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Diretor do Juventude Conectada mostra em novo documentário os impactos da evangelização na tribo dos Paiter Surui

Perpera, que perdeu o título de pajé na tribo Paiter Surui

Imagine uma pequena igreja evangélica no meio da floresta. Enquanto os fiéis acompanham com atenção as palavras do pastor, o zelador senta-se à porta, de costas para o altar, vestindo um terno surrado e largo. Ele sente que perdeu uma batalha cultural e diz sofrer com a ira dos espíritos da floresta. Parece ficção, mas é uma cena do documentário Ex-Pajé, que estreou nos cinemas em abril. A história mostra como Perpera passou a ter seu poder de pajé negado pela igreja e pela tribo Paiter Surui, que faz morada nas florestas de fronteira entre Rondônia e Mato Grosso.

 

youtube https://www.youtube.com/watch?v=6mochAbVT_Y

 

O documentário foi filmado em 2016 pelo premiado Luiz Bolognesi, conhecido por seu trabalho como roteirista nos sucessos Bicho de Sete Cabeças (2001) e Bingo – O Rei das Manhãs (2017). Desde a estreia, já conquistou o prêmio especial do Júri no Festival de Berlim, e o prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), do Festival É Tudo Verdade. Só no mês de maio, rodou quatro continentes, com exibições em países tão distintos quanto Polônia, Canadá e Israel. Atualmente, Ex-Pajé está em cartaz em São Paulo no Espaço Itaú de Cinema – Augusta.

“Enquanto o público brasileiro reage de forma mais emocional, europeus saem indignados. ‘Como o Brasil não protege a cultura de seus indígenas?’ é o que mais ouço”, conta o diretor, cujo primeiro contato com o ex-pajé Perpera foi enquanto dirigia o documentário Juventude Conectada. Realizado pela Fundação Telefônica Vivo, o Juventude Conectada apresenta o comportamento e a interação de jovens no ambiente online, além de iniciativas inovadoras em temas como produção de conteúdo, educação, empreendedorismo e defesa de causas sociais.

Em entrevista à Fundação, ele falou sobre os bastidores da atual produção, os aprendizados que surgiram da imersão na cultura indígena e a questão da monocultura da fé. “Espero que o filme contribua para uma compreensão da potência da cultura indígena”. Confira a seguir:

 
Você já conhecia a tribo Paiter Surui? Como chegou ao Perpera?
Luiz Bolognesi: Durante a produção do Juventude Conectada fomos filmar os jovens da tribo que usavam a conexão digital para denunciar as invasões dos madeireiros em suas terras. Pedi que eles me apresentassem ao líder religioso. Fiquei surpreso quando me disseram que lá só tinha ex-pajé. Já vi ex-jogador de futebol, ex-gerente, mas ex-pajé? Quando conheci Perpera, ele me contou que desde a chegada da igreja dizia-se que pajelança era coisa do diabo, e que todos viraram a cara para ele. Para evitar a exclusão, passou a trabalhar como zelador da igreja e, por isso, tem de enfrentar a fúria dos espíritos da floresta, que o atormentam de noite. Percebi que ele não tinha deixado de ser pajé, mas que vivia uma situação opressora e violenta que, na verdade, acontece em muitas aldeias.

 

Perpera, que perdeu o título de pajé na tribo Paiter Surui, é consultado por integrante da tribo

 
Mas o filme deixa claro que o Perpera ainda tem alguma influência na tribo.
Luiz Bolognesi: Sim, ele acaba fazendo o trabalho de pajé pelas beiradas. Acontece com alguma frequência de recorrerem a ele escondido do pastor. Ele mantém este orgulho, mas está muito triste por ter sido destituído do conhecimento de milhares de anos da figura do pajé. Quando se vê privado de acessar e passar para frente esses conhecimentos, vira um homem triste. Porém, tem seu ritual de resistência. Ele claramente fica de costas para o pastor e se recusa a participar do culto. Perpera também se aproveita que é um grande arqueiro e, enquanto ensina a arte às crianças, passa alguns ensinamentos.  

 
Como os religiosos chegam até as aldeias?
Luiz Bolognesi: Quando as tribos começam a ter contato com homens de fora, os índios pegam doenças que até então eles não conheciam, como sarampo, catapora e gripe. A igreja chega trazendo remédios, presentes e uma rede de acolhimento, e, sobretudo, a cultura do castigo, do medo, com a ideia de que se eles não seguirem Jesus, vão para o inferno.  

 
Você e sua equipe ficaram um mês vivendo na tribo, sem internet, telefone ou qualquer comunicação. Como foi a experiência?
Luiz Bolognesi: Nós entramos no ritmo deles, com muito respeito, e a convivência intensa gerou uma relação de confiança mútua. Até quando não estávamos filmando, acompanhávamos as caçadas, os passeios no rio, as conversas em roda. Quando ligávamos a câmera, respeitávamos o tempo deles, sem impor nada. Íamos decidindo juntos o que filmar.

 

Teve algo que eles pediram para que você incluísse ou não registrasse no documentário?
Luiz Bolognesi: Pediram para que mostrássemos que eles trabalhavam, já que ouvem com frequência do homem branco que índio é preguiçoso. Só que eles começam a trabalhar às 4h da manhã e param por volta das 10h, quando o sol fica insuportável. Teve um dia que as mulheres saíram para pegar plantas medicinais. Pelas crenças deles, homens não podem participar desse ritual, por isso eles nos pediram para não filmar.

 
O que você aprendeu de mais importante durante essa vivência com os índios?
Luiz Bolognesi: Depois de conviver com eles, a impressão que tenho é que nós somos escravos e eles são senhores do tempo. A gente vive atrasado, vive correndo, com culpa porque não conseguimos dar conta das coisas. Já eles têm uma relação de muita serenidade, vivem o aqui e o agora intensamente. A nossa civilização é toda focada em planejamento, nosso futuro está todo desenhado, nós não aceitamos o acaso, falamos em imprevisto como se fosse acidente. Já eles valorizam o “vir a ser”, e como estão abertos ao futuro, não são estressados. É uma filosofia que favorece o bem-estar e a felicidade. Eu decidi levar um pouco disso para o meu dia a dia. Nós temos muito a aprender com os povos americanos nativos, precisamos aprender a enxergá-los e ouvi-los.

 
Que mensagem você quis deixar aos seus espectadores?
Luiz Bolognesi: O principal é a gente tentar combater a intolerância religiosa. O Brasil é um país plural, formado por muitas etnias diferentes. A nossa marca é a diversidade cultural e religiosa. O filme é um alerta para a gente não aceitar a monocultura da fé, que prega uma única verdade. Outra coisa que espero é que o documentário desperte para a compreensão da potência da cultura indígena. Eles não são coitados, são guerreiros, lutadores, os verdadeiros guardiões da natureza.

Luiz Bolognesi defende combate à monocultura da fé em Ex-Pajé
Luiz Bolognesi defende combate à monocultura da fé em Ex-Pajé