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Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
A câmera não treme ao esbravejo da militante indígena Valdelice quando ela diz não existir leite tomado nas capitais do Brasil que não tenha sangue guarani-kaiowá. Ao se voltarem para as passeatas por moradia popular em São Paulo, as lentes então se agitam com o furor dos manifestantes sem-teto. A câmera tem uma difícil tarefa, porque falar dos ativistas de direitos humanos é falar da violência de uma das questões mais estereotipadas e ferrenhas do país.
O filme “Defensorxs” é fruto da campanha Somos Todos Defensorxs, que uniu organizações como o Intervozes e a Plataforma Dhesca Brasil para dar visibilidade aos ativistas e combater sua criminalização. O coletivo audiovisual Nigéria foi chamado primeiramente para gravar vídeos em dois formatos: pílulas de depoimentos dos militantes de movimentos sociais, disponibilizadas no YouTube, e também um curta de caráter educativo, reunindo os relatos.
A equipe do coletivo, que tem como verve a atuação com o ativismo, não demorou a perceber a potência das falas e do material coletado. Para poder transformá-los em um longa a ser divulgado em exibições públicas – e também em canais de televisão –, eles optaram por financiar coletivamente a finalização de “Defensorxs”. “Percebemos a força da rede que o coletivo vinha estabelecendo, e que isso nos daria chance no Catarse”, explica Roger Pires, integrante do coletivo Nigéria. A campanha arrecadou R$ 31.510.
Direito à voz
Defensorxs é com x: os depoimentos que compõem o filme são protagonizados pelos mais fluídos gêneros, de mulheres indígenas até transexuais militantes pelos direitos LGBT. O documentário foi filmado a poucas mãos em cinco localidades do Brasil, sendo repartido no mesmo número de episódios.
O primeiro deles mostra a reivindicação indígena guarani-kaiowá por território na fronteira entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai. O próximo acompanha militantes de direitos humanos no difícil plenário de Fortaleza (CE). O episódio do meio é sobre a militância LGBT em Curitiba, sobre ativistas de duas das mais importantes ONGs da capital, Dom da Terra e Grupo Dignidade. O penúltimo retrata ribeirinhos em sua batalha contra a usina de Belo Monte (PA) e o documentário se encerra com os movimentos do sem-teto em São Paulo.
Os protagonistas são os ativistas. Portanto, a equipe de produção tomou os cuidados necessários ao expor as pelejas e suas figuras, que já são públicas pelo histórico dentro de movimentos de resistência. Em contraponto, era também desejo do coletivo que o filme evidenciasse tais lutas a fim de fortalecê-las. “A estratégia era explorar a visibilidade como proteção, fazendo com que esses militantes se tornem mais conhecidos e os ajudando em suas causas”, explica Pires.
Sutileza em meio à dor
As imagens do documentário conseguem ser delicadas mesmo quando mostram as condições precárias dos terrenos baldios nos quais os sem-teto montam suas barracas, ou ainda quando focalizam as lágrimas de ribeirinhos ante uma faraônica obra que matará seus rios. Desde os confins das terras demarcadas (onde curumins são ensinados que só sairão mortos de suas aldeias) até as lideranças LGBT também ameaçadas, é pungente a necessidade de ampliar o debate sobre o que são direitos humanos.
O Brasil é líder em mortes de homossexuais. Segundo pesquisa do grupo Gay da Bahia, foram 326 casos de assassinatos em 2014. Os guarani-kaiowás tem a maior taxa de suicídio do mundo. Ainda assim, quando os documentaristas entram no plenário, boa parte dos responsáveis pelo Poder Judiciário parece não fazer ideia do que são, de fato, direitos humanos. “Você vê em alguns deles o discurso extremista e absurdo de que são contra os direitos humanos, mesmo que isso não seja, na prática, possível”, ressalta Roger Pires.
A fim de levar a temática cada vez mais além, “Defensorxs” é um filme gratuito. Já foi exibido mais de 40 vezes publicamente, por interesse de pessoas que ouviram falar do filme. “É muito bacana a montagem de uma exibição, que pode seguir com um debate e virar um momento de compartilhamento”, explica Pires. Ele também diz que o conteúdo será negociado para ser exibido em canais de televisão, com o propósito de alcançar grupos não necessariamente ligados aos direitos humanos. “De repente, alguém vai ver na TV e absorver esse conhecimento”, acredita.