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Em entrevista, o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, foi convidado a refletir sobre os 10 anos da Lei de Cotas.

#Educação#EnsinoMédio#TecnologiasDigitais

Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente posa em frente a bandeiras.

A Lei nº 12.711 – também conhecida como Lei de Cotas para o Ensino Superior – completou 10 anos em 2022. A medida determina que 50% das vagas de instituições públicas de ensino superior devem ser destinadas a candidatos que realizaram o Ensino Médio na rede pública. Dentro desse percentual, metade das vagas devem ser oferecidas para estudantes com renda familiar mensal igual ou menor a 1,5 salário mínimo por pessoa. Também devem ser reservadas vagas a candidatos autodeclarados Pretos, Pardos e Indígenas (PPI), além de Pessoas com Deficiência (PcD), definidas de acordo com a proporção desses recortes populacionais nos estados onde estão situados os campus das instituições de ensino, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

10 anos da Lei de Cotas em revisão

Considerada por diversos especialistas como uma política de ação afirmativa bem-sucedida, durante a sua vigência a Lei de Cotas impulsionou o aumento da participação de estudantes historicamente excluídos no ensino superior. Contudo, a própria legislação prevê uma revisão após uma década em vigor – ou seja, em 2022.

Em entrevista, o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, foi convidado a refletir sobre os resultados da Lei de Cotas e os principais desafios em sua execução. E, principalmente, o que podemos esperar da sua revisão.

Durante o mês da Consciência Negra, ele também foi um dos participantes do enlightED, conferência global sobre educação, tecnologia e inovação. “Nós somos um país de negros, de brancos, de indígenas, de amarelos e de tantos outros. Não ficaremos satisfeitos de ter um país em que as pessoas sejam distinguidas pela cor da sua pele ou pela sua raça. Não queremos um país com 10% de cotas para uns, 10% de cotas para outros. Também não queremos um país em que as pessoas não tenham o direito de ir, vir e permanecer em qualquer espaço público ou privado. E queremos menos ainda um país em que, sendo negro, fazer esse trajeto pode significar inclusive uma eliminação física. Nós queremos um país de iguais, queremos um país em que todos sejam livres”, defendeu o reitor em sua fala no festival.

Confira a entrevista completa a seguir!

 

Fundação Telefônica Vivo: Passada uma década desde que a Lei de Cotas está em vigor, como o senhor enxerga a relevância e a importância dessa política? Qual o legado que ela está deixando, José Vicente?

José Vicente: A Lei de Cotas se constituiu como um divisor de águas, se apresentando como um paradigma que separou o Brasil do passado e do presente. Nós tínhamos uma forma inadequada de conduzir essas questões de acesso ao ensino superior para as grandes minorias econômicas, sociais e raciais. A Lei de Cotas provocou uma mudança profunda e reestruturante nesses princípios.

Primeiro, em relação aos formatos dos acessos. Segundo, em relação ao encaminhamento de como deveriam se dar esses acessos. E com isso, nós chegamos aos 10 primeiros anos da primeira política pública que cuida, intervém, formula e produz uma ação importante para combater o resultado desse racismo estrutural no ambiente da educação superior pública do nosso país.

 

Fundação Telefônica Vivo: José Vicente, o que o senhor avalia que deve ser revisto na Lei de Cotas neste momento?

José Vicente: De uma forma geral, a Lei de Cotas cumpriu os seus pressupostos e propósitos. Ela permite a inclusão e garantia de equalização das competências desse público no desenvolvimento de todo o processo de formação acadêmica. Dessa maneira, ela conseguiu entregar resultados satisfatórios para a sociedade.

Mas penso que algumas ações poderiam melhorá-la e torná-la mais eficiente. A primeira das intervenções seria justamente para criar condições de manutenção desse jovem no desenvolvimento dos seus estudos por todo o tempo que ele ficar na universidade. Normalmente, os cursos superiores duram entre quatro e seis anos, e durante esse período os públicos oriundos de extratos sociais mais vulnerabilizados não têm condições de permanecer em uma universidade pública, pois isso envolve custos secundários de grande significado. Um jovem da periferia não tem as condições para ir e vir, ficar na universidade, comprar os equipamentos acadêmicos, os livros, os aparelhos e os instrumentos. Assim como participar das atividades e das ações de extensão e buscar externamente uma qualificação adicional. Só isso permite que ele possa fazer uma qualificação significativamente bem estruturada e formatada, que auxilie extraordinariamente o seu aprimoramento.

 

Fundação Telefônica Vivo: E qual o papel dos governos nesse processo, José Vicente?

José Vicente: Se ele não tem condições de suprir essa necessidade, é indispensável que o Estado coloque recursos para que ele possa cumprir essa etapa formativa. Então, junto com a bolsa de entrada, é importante que haja a bolsa de permanência, a bolsa de apoio para que esse jovem possa ter um recurso mínimo para se manter na universidade. E aperfeiçoar a sua educação dentro desse ambiente.

Por fim, o combate às fraudes também deve ser debatido. As ações afirmativas têm sido vítima de agressões e transgressões das mais diversas. Isso, além de descaracterizar a política pública, acaba fragilizando-a e enfraquecendo o seu objetivo. Muitos têm se apropriado dessa perspectiva para se apresentarem como negros, quando sobre todos os demais aspectos não o são. É importante que as fraudes sejam combatidas, seja para não fragilizar e não estigmatizar a lei, seja para que o crime não fique impune. Seja para que os desavisados não façam uso inadequado e inapropriado de uma política pública que tem uma justificativa muito clara: enfrentar o racismo e promover a inclusão de negros no ensino superior.

 

Fundação Telefônica Vivo: No debate público sobre a revisão, é muito citada a necessidade de que a Lei de Cotas crie mecanismos para permitir a permanências de pesquisadores negros nos ambientes de pós-graduação. Qual a sua avaliação sobre essa questão?

José Vicente: Eu acho não só indispensável, como exigível. Porque nós estamos dizendo que o problema do ensino superior público é ser excludente, anti-democrático e anti-republicano. Com um tipo de formação que não contempla as contribuições e realizações, sobretudo do negro, da África. Por conta disso, esse é um tipo de educação que está totalmente descolada da realidade do povo brasileiro.

A discriminação racial, o racismo, o preconceito são questões agudas que sempre estiveram presentes na jornada brasileira. Mas que nos tempos atuais ganharam um foro de emergência. O racismo está se ampliando e se aprofundando nas redes sociais, nas relações públicas e privadas, nas empresas, na área dos esportes, em grandes manifestações culturais, em ambientes religiosos. Isso produz cerceamento e limitações, atingindo a destituição de direitos, de prerrogativas e de condições para o negro brasileiro.

É indispensável que nós tenhamos o ambiente de produção do conhecimento científico construindo estratégias, políticas e planos de pesquisas. Formando pessoal qualificado para produzir estudos aprofundados dessas manifestações do racismo, das suas características e premissas. E também produzindo os meios científicos e tecnológicos para combater o racismo.

Por isso, é inexorável a ação da universidade no sentido de estender essa agenda para além das cotas nos bancos escolares. Nós precisamos de professores negros na graduação, na pesquisa, na pós-graduação. Nós precisamos que essa agenda esteja sendo conduzida, produzida e investigada na pesquisa de pós-graduação. E da mesma maneira que esse conhecimento seja inventariado e disponibilizado, para que a sociedade possa fazer o melhor uso desse tipo de conhecimento.

 

Fundação Telefônica Vivo: Durante a sua participação no enlightED, o senhor defendeu a equalização de territórios de aprendizagem [que todos os ambientes educativos combatam a desigualdade social]. Como a Lei de Cotas favorece esse processo?

José Vicente: Eu acho que auxilia na medida em que ela exige que todo esse ecossistema da educação acabe se debruçando sobre essa questão. E seja desafiado a produzir um encaminhamento para ela. As cotas são importantes também pois obrigam a tirar a educação superior da zona de conforto. Quando há um aluno negro em um ambiente que ele tradicionalmente não frequenta, é necessário que se faça transformações importantes. Desde o olhar do professor na sala de aula até a produção de uma ambientação que com o tempo absorva a presença do corpo negro.

É sobretudo com essa demanda que fica estabelecido que todo ecossistema da educação tem que, não só sair da sua zona de conforto, como também mergulhar e produzir informações significativas dentro dessa questão. Que no seu conjunto ajuda a gente produzir mais consciência, mais compromisso e mais ação para combater e superar esse dilemas da discriminação.

José Vicente: a Lei de Cotas provocou uma mudança profunda e reestruturante no ecossistema da educação pública brasileira
José Vicente: a Lei de Cotas provocou uma mudança profunda e reestruturante no ecossistema da educação pública brasileira