esta trilha que a reportagem seguirá, percorrendo a história e destacando o debate sobre o trabalho infantil em cada localidade.

Trabalho em tempos de colonialismo

Quem tece a história de um país, e quem define o que é História? Não há países descobertos, ninguém deles tirou um véu. A História de nações como Brasil ou Angola começam muito antes das naus portuguesas aportarem em suas praias, e o resultado do encontro é uma colagem estranha, muitas vezes bruta, muitas vezes bela, do que choques sociais e étnicos fizeram aos povos que sempre estiveram e aos que chegaram. Pensar-se indivíduo e pensar-se sociedade, em cada país, não é possível sem levar em conta essas heranças.

Para tocar na superfície de entendimento sobre particularidades do trabalho infantil em países colonizados por Portugal, é preciso antes entender as noções de trabalho criadas em paralelo à colonização. O professor Ricardino Teixeira, doutor em Sociologia e membro da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) explica que os processos colonizadores variaram conforme os países. Quando uma sociedade era regulamentada pela legislação colonial, inevitavelmente surgia uma hierarquização: dos grupos que eram considerados assimilados, porque adquiriam certos costumes da cultura lusófona, e os considerados indígenas, que viviam sobre um conjunto de leis não formalizado, o direito consuetudinário.

A hierarquização social nesses países levou à estrutura de trabalho forçado e exploração. Teixeira, que é doutor em Sociologia tem larga experiência em trabalhos sobre movimentos sociais africanos – em especial os realizados em Cabo Verde e Guiné-Bissau –, traz o caso de São Tomé e Príncipe para exemplificar: “Havia trabalho forçado em plantação e recolha de cacau para o mercado internacional”. No caso de Cabo Verde, complementa o professor, embora não houvesse necessariamente trabalho forçado, acontecia a deportação de indivíduos para lavouras em países da América Latina ou Estados Unidos.

Os agressivos processos de colonização deixaram rachaduras ainda sentidas anos após a conquista da independência. Os ecos então presentes no lento desenvolvimento econômico das regiões e também nos baixos índices de desenvolvimento humano. Isso potencializado por recentes processos de globalização a fim de lucro rápido, não levando em conta os fatores humanos do território. Cria-se, assim, uma situação de vulnerabilidade social, na qual crianças e jovens deixam de aproveitar sua infância.

Mas isso leva à pergunta: que infância? O que é a infância para cada país?

As muitas infâncias

Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1959, é uma diretriz básica para aplicação de programas de proteção à infância, incluindo afastá-la de qualquer prática de trabalho infantil: “a criança será protegida contra qualquer crueldade e exploração. Não será permitido que ela trabalhe ou tenha ocupação que prejudique os estudos ou a saúde”, ressalta o documento.

Entretanto, não se pode ignorar que seja uma diretriz ocidental, e que outras partes do mundo convivem com conceitos diferentes do que seria a infância e do que ela significa no período de desenvolvimento do ser humano. “A concepção que predomina é a das agências internacionais, mas o conceito não dá conta. A percepção do que é a criança varia de etnia para etnia, de cultura para cultura. Então é difícil trabalharmos a categoria criança para entender o contexto do outro”, explica o sociólogo.

Mesmo porque o próprio conceito da infância é recente, o que não se restringe a países africanos ou colonizados como o Brasil. “No caso da Europa, meninos e meninas trabalhavam dentro de fábricas. Não eram vistas como crianças”, diz Teixeira. O especialista faz questão de salientar os perigos de se criar abismos entre países, como se só em Guiné-Bissau crianças trabalhassem ou como se só em Portugal elas não o fizessem. “Não podemos dar a esse fenômeno uma perspectiva meramente ocidental.”

Embora a maior parte dos países que compõe a CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) seja do continente africano, também se faz necessário combater o conceito de que exista um estereótipo de criança africana, uma infância representativa do continente. “Cada país tem sua percepção: Na Guiné-Bissau, por exemplo, a criança entra na dinâmica do capital muito rápido. Já em outras etnias e grupos há uma preservação muito forte – a criança tem que passar por um processo de amadurecimento para depois se inserir no mercado de trabalho ou matrimônio.”

Na feitura de qualquer pesquisa ou construção de uma ideia de trabalho infantil por parte de organizações não locais, sugere Ricardino Teixeira, o trabalho deve ser em conjunto com os agentes e articuladores de cada país, pois são eles que melhor conhecem o que desejam transformar. O que não é, de modo algum, deixar de ter criticidade para o problema de trabalho infantil: é levantá-lo não levando somente em conta a perspectiva ocidental, mas também moçambicana, timorense ou cabo-verdiana. “Temos que ir a esses países perguntar: ‘O que é a criança para vocês? A partir de que momento essa menina começa a trabalhar? Trabalha para quem?’. A dinâmica é muito mais intensa e mais diversa do que imaginamos.”.

Trabalho infantil em países lusófonos e o que tem sido feito para combatê-lo

Respeitar as individualidades culturais de uma nação não é compactuar com os abusos sofridos por crianças e adolescentes sujeitos à vulnerabilidade econômica e social. O trabalho forçado e a exploração pelos quais países como Brasil, Guiné-Bissau e Angola foram sujeitados ainda trazem consequências no tocante ao trabalho infantil em seus territórios, numericamente expressas em cifras alarmantes de crianças ocupando-se com extração de minérios, lixões, agricultura, carvoarias, trabalho doméstico, além do comércio informal. Não só somente os processos colonizadores, mas práticas tradicionais também contribuem para índices como os da Guiné-Bissau, em que 38% das crianças trabalham.

“Há elementos endógenos e exógenos; os endógenos têm relação com a hierarquização social do sistema colonial; já o elemento exógeno diz de estruturas locais que existiam anteriormente à presença europeia”, explica o professor, que volta à Guiné-Bissau e sua forte tradição secular como exemplo. “Em algumas regiões, o Alcorão é interpretado de modo onde crianças tem condição de pedinte, o que justificaria o uso delas para esmolar nas ruas”.

Existe, ainda, um terceiro elemento, atrelado aos dois primeiros, galopando não só pelos países africanos como também em outras nações emergentes. “A expansão do mercado de capital internacional, em que crianças, por serem mais sujeitas, acabam sendo apropriadas indevidamente. Elas são vistas como mercadoria, no sentido de indivíduos que produzem certo tipo de capital, mas sem fazer parte nem se beneficiar de sua estrutura”.

Contudo, é importante lembrar que há interessantes movimentações no combate à exploração de mão de obra infantil nas regiões abarcadas pela CPLP. “Tem havido um movimento interno muito forte em condenar e denunciar essas práticas, particularmente em razão dos processos de democratização desses países e pela expansão de novas forças sociais”, diz Teixeira, que enxerga duas frentes distintas: a primeira delas parte de ONGs internacionais, articuladas por seus Estados e mantidas financeiramente por instituições também estrangeiras. A outra é a mobilização das estruturas locais familiares, que tem se comprometido com resolução de conflitos e manutenção dos direitos infantis.

“Essa segunda dinâmica me parece mais eficiente. Tem seus problemas, marcados por certas práticas tradicionais, mas é impulsionada pela jovem população africana. Os jovens são fortemente impactados pela comunicação de massa, do ponto de vista negativo, mas também no positivo, afrouxando tradições – não as aniquilando”, completa o sociólogo.

O mundo diz NÃO ao trabalho infantil
12 de junho é o dia em que se diz #NãoAoTrabalhoInfantil em todos os idiomas. Atualmente, o Unicef precisa 168 milhões de crianças exercendo algum tipo de atividade laboral e, no sentido de combater as mãos invisíveis que giram esta engrenagem, surgiu a temática a ser trabalhada ao longo do mês: “Não ao Trabalho Infantil na Cadeia Produtiva”.

Maria Claudia Falcão, representante da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, fala sobre a escolha. “É sabido que o trabalho infantil está praticamente erradicado no setor formal. Mas existem 3,3 milhões de crianças ainda trabalhando no Brasil, e elas fazem, indireta ou diretamente, parte da economia. Temos de garantir em cada parte da cadeia produtiva não exista trabalho infantil”.

A proposta para a conscientização se estende às empresas e indústrias que fornecem matéria-prima. Propõe-se atingir diretamente o consumidor, sugerindo que seja ativista ao fazer escolhas conscientes de compra. “Se ele deixa de comprar um produto no qual a exploração do trabalho infantil esteja diretamente envolvida, isso terá impacto nas vendas e com certeza vai fazer repensar seu modelo de produção”, completa Maria Claudia,

Agenda:

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) preparou uma agenda especial de atividades culturais para mobilizar a população sobre o assunto. O Ministério Público do Trabalho (MPT) também preparou uma série de eventos para o domingo, 12: desde uma pedalada na Avenida Paulista, em São Paulo, até uma maratona, em Porto Alegre, entre outras atividades. Confira a programação nos estados.

Falamos a mesma língua? Confira o mapa do trabalho infantil nas nações que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
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