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O presente texto usa linguagem distinta da usual para dialogar com os 87% dentre os brasileiros favoráveis ao encarceramento dos e das adolescentes, com a justificativa de que eles e elas já podem votar, ter filhos, disparar armas etc., etc.

A linguagem usual dos que se pautam pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) sofre muito a avalanche da população que tenta mais uma cartada como aquela do “ouro para o bem do Brasil”, ou do “Ame-o ou Deixe-o”, bem como a decisão sobre o direito ao uso de armas (se suíços e americanos possuem armas, nós também podemos e devemos tê-las!).

Nesse movimento, o Congresso Nacional afirma ser a casa do povo, pois está diante de muitas vozes e votos. Noutras ocasiões, costumeiras, ele não é casa do povo, mas neste caso, circunstancialmente, sim. Dizem que a voz do povo é a voz de Deus, o que não foi verdade milhões de vezes na cotidianidade da vida. Ditados e frases feitas existem para serem superados na história.

Há um espírito da personagem alienista, de Machado de Assis, que está a encarcerar mentalmente a maioria do nosso povo neste momento politicamente débil, consumista e imitador de costumes estranhos às nossas culturas. A volúpia encarceradora do “outro” já encarcerou supostamente 87% e talvez não haja consciências educadas capazes de reverter o mal, até que noutro momento histórico veremos a nulidade do propósito. A destruição do “outro” adolescente leva diretamente à destruição ampla de valores coletivos. No entanto, ainda cabem novas linguagens.

Estranho que essa volúpia encarceradora recaia sobre seres já grandes no corpo – adolescentes – mas ainda com necessidade evidente de valores educacionais combinados em ética, estética, linguagens e ciências. Por isso, na busca quase desesperada de valores, os adolescentes radicalizam e as famílias fazem grande esforço para o alcance do equilíbrio. Quantas famílias brasileiras podem garantir o equilíbrio? Há, porém, uma instituição indispensável, além dos grupos formais e informais: a escola, centro de cultura e de experiência do viver, da busca do equilíbrio integrador que acompanha o crescimento do corpo. Ânima/ânimo.

No momento em que o Conselho Nacional de Educação (CNE) está concluindo um parecer e um projeto de resolução para transformar – via educação – os lugares de internação de meninos e meninas submetidos aos cuidados socioeducativos, a avalanche dos 87% arrebenta tudo, como tsunami em meio ambiente devastado, sufocando o valor da educação pelo desvalor do encarceramento, da ampliação do tempo que mata o tempo da iniciação chamado adolescência.

Todos os brasileiros e brasileiras precisam saber que nenhum lugar de abrigo de meninos infratores no Brasil possui escola eficiente e edificante. A despeito de alguns esforços em certos estados e municípios, os cerca de 20 mil meninos e meninas enviados pelas autoridades para internação sofrem, hoje, o pior dos dramas, isto é, a falta de direito à digna iniciação para a vida adulta, em razão do desfalque cultural, do tratamento sem distinções dos seres reais que são, a mistura absurda entre algumas aulas e maus tratos e desconfianças. Enfim, uma vida quebrada, falsificada pela sociedade e pela irresponsabilidade das várias instâncias do Estado.

Os 87% parecem não saber que tudo isso vai, exclusivamente, aumentar e piorar. Aprovar essa suposta lei implica debochar do sentido maior da educação, ou desconhecê-lo. Se souberem e mesmo assim optarem pelo deboche alienista, ainda pior. Nessa hora restará pouco do Brasil desejado. O documento do CNE, quase pronto, normatiza uma escola curricular dentro dos internatos, decente, com professores e agentes preparados; portanto, capaz de vislumbrar futuros. Uma escola que altere os sentidos dos internatos. Três ministérios e o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) participam da escritura do texto e pretendem garantir cumprimento dessas diretrizes educacionais na vida dos sujeitos de direitos, adolescentes. E contam com o apoio de centenas de pessoas que conhecem de perto a vida desses meninos e meninas.

Por que esse caminho não é melhor do que a avalanche e a volúpia sobre o Congresso e do próprio Congresso, que está supostamente a ouvir a voz de Deus? (seria a voz do Deus de Moisés, Jesus e Nelson Mandela, para citar poucos?)

Minha orientadora de tese na USP, a professora Walnice Galvão, escreveu um livro belo sobre o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Chama-se As Formas do Falso. Parecendo ser uma ação entre jagunços dos sertões Minas-Bahia, de fato a obra é espelho cultural do Brasil, ou seja, nos leva a perguntar com quem fazemos pactos, com o bem ou com o mal? Como encontrar melhores soluções que não sejam as do ensaio-e-erro? Ou, o que soa razoável no senso comum e até um aparente ato de justiça (ou direito), de fato pode ser ódio, interesse pessoal, desamor, vingança, ou ignorância.

Permitam-me afirmar que os 87% não poderiam, neste momento histórico do país, buscar solução fora do ato educacional de qualidade, conforme propôs a CONAE, Conferência Nacional de Educação, 2014. Se os 87% pró maioridade penal revertessem o seu ódio difuso em Tsedaká (a justiça equilibrada do texto bíblico), a mesma de Amartya Sen, Prêmio Nobel que escreveu A ideia de Justiça, chegaríamos a nova visão educativa e o país daria um passo adiante das formas do falso, que infelizmente foram marca registrada de vários momentos da República. E se considerarmos que somente 1% dos meninos de 15 e 16 anos matam (gerenciados por adultos que lhes roubam a vida a favor das vinganças e do consumismo!), reforça-se a proposta de nos rebelarmos, como pessoas e grupos, contra o espírito alienista que nos encarcera e cria o espírito do encarceramento.

Com a palavra, não o Congresso, mas os 87%. E os 11% contra. E os que nada dizem. O povo e sua voz humana. É hora de diálogo ou de alienação educacional? Em vez de “basta Paulo Freire”, (um modo de aprofundar-se na alienação) tenhamos “bastante Paulo Freire”, vamos nos “abastecer de Paulo Freire” porque a filosofia dele e de seus amigos e amigas, pensadores e educadores, ainda nem começou a vigorar no Brasil (e poucos o leram!), visto que foi alienada pela visão incultural da Ditadura em 1964.

Que bela oportunidade temos de educar, o que significa transformar-nos e transformar um pouco do mundo.

*Luiz Roberto Alves é presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), professor aposentado da USP e titular de Pesquisa e Didática na Universidade Metodista de São Paulo. Ex-Secretário de Educação de São Bernardo do Campo e de Mauá (SP).

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