Uma amiga precisava contratar um serviço e estava em dúvida entre três empresas. Cada uma tinha apresentado um orçamento e seus argumentos de venda. Ela consultou pessoas próximas, colheu opiniões, pesquisou e analisou tudo de forma racional. Na hora de tomar a decisão, optou pela mais cara e com menos vantagens. Ninguém entendeu nada. Ao ser indagada sobre o motivo que a levou a fazer esta escolha improvável, ela respondeu:
– Porque essa empresa era de origem espanhola, exatamente como a avó que eu mais gostava.
A história tem um lado afetivo muito fofo, que todo mundo entende. Carinho pela avó é uma coisa que aquece o coração da gente. Mas usar argumentos subjetivos e tomar posições apenas por memória afetiva nem sempre gera bons resultados. Só pra dar dois exemplos, muitas avós diziam que “menina menstruada não pode lavar o cabelo” e que “manga com leite faz mal”, o que não faz nenhum sentido, como bem sabemos hoje. A gente gosta da avó, mas faz parte da evolução entender que nem tudo o que se pensava no passado ainda faz sentido hoje.
Pois eu encontrei essa mesma subjetividade afetiva, baseada em argumentos pessoais e familiares em muitos comentários sobre trabalho infantil que li esta semana.
Pessoas que ao virem a imagem de uma criança trabalhando na rua como engraxate apoiavam a exploração do trabalho infantil, em vez de apoiar seu combate! O argumento? “Meu pai trabalhou desde pequeno e hoje é um homem honrado!”, “Eu mesmo trabalhei desde os oito anos e agradeço meus pais porque isso me fez honesto”. E também o conhecido “é melhor a criança estar trabalhando do que estar roubando, matando ou se viciando em drogas!”.
Sim, tudo poderia ser pior, mas você não vai ser A FAVOR de ser assaltado usando como argumento o fato de que poderia ser pior se fosse um SEQUESTRO, porque AMBOS são crimes! E você não quer NEM ser assalto e NEM sequestrado.
A criança não deve estar na rua, nem trabalhando, nem pedindo esmola, nem cheirando cola, nem assaltando, porque é um direito dela ter casa, comida, família e educação. Para ter um futuro, para ser cidadã e fazer suas escolhas na vida.
Outro argumento muito usado foi “uma mente ociosa é o playground do diabo”. Ou seja, tem gente que quer justificar o trabalho infantil dizendo que uma criança que não trabalha vai ter tempo ocioso pra pensar “besteira”. Besteira é pensar assim, né minha gente?! Porque a criança em vez de estar trabalhando poderia estar aprendendo a ler e escrever, programar, pintar, criar aplicativos, estudar línguas ou brincar de roda.
E, sim, todos nós temos provérbios, frases feitas e clichês gravados no nosso cérebro. Mesmo que não tenham lógica, nós acreditamos neles. Temos carinho por eles, porque estão lá há muito tempo. São como dogmas, como superstições. Pelo sim, pelo não, você não passa embaixo da escada, não abre o guarda-chuva em casa, bate na madeira. E uma dessas frases feitas é que “o trabalho enobrece”. Mas a criança não quer ser nobre, ela quer ser criança! E tem esse direito. O trabalho honesto pode ser muito nobre para um ADULTO. O que não é nem um pouco nobre é explorar crianças e apoiar esse abuso.
E pra fechar nossa conversa, vamos combinar que pode misturar manga com leite que não faz mal.
O que não pode é misturar criança com trabalho. Isso sim faz mal, não enobrece e ainda dá pontos pro diabo.
Rosana Hermann é escritora, roteirista e autora do blog Querido Leitor.